terça-feira, 29 de dezembro de 2020

Estamentos

 

Manobra espúria


(Obs; este artigo foi publicado concomitantemente com o Correio da Manhã)

            Tudo o que é do Estado é aproveitado pelos detentores do Poder. O conceito de patrimonialismo, expresso na desconcertante sentença, foi desenvolvido pelo jurista e sociólogo alemão Max Weber no século XIX. O objeto do estudo, então, eram as nações absolutistas que já haviam vivido o seu apogeu e davam lugar, na Europa, por meio de reformas ou rupturas violentas, às monarquias constitucionais e às democracias liberais.

            Em “Os donos do Poder”, o brasileiro Raymundo Faro, outro jurista com pendor para a sociologia, destrincha as razões históricas do clientelismo no Brasil e, a partir daí, apresenta o diagnóstico do atraso do país. Desde os tempos de colônia, somos reféns de práticas patrimonialistas que obstam o nosso desenvolvimento social.

            A referência a Weber e a Faoro é oportuna porque nos deparamos por esses dias com clara tentativa de captura da esfera pública pelo interesse privado. Foi o que aconteceu quando o Supremo Tribunal Federal, o Superior Tribunal de Justiça e o Tribunal Superior do Trabalho fizeram gestões para obter de forma privilegiada – e indevida – para seus ministros, servidores e familiares desses a vacina contra a Covid-19.

            A manobra dos “detentores do Poder” foi rechaçada pela Fiocruz, que avisou: todas as doses do imunizante serão encaminhadas ao Ministério da Saúde, para distribuição à população de acordo com critérios médicos. É triste ver órgãos do Judiciário, a quem cabe a defesa do Estado de Direito, agir contrariamente à sociedade.

No vácuo de liderança deixado pelo Executivo, declaradamente contrário à prioridade da imunização (enquanto 40 países já estão em processo de vacinação), os “estamentos” resolveram salvar a própria pele. A imagem do Titanic indo a pique após colidir com o iceberg, com escaleres apenas para a primeira classe, serve como metáfora. 

Não fosse uma notinha em coluna de jornal o episódio sequer teria sido notado pela opinião pública – comprovando que, em países livres e democráticos, a imprensa é mesmo o “olhar onipresente do povo” sobre os seus governantes. Ainda assim, as manifestações de indignação foram rarefeitas, o que revela o quão habituados estamos às práticas espúrias que distorceram a razão de ser do Estado.

A Constituição de 1988, fruto da redemocratização, fracassou na sua maior tarefa, a de modernização do Estado brasileiro. Na contramão, engendrou uma máquina administrativa dispendiosa que tem exaurido o setor produtivo. De quebra, potencializou as desigualdades que prometia combater, uma vez que consolidou uma casta de servidores com privilégios inatingíveis para a grande maioria dos trabalhadores. É preciso reverter essa lógica perversa. O Estado existe para servir à sociedade, e não para servir-se dela.

A reforma administrativa reprogramada para o ano que se inicia pode não ser a condição suficiente (até porque o patrimonialismo é também cultural), mas é uma condição necessária para que o Brasil retome o rumo da modernização e do desenvolvimento econômico e social. Que não percamos mais esta oportunidade.

Por Nilson Mello

                       

terça-feira, 22 de dezembro de 2020

Privatizações e portos

                                                          A mesma bússola



(Obs.: este artigo foi publicado simultaneamente com a revista Portos & Navios)

Na sexta-feira 18 de dezembro, o governo federal conseguiu licitar, no último leilão do ano, três terminais, sendo um no Porto de Paranaguá, no Paraná, um em Aratu, na Bahia, e o terceiro na capital alagoana. Nessas três licitações, os investimentos privados estimados são de R$ 400 milhões. Para uma semana - e ainda por cima, praticamente, a última semana útil do ano - foi um desempenho auspicioso, que reforça as expectativas em relação a 2021, porém, não suficiente para que se possa fazer um balanço plenamente positivo sobre as privatizações portuárias em 2020.

         Na dobrada do semestre, o Ministério da Infraestrutura previa que conseguiria licitar cerca 18 terminais em Portos Públicos até o término do ano da pandemia. No balanço final, foram cinco áreas privatizadas, as três mencionadas acima e mais duas no Porto de Santos. Não que isso seja suficiente para dar como negativo o ano para o setor portuário. Longe disso. Com tantas dúvidas em relação aos desdobramentos econômicos da Covid-19, pode-se dizer que o ano não foi perdido.

         Em primeiro lugar, conforme amplamente noticiado, os portos brasileiros conseguiram demonstrar dinamismo em meio à crise, reflexo que são, é claro, do vigor do agronegócio com o seu viés exportador. Assim, mesmo que tenha havido perdas em movimentação aqui e acolá, os terminais portuários enfrentaram com resiliência a maré desfavorável, se consolidando como um baluarte para a retomada do crescimento econômico que - todos nós esperamos - em breve virá.

         Em segundo lugar, e talvez mais significativo, porque um importante passo no que diz respeito a um novo modelo de privatização do setor foi dado também no curso de dezembro. Trata-se do projeto de desestatização da Companhia Docas do Espírito Santo (Codesa) e, consequentemente, dos portos de Vitória e Barra do Riacho. Neste caso, não se trata de arrendar à iniciativa privada um ou mais terminais na área do chamado “Porto organizado” (público), mas de uma privatização plena de toda estrutura e da operação em si.

         Em 17 de dezembro, a Diretoria Colegiada da Agência Nacional de Transportes Aquaviários (Antaq) aprovou a abertura de consultoria pública para os estudos visando ao estabelecimento do novo modelo que, na prática, vai além do anterior, de Land Lord Port. Largamente adotado no mundo, o modelo de Land Lord Port prevê que a infratestrutura e o controle permanecem nas mãos do Estado enquanto a iniciativa privada se encarrega da superestrutura e da operação.

         No Brasil, desde a década de 1990, com a primeira Lei dos Portos (Lei nº 8.630/93), prevalece o Land Lord Port, mas de forma mista com a o modelo eminentemente privado, ou seja, terminais implantados e operados pela iniciativa privada (os chamados TUPs), fora das áreas públicas. Assim, a venda da Codesa, para a qual o governo espera arrecadar R$ 1 bilhão, será, a rigor, a primeira desestatização plena de portos públicos no Brasil – um projeto piloto, que norteará outras investidas neste sentido. É um projeto arrojado, que merece toda a atenção.

         Em todo caso, é forçoso reconhecer que as privatizações este ano não deslancharam, e não apenas no setor portuário, mas de forma geral. Eram 64 projetos e 47 ficaram para 2021 e 2022, talvez até um adiamento acertado, visando a obter maior interesse e investimentos mais robustos. Entre outros, ficaram para o ano que vem a licitação da banda larga de Internet 5G, assim como (num inventário geral, sem grandes detalhamentos) a de 22 aeroportos, seis rodovias e de projetos ferroviários importantes, além da venda de 17 empresas estatais.

         Retomando o foco nos portos, avanços importantes também foram obtidos neste último mês do ano, com a participação de outras esferas de Poder e de iniciativas conjuntas do Poder Público e do setor privado. No que toca o Judiciário, foram relevantes as decisões do Tribunal de Justiça de São Paulo, em duas causas distintas, reconhecendo que não há incidência de ICMS na prestação de serviços multimodais prestados por armadores brasileiros entre portos nacionais.

         Esse tipo de decisão tem mais peso na estabilização de regras e até mesmo no estímulo à navegação de cabotagem do que qualquer novo projeto (ou puxadinho jurídico) que o governo federal possa vir a urdir. Estabilidade de regras e a segurança jurídica que dela advém são o melhor atrativo para novos investimentos nos setores portuário e de transporte marítimo.

Por parte da iniciativa privada neste fim de ano, há de se louvar o novo portêiner instalado pelo terminal MultiRio no Porto do Rio e a nova linha de cabotagem estabelecida pela Norsul entre o Sudeste e o Porto de Pecém, no Ceará, conforme noticiado na semana passada. Vale dizer, no caso da linha da Norsul, trata-se da expansão da navegação de cabotagem, independentemente da aprovação do contestado BR do Mar (Projeto de Lei número 4.199/2020), sobre o transporte marítimo entre portos brasileiros, aprovado na Câmara e agora em curso no Senado. Pontos para a Norsul.

Ficamos por aqui? Não. Importante iniciativa dos terminais ICTSI Rio, Triunfo Log e MultiRio, em conjunto com a Companhia Docas do Rio de Janeiro e a Marinha do Brasil, permitiram, em dezembro, a consolidação das operações noturnas de acesso de grandes embarcações ao Porto do Rio. Desde abril, as operações noturnas já vinham sendo realizadas com embarcações menores, mas a partir deste mês, com a entrada no porto do Ever Lifting, com 335 metros, de bandeira holandesa, a operação ganhou um novo patamar de excelência.

Prova de que quando setores público e privado usam a mesma bússola e o mesmo sextante (ou devemos dizer GPS?), a saber, idênticos critérios e propósitos, a navegação é mais segura, com ganhos para todos.

Por Nilson Mello.

segunda-feira, 14 de dezembro de 2020

Bolsonaro pelo Datafolha

Vida longa ou impeachment?

 


Ao longo deste ano fui me tornando um crítico deste governo. O fato de considerar que houve administrações piores, em especial no aspecto moral, porque nada é mais nefasto do que o assalto à máquina pública, não é suficiente para relevar os muitos erros da atual. A rigor, já haveria razões formais (legais) suficientes para um impeachment, a começar pelo uso da máquina pública em função de interesses privados, em diferentes episódios (não cansarei o leitor fazendo o inventário porque os fatos já foram mais do que noticiados).

Não é por outra razão que umas quatro dezenas de pedidos de impedimento do presidente da República dormitam nos escaninhos do Congresso, aguardando as condições políticas favoráveis como gatilho do processo de afastamento.

Essas condições políticas, contudo, parecem distantes neste momento. Não se trata aqui de advogar a favor do impeachment de Bolsonaro, mas apenas entender os cenários que se apresentam. Pesquisa da Datafolha divulgada nesta segunda-feira dia 14/12 dá 66% de aprovação para Bolsonaro (37% de bom e ótimo, mais 29% de regular), o mesmo índice de agosto, e o maior desde o início de seu mandato.

O patamar não é excepcional. Ao contrário, está abaixo de seus antecessores em seus primeiros mandatos: Dilma (logo quem!) chegou a ter 92% de aprovação (62% de ótimo e bom, mais 30% de regular); Lula, 85%; FHC, idem.

Temer teve baixa aprovação (29%, com apenas 6% de ótimo/bom), mas assumiu a Presidência com a defenestração da titular, o que por si só gera desgaste, além de ter herdado uma das maiores recessões econômicas que o país já enfrentara, o que contamina o “humor” da opinião pública. Além disso, sua imagem era indissociável dos governos do PT, sob forte rejeição.

Contrariando a maioria, arrisco dizer que, para o contexto, Temer foi um bom presidente, garantindo governabilidade ao país num momento muito difícil e adotando medidas econômicas importantes (algumas impopulares) que permitiriam uma administração mais equilibrada ao sucessor.

Aliás, um argumento que não deve ser usado para contestar o mecanismo de impeachment, previsto na Constituição e regulamentado em Lei, é justamente o desempenho dos vices que assumiram em lugar dos afastados. Ao menos no período pós-1988 (nova Constituição), o saldo é positivo.

Se Temer garantiu governabilidade e foi responsável na gestão econômica, Itamar Franco foi o “pai” do Plano Real, certamente o maior avanço que o país alcançou depois da redemocratização. O impeachment não é golpe, mas, sim, um mecanismo de depuração da própria democracia. A sociedade brasileira entende isso de forma bem clara, tanto que confirmou nas urnas (em 2016, 2018 e 2020) aquilo que o último processo de impedimento determinara: o fim dos governos do PT.

Que não se queira com isso pretender que o instrumento deva ser usado de forma recorrentemente. É traumático, tem um alto custo político e econômico, e por essa razão deve ser sempre a última instância, o derradeiro “remédio” a ser aplicado.

Onde estávamos?

Ah, sim, não há condições políticas para um impeachment do atual governo, em que pese os seus muitos erros – e podemos citar o desleixo na questão ambiental, a conturbada relação com outras nações, em especial as potências globais, as trapalhadas no enfrentamento da pandemia de Covid-19, a falta de compostura diante de temas relevantes e, o mais grave, a confusão entre o interesse público e o interesse privado subalterno.

Os problemas são evidentes. Apesar de tudo, após um período de muita vulnerabilidade no início do ano, o Planalto se entendeu com o Centrão e se articula para ter como aliados os novos presidentes da Câmara e do Senado. A blindagem no Legislativo vai-se consolidando.

Por outro lado, uma trégua com o Supremo Tribunal Federal foi estabelecida. O conflito com o órgão de cúpula do Judiciário era, até o primeiro semestre, uma fonte permanente de tensões e desgaste institucional, em prejuízo dos interesses do país.

Tudo considerado, podemos prever que este governo termine o mandato. Nessa hipótese (menos traumática, como dito acima), espera-se apenas que o determinismo ideológico – um traço que tanto criticávamos nas gestões do PT – dê cada vez mais lugar à racionalidade e aos critérios técnicos no embasamento das decisões. Na questão da pandemia, isso definitivamente não ocorreu.

Por fim, espera-se também – levando em conta o fisiologismo e os interesses nem sempre elevados que pautam o chamado Centrão – que o preço a ser cobrado pela blindagem no Congresso não seja de tal ordem que inviabilize importantes diretrizes com as quais este governo se comprometeu antes mesmo da posse, a começar pelo combate à corrupção. Do contrário, estaremos diante do maior estelionato eleitoral da história. A conferir.  

Por Nilson Mello

sábado, 12 de dezembro de 2020

Coronavírus

                                                       A vacina e os militares

            Todo o esforço no sentido de acelerar a distribuição no Brasil de uma das vacinas contra a Covid-19 é bem-vindo, desde que normas de saúde não sejam atropeladas, e a palavra final fique a cargo de quem tem competência para decidir a questão – a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). Para que essa condição seja cumprida, e tendo em vista a responsabilidade envolvida, é imperativo que a agência comporte-se também dentro do estrito critério técnico, livre de qualquer interferência política.

A imagem de isenção e equidistância depende em grande medida da transparência e, por consequência, de uma comunicação eficiente, algo que definitivamente não tem acontecido. Quando o diretor-presidente da agência, Antônio Barra Torres, passa informações de forma seletiva a um apresentador de programa de TV, mas afirma que não vai dar entrevista, “para não polemizar”, como ocorreu nesta quinta-feira, tudo o que está fazendo é contribuir para as polêmicas e as suspeitas de politização da questão.

Eis aí um caso típico em que o uso dos meios de comunicação por organismos governamentais deve ser reiterado e o mais transparente e plural possível, visando a esclarecer à sociedade. É função de seus dirigentes assumirem o papel de porta-vozes, sempre que solicitados, falando para todos, e não de forma reservada. Não tem sido a regra. Até se pode compreender a reticência do diretor-presidente da Anvisa em explicar pessoalmente e de forma clara à população em que pé estão os processos de homologação das diferentes vacinas em desenvolvimento.

Afinal, estamos no terceiro ministro da Saúde em ano de grave pandemia justamente porque os antecessores do atual – que já disse que está lá para cumprir ordens – adotaram posições técnicas diferentes daquela determinada pelo presidente da República. Como se diz na caserna (já que Barra Torres é militar), explica-se, mas não se justifica. Com 180 mil mortes, maior média móvel do mundo em dois meses, e 6,7 milhões de contaminados pelo novo coronavírus, o interesse público deve falar mais alto.

Seria justamente dos militares – tendo em vista a sua disciplina, a formação rigorosa e o inequívoco compromisso com a nação – que se esperaria excelência na organização e planejamento no momento de crise. Nem é preciso lembrar que o dever é com o Estado, não com um governo. Daí surge a incontornável pergunta: onde está o plano federal de vacinação?

O ministro Eduardo Pazuello apresentou há cerca de um mês um “plano preliminar” que, de acordo com nota técnica do Observatório Covid-19 BR, entidade que congrega 80 cientistas das mais respeitadas instituições de pesquisa do país, é um documento rudimentar, na verdade, “um esboço com tantas lacunas que dificilmente poderá ser seguido”. Para uma das integrantes do grupo, falta um “documento consubstanciado, bem detalhado e construído com racionalidade”.

Está mais do que na hora de os militares espalhados pelos gabinetes de Brasília mostrar a que de fato vieram. Ou imprimem competência ao governo no enfrentamento da Covid-19, ou é melhor que peçam para sair. Se não conseguem influenciar positivamente o Planalto, que não se deixem contaminar pelas recorrentes trapalhadas. Governos passam, Forças Armadas ficam.

(Nota de eslcarecimento: este artigo foi finalizado antes da divulgação da entrega, na sexta-feira, pelo governo ao Supremo, do que seria o plano federal de vacinação definitivo. O documento, de 94 páginas, contudo, gera controvérsias, porque não indica possível data de início da imunização e é contestado por três dezenas de especialistas,  consultores do governo que figuram como signatários do texto, mas que não deram aval para a sua versão final)

Por Nilson Mello

sexta-feira, 4 de dezembro de 2020

Logística

 As ferrovias brasileiras precisam se "falar"


(Obs: este artigo foi publicado concomitantemente com a agência Agência iNFRA)

Um dos maiores desafios logísticos do país é a diferença de bitolas (distância entre os trilhos) de suas linhas férreas, um conjunto de reduzida interconexão que, se fôssemos ser bastante rigorosos, considerando essa característica, não poderia ser chamado de malha. São, na verdade, sistemas que operam quase sempre de forma isolada, atendendo a uma demanda específica de transporte, resultado de um interesse (histórico) regional ou corporativo, e que precisariam ser interligados visando a dar maior eficiência ao transporte de carga no interior do país e, por extensão, à cadeia produtiva nacional.

O tema faz parte de um dos painéis do seminário virtual (webinar) Logística e Desenvolvimento no Estado do Rio de Janeiro – LogD RJ, a ser realizado no dia 8 de dezembro (Link https://youtu.be/m-RWBzfj-nA) reunindo alguns dos maiores especialistas brasileiros em transportes e logística e contando com a participação de autoridades e parlamentares com atuação no setor.

Especialista em transporte ferroviário, Paulo Roberto Filomeno lista em diferentes artigos técnicos ao menos cinco bitolas férreas no Brasil. Enquanto os Estados Unidos e os principais países europeus consolidaram no século XIX as suas malhas de forma uniformizada com a bitola de 4,7 pés (1,435 metros), o que corresponderia, segundo o folclore do setor, ao eixo da biga romana, o Brasil foi no sentido contrário ao da padronização, implantando, de forma quase aleatória, desde a bitola de 0,6 metro (Cantareira) e de 0,76 metros (Viação Férrea São João Del Rey - Tiradentes/MG), até a bitola de 1,6 metro, predominante, sobretudo, na região Sudeste.

Dessas diferentes bitolas, as significativas para o sistema ferroviário brasileiro, em quilômetros e principais centros atendidos, são as de 1,6 metro e a de 1,0 metro (a “bitola métrica”), sendo nelas, portanto, que devem ser concentrados os esforços de conexão. É preciso dizer também que, se falta ao Brasil uma “malha”, na melhor acepção do termo, faltam também ferrovias em número compatível com as dimensões de um país continental. De acordo com a ANTT (Agência Nacional de Transportes Terrestres), o país conta hoje com 27 mil Km de trilhos, praticamente a mesma extensão de vias férreas existente no século XIX, embora essas linhas não sejam mais as mesmas.

Para se ter ideia do déficit ferroviário nacional, basta dizer que temos cerca de 220 mil km de rodovias pavimentadas (e 1,72 milhão de Km contando as não pavimentadas). A erradicação desenfreada e inconsequente de ferrovias a partir dos anos 1950 até bem recentemente talvez seja um dos maiores crimes cometidos por diferentes governos na trajetória republicana – embora não de forma combinada e por razões diversas – contra o patrimônio nacional. O estado do Rio de Janeiro é hoje talvez o mais triste exemplo dessa erradicação ferroviária.      Até quase a metade do século passado, os trilhos que saíam da capital fluminense alcançavam toda a Região Serrana (Petrópolis e adjacências), o Vale do Café (Miguel Pereira, Conservatória, Rio das Flores etc.) e a Região dos Lagos, incluindo Cabo Frio. Essas antigas vias férreas ou não existem mais e suas antigas estações foram transfiguradas em escolas, “mini shoppings” e “centros culturais”,  ou ainda existem, mas estão inoperantes.

Dados de 2018 da própria ANTT indicam que 30,6% (8,6 mil km) das linhas férreas do país estão abandonados, sendo que 6,5 mil Km não têm qualquer condição de operação. Para uma melhor compreensão dos desafios ferroviários que devemos enfrentar, cabe lembrar que, para cada 1 mil Km de extensão territorial, temos no Brasil 3,6 km de ferrovias, enquanto que essa proporção nos Estados Unidos é de 32 Km para 1 mil Km de território.

Importantes investimentos em ferrovias estão em curso (ou com projetos prestes a sair do papel) no país neste momento, entre eles a complementação do trecho final da Ferrovia Norte-Sul, entre Goiás e São Paulo, a Fiol (Ferrovia de Integração Oeste-Leste), da Bahia ao Tocantins, a Fico (Ferrovia de Integração do Centro-Oeste), conectando Rondônia à Norte-Sul, em Goiás (parte integrante da Ferrovia Transoceânica, que ligará portos brasileiros aos do Pacífico, no Peru), e o próprio Ferroanel, que circundará a cidade de São Paulo, agilizando o tráfego ferroviário de carga no maior centro produtor do país.

Esses importantes projetos, de grande vulto, não devem obscurecer o relevo de projetos complementares, alinhados com o objetivo de integrar a “malha”, estabelecendo a conexão de ferrovias já existentes de bitolas distintas, uma vez que tais iniciativas pontuais, em geral de custo menor, podem ter um gigantesco impacto na melhoria da eficiência logística e na redução dos custos para a cadeia produtiva. Um exemplo de projeto de integração de baixo custo seria a interconexão da malha do Sul de Minas (de bitola estreita), operada pela Ferrovia Centro-Atlântica, com a malha predominante no estado do Rio de Janeiro (de bitola larga, de 1,6 metro), operada pela MRS Logística.

O chamado projeto do “Terceiro Trilho” – há muito discutido, mas inexplicavelmente negligenciado por vários governos nas diferentes esferas – permitiria que a produção do sul de Minas, importante polo do agronegócio, grande produtor de café, milho, cana-de-açúcar e algodão, seguisse um itinerário mais curto para o mercado externo ou mesmo para outras regiões do país, via Porto do Rio. Isso seria possível com a implantação da bitola mista num trecho de ferrovia de menos de 100 Km entre Barra Mansa, no Vale do Paraíba, até a capital fluminense. Há cerca de 15 anos esse projeto chegou a ser estimado em US$ 10 milhões pela Faciarj (Federação das Associações Comerciais, Industriais e Agropastoris do Estado do Rio de Janeiro), cifra irrisória face aos grandiosos projetos ferroviários mencionados acima.

As vantagens dessa interconexão são indiscutíveis. Hoje, a produção do sul mineiro e de parte do Centro-Oeste segue um percurso mais longo e oneroso para o mercado externo, seja pela rodovia Fernão Dias até São Paulo, e de lá ao Porto de Santos, seja por ferrovia, num percurso muito maior, até o Porto de Vitória. Com a interligação das duas malhas e o escoamento pelo Porto do Rio, haveria, portanto, redução dos custos com transporte. Vale dizer que o transporte ferroviário é mais seguro – o que significaria também menos gastos com apólices e outros serviços – e menos poluente, ampliando os benefícios do projeto para toda a sociedade. Ao projeto original do “Terceiro Trilho” de bitola estreita no trecho mencionado, surgiram alternativas técnicas que poderiam ser igualmente avaliadas, como a de uma estação de transbordo ferroviário em Barra Mansa ou a implantação de quatro trilhos, prevenindo o maior desgaste que a via férrea está sujeita no longo prazo  quando adotado o sistema de três trilhos.

Muitas lendas cercam o setor ferroviário, como a do padrão “biga romana” referido de início. Aliás, essa bitola, utilizada nos Estados Unidos e na Europa, é a empregada na Argentina e no Uruguai, o que dificulta a integração comercial regional. Consta que adotamos bitolas diferenciadas no Sul do país paradificultar as operações militares dos vizinhos, em caso de guerra. Será? Bem, o Rio de Janeiro nunca esteve em guerra com Minas e eis que suas malhas ferroviárias não se “falam”. Para o bem da cadeia produtiva e do comércio exterior, as ferrovias brasileiras precisam começar a se “falar”. O projeto do“Terceiro Trilho”, entre Barra Mansa e o Porto do Rio, já seria um bom início.

Por Nilson Mello

quarta-feira, 28 de outubro de 2020

Plebiscito no Chile

 

A Economia como resultado do Direito



           Uma Constituição de caráter liberal garantiu ao Chile ao longo de quatro décadas excelentes índices de desenvolvimento econômico, um dos melhores da América Latina e do mundo e, como resultado de uma economia mais forte, avanços sociais (educação, saneamento, saúde etc) muito acima da média dos países da Região. De forma soberana, porém, o povo chileno decidiu em plebiscito (mais de 70% dos votos de cerca de 14 milhões de eleitores) no último domingo dia 25 que não quer mais este arcabouço jurídico como base da sociedade.

Promulgada em 1980, a atual Constituição traz valores econômicos liberais, mas está – e nem poderia deixar de estar – irremediavelmente vinculada à ditadura Pinochet, período sombrio da história do país (1973-1990), o que facilitou a propaganda pela sua revogação, que agora terá curso. É de se presumir que a nova Carta estabeleça graus de intervenção e dirigismo estatais maiores, “em prol de mais avanços sociais”.

Em dez anos poderemos ver qual das duas receitas surtiu mais efeito. Sem tirar a razão dos chilenos, de quererem se ver livres de algo relacionado a um passado traumático, e sem que possamos saber ao certo qual será a orientação da nova Constituição no que diz respeito ao modelo econômico, não custa lembrar que países vizinhos antes ricos (Argentina e Venezuela) têm retrocedido como resultado do intervencionismo e do dirigismo estatais crescentes, temperados com altas doses de populismo.

O próprio Brasil apresenta média de crescimento econômico medíocre há décadas por conta de uma estrutura legal hostil ao empreendedor, contrária à liberdade econômica. Ainda que seja uma ciência, e como tal tenha as suas leis intrínsecas, a economia é também resultado de variáveis extrínsecas, que lhe são dadas pelo Direito – o arcabouço jurídico no qual se assenta. Se Estado opulento, impostos em profusão e grande número de estatais fossem o caminho do bem-estar social, estaríamos em primeiro lugar no ranking global. E não é o caso.

A Constituição que agora os chilenos querem é algo parecido com a nossa Constituição de 1988: mais que uma Carta de princípios, um programa de governo de orientação social democrata. Aqui não deu resultado. Fomentou-se uma casta de privilegiados no funcionalismo público, em prejuízo da coletividade. O Estado deixou de ser meio para se tornar um fim em si mesmo. Opulento. Não houve avanços econômicos e sociais relevantes, basta ver nosso baixo desempenho no ensino, mesmo se comparado a países em desenvolvimento.

Recente pesquisa da Confederação Nacional da Indústria (CNI) aponta que o Brasil é o sétimo país que mais gasta com funcionalismo público, mais até do que nações europeias que são referência do Welfare State. Gastamos o dobro que o Chile, justamente por conta de seu arcabouço liberal, que agora será revisto.

Masoquismo e Weimar

 Com boa dose de ironia e provocação, o que demonstra sagacidade, alguém me questionou, quando eu discorria sobre o plebiscito do Chile, se os chilenos decidiram revogar a atual Constituição por "puro masoquismo". Minha resposta foi de que a história está repleta de exemplos de decisões equivocadas de seus povos, e tomadas de forma democrática, pelo caminho das urnas. O exemplo mais notório é a ascensão de Hitler ao Poder, feita sem que se violasse uma linha ou inciso sequer da Constituição de Weimar. Não se pode ter certeza se a nova Constituição do Chile será melhor ou pior, mas é inegável que a atual pavimentou o crescimento econômico.

Devemos considerar que uma sociedade, em conjunto, entende que sempre pode dar um passo avante nas conquistas já feitas, o que é legítimo. Os chilenos acreditam que possam alcançar patamares ainda mais elevados de desenvolvimento com outro tipo de estrutura jurídica, menos liberal e, portanto, mais intervencionista, no sentido do aprofundamento do Estado do Bem-Estar. Repito: uma decisão soberana, legítima.

A partir da nova Constituição poderão comemorar o rompimento completo com os anos de ditadura. O risco é que, na elaboração da nova Carta, os valores e parâmetros econômicos que contribuíram para o desenvolvimento do país nessas últimas três décadas sejam totalmente eliminados. Esses valores e parâmetros não devem ser vistos como um entulho do “velho regime”, mas, sim, como um tributo pago à sociedade pelo  terror que produziu, pois foram a base do reconhecido sucesso do Chile em todos esses anos.

 Por Nilson Mello

quinta-feira, 22 de outubro de 2020

Pandemia

 

A politização da vacina



            Quando todos com um mínimo de acuidade política julgavam que o governo federal ganhara pontos junto à sociedade ao oficiar o Instituto Butantan a compra de 46 milhões de doses da vacina CoronaVac, desenvolvida em parceria com o laboratório chinês Sinovac – afinal, o importante é envidar esforços contra a pandemia –, eis que, em menos de 48 horas, o presidente Bolsonaro reverte as expectativas positivas, desautoriza o seu ministro da Saúde e manda suspender os entendimentos para aquisição.

Com o retrocesso, conseguiu fazer pior do que o seu desafeto e adversário político, o governador João Dória, que dias antes afirmara que a vacina teria caráter obrigatório em São Paulo. Não parece ser uma decisão razoável – nem política e juridicamente aceitável - obrigar a população a tomar uma vacina desenvolvida em tão pouco tempo, ainda que já tivesse sido aprovada – o que não é o caso.

O caráter compulsório, nas circunstâncias, tem um forte viés autoritário, antidemocrático. Não por outra razão, governos europeus adiantaram que as vacinas, quando aprovadas, de início não serão obrigatórias. Percebendo a gafe, o prefeito Bruno Covas, aliado de Dória e candidato à reeleição, se apressou a negar a obrigatoriedade na capital paulista.

Na marcha da insensatez da politização da pandemia, “nossos líderes” têm se superado nos arroubos. É claro que sempre haverá plateia para aplaudir insanidades. São muitos os delírios. Seguidores irredutíveis de Bolsonaro, a julgar pelo que postam nas redes sociais, consideram o seu veto ao processo de compra da CoronaVac uma atitude patriótica, visando a barrar a expansão do “comunismo chinês”.

Como se a China não tivesse há muito deixado de ser uma economia comunista, e como se não merecesse respeito por ser o nosso maior parceiro comercial, detentor de tecnologia de ponta, maior PIB do mundo, hoje, pelo critério de paridade do poder de compra. Tem sentido a postura hostil?

Embora não tenha a letalidade da Covid-19, a “cegueira ideológica” é uma patologia grave que distancia o seu portador da realidade. Acomete indivíduos de todo o espectro político, sendo que, quanto mais perto dos extremos (para um lado ou outro), mais suscetível estará à forma incurável. Aparentemente, após turvar a “visão”, a moléstia atinge também a capacidade cognitiva.

Ora, o que deve realmente importar neste momento é a qualidade das vacinas e a sua eficácia na imunização, não a origem dos laboratórios que as produzirão. Até o momento, nenhum dos laboratórios que desenvolvem vacinas no Brasil protocolou pedido de validação. Todas continuam em testes, incluindo a CoronoVac e a da Oxford/Fiocruz. O diretor-geral Anvisa, Antonio Torres, já avisou que o órgão se norteará por critérios científicos, longe da discussão política. Ufa!

O ofício do ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, ao Butantan manifestava, na verdade, a intenção de compra, não a compra efetiva, que estaria condicionada à aprovação do imunizante pela agência. Tudo dentro da normalidade e da razoabilidade, não fosse o atropelo do presidente Bolsonaro.  Mas isso também já deixou de ser novidade.

Por Nilson Mello

 

 

           

           

           

terça-feira, 13 de outubro de 2020

Portos

 

Questão de Estado, mais do que de governo



    As piores previsões – de uma queda de mais de 9% do Produto Interno Bruto (PIB) – começam a ser revistas para estimativas menos catastróficas. O Banco Central trabalha agora com um cenário de queda de 5% do PIB em 2020 e crescimento de 3,9% em 2021. Mais conservador, o FMI fala em recuo de 5,8% este ano e avanço na casa dos 3% ano que vem – ainda assim bem mais otimista do que as previsões iniciais. A crise foi profunda, mas a economia brasileira dá sinais claros de resiliência. Do agronegócio e dos portos continuam a vir as melhores notícias em um ano difícil.

A movimentação nos terminais tem crescido, no geral, sustentada pelo agronegócio, que não parou de exportar - e muito. No segundo trimestre, foram movimentadas 286,4 milhões de toneladas, incluindo os terminais públicos e privados (TUPs), o que representou um avanço de 7,9% em relação ao mesmo período do ano passado, de acordo com dados da Agência Nacional de Transportes Aquaviários (Antaq). Nos TUPs, especificamente, que respondem por 64% da movimentação, o aumento foi de 6,8% em relação ao segundo trimestre de 2019, para 185,3 milhões de toneladas.

O resultado positivo foi reflexo do aumento de embarque da produção agrícola, bem como de petróleo e derivados. Entre a produção agrícola, o destaque foi a soja, com crescimento de 32,6% dos embarques. No setor de petróleo, o aumento da movimentação foi de 23,6%, boa parte também destinada às exportações, principalmente para os EUA. O aumento da movimentação neste segmento veio acompanhado da boa notícia de que o Brasil se tornou o maior produtor de petróleo da América Latina. Nossa produção cresceu 11% no quadriênio 2016-2019, e o país deve se tornar um dos dez maiores produtores globais no decorrer da década.

Se deslocarmos o foco do segundo trimestre para uma análise mais ampla, os dados sobre movimentação nos portos permanecem consistentes. É o que indica as estatísticas da Confederação Nacional dos Transportes (CNT), que apontam crescimento de 3,9% de movimento nos portos brasileiros de janeiro a julho, na comparação com o mesmo período do ano passado, totalizando 638,6 milhões de toneladas. Na virada do semestre, o dinamismo não diminuiu, a julgar pelos dados já divulgados referentes a agosto no Porto de Santos, o maior do país. Os terminais santistas em conjunto registraram a maior movimentação de carga para o mês, num total de 13,7 milhões de toneladas, o que significa um aumento de 13,6% em relação ao mesmo período do ano passado.

O resultado de agosto representou também a sétima quebra consecutiva de recorde mensal em Santos, com uma movimentação 1,8% acima do recorde anterior, de julho. No total, de janeiro a agosto, o Porto movimentou 97,8 milhões de toneladas, volume 10,7% acima de 2019 e 10,2% acima de 2018. Os primeiros números divulgados sobre setembro são igualmente positivos. Nos portos paranaenses, por exemplo, o movimento cresceu 28% no mês passado em relação ao mesmo mês de 2019, para 5,26 milhões de toneladas embarcadas e desembarcadas. No acumulado do ano, o aumento no Estado já é de 11%, totalizando 43,9 milhões de toneladas. Assim como em Santos, o destaque é para os graneis sólidos.

Nada disso estaria ocorrendo se a produção agropecuária não estivesse a pleno vapor, e com perspectivas de aumento de produção. De acordo com a Companhia Nacional de Abastecimento (Conab), a safra 2020/2021 de grãos deve proporcionar uma colheita de 268,7 milhões de toneladas, um incremento de 4,2% em relação à anterior. A agropecuária é a responsável pelo bom desempenho das exportações e, por consequência, pela manutenção do nível de atividade nos terminais portuários, por onde passam mais de 95% de nosso comércio exterior.

 Por sinal, a balança comercial de setembro registrou o maior superávit desde 1989, com o saldo de US$ 6,1 bilhões, um aumento de 62,1% em relação ao mesmo período do ano passado, resultado de um volume crescente de exportações, apesar da pandemia do novo coronavírus, conjugado com a valorização do dólar. De janeiro a setembro, o saldo da balança foi de US$ 42,4 bilhões, 18,6% superior ao mesmo período de 2019. No acumulado do ano, as exportações somam US$ 156,7 bilhões.

São números como esses que levaram a Organização Mundial do Comércio (OMC) a informar em um de seus relatórios periódicos que o Brasil tem tido bom desempenho no comércio exterior, bem acima da média mundial. Segundo a organização, enquanto no mundo a retração nas exportações foi em média de 9,6%, o Brasil tem conseguido manter “estabilidade”, a despeito da crise.

Agronegócio e portos são setores interdependentes e estratégicos na retomada do desenvolvimento. Por essa razão, é importante ouvir o secretário Nacional de Portos e Transportes Aquaviários do Ministério da Infraestrutura, Diogo Piloni, afirmar que os programas de investimentos fazem parte de uma agenda de Estado, não de governo, e preveem aportes de R$ 10 bilhões na modernização de terminais e/ou em novas instalações até 2022. Neste sentido, nunca é demais lembrar que quanto mais estáveis e previsíveis forem as normas regulatórias e as regras licitatórias, maiores poderão ser os  investimentos.

Por Nilson Mello*

(*Sócio-diretor do Ferreira de Mello Advocacia e da Meta Consultoria e Comunicação. )

sexta-feira, 2 de outubro de 2020

Transferência de renda

 

Ao trabalho



Quando a fase é difícil, como nesses tempos de Covid-19, até o que seria uma boa notícia vem acompanhada de dado negativo. Os números do Cadastro Geral de Empregados e Desempregados (Caged) referentes ao emprego formal revelaram que o país teve o melhor mês de agosto em dez anos no mercado de trabalho, com 249,4 mil novas vagas preenchidas com carteira assinada, resultado de 1.239.478 contratações contra 990 mil demissões.  Houve saldo positivo de contratações nas cinco regiões, em todos os estados e nos cinco setores da economia – indústria, construção, comércio, serviços e agropecuária, mostrando uma recuperação consistente.

Agosto foi também o segundo mês seguido de saldo positivo, já que em julho 131 mil pessoas haviam sido contratadas com carteira assinada, interrompendo quatro meses (de março a junho) de saldo negativo, com 1,5 milhão de empregos perdidos naquele quadrimestre. O fato de a indústria ter liderado as contratações, com 92.893 mil novas vagas ocupadas, também é positivo, pela capacidade do setor de mobilizar outros segmentos.

A notícia ruim é que, a despeito dessa evolução nos últimos dois meses, o saldo é negativo ao longo do ano em 849,4 mil postos de trabalho. E hoje temos, segundo o IBGE, 13,1 milhões de pessoas procurando emprego, ou seja, 13,8% de desempregados, o maior número desde 1992. O quadro seria certamente pior não fosse a Lei 14.020/2020 (originada da MP 936), denominada Programa Emergencial de Manutenção do Emprego e da Renda, que permitiu a suspensão do contrato de trabalho e a redução temporária de jornada e salários durante a pandemia.

Os abismos sociais que o país historicamente enfrenta, recentemente aprofundados pela recessão de 2015/2016 e agora pela crise da pandemia do novo coronavírus, autorizam o Executivo a tentar desdobrar o auxílio emergencial concedido este ano e promover a sua incorporação a programas de transferência de renda já existentes, que ficariam, assim, robustecidos - seja lá o nome que se dê a eles. É uma questão de responsabilidade social do governo (deste e de qualquer outro) buscar tal caminho.  

Contudo, a verdadeira melhoria do emprego e da renda virá do desenvolvimento sustentável no longo prazo, o que depende de um ambiente legal mais favorável aos investimentos e ao empreendedor. Depende, portanto, das reformas estruturantes já em discussão ou a serem encaminhadas ao Congresso. Depende ainda de uma política educacional cada vez mais consistente. É preciso não perder o foco. Até porque aqui, novamente, temos a boa notícia mesclada a informações negativas.

A ideia de usar precatórios para financiar programas assistenciais equivaleria a passar um atestado de que não há mais qualquer preocupação com o equilíbrio das contas públicas (na contramão, inclusive, das reformas em debate), pois significaria transformar dívida do Estado em despesa permanente, num círculo vicioso que agravaria o rombo fiscal. Nesta quinta-feira (01/10), por sinal, o Tesouro já teve que pagar taxas maiores para tomar empréstimos no sistema financeiro, diante das incertezas geradas pela proposta.

Da mesma forma, usar dinheiro do Fundeb para financiar esses programas significaria reduzir a ênfase que a Educação deve ter no próprio crescimento econômico - um contrassenso. Justiça seja feita, as duas “soluções” não foram anunciada pelo governo, mas pelo senador Márcio Bittar, relator da PEC do Pacto Federativo - e já descartadas pelo Ministério da Economia. Porém, é preciso redobrar a atenção aos balões de ensaio. Transferência de renda, sim, mas sem contabilidade criativa. Ao trabalho.

*Jornalista e advogado

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BR DO MAR

 

O que a cabotagem realmente precisa



Nelson L. Carlini e Nilson Mello*

O Projeto de Lei 4.199 de 2020, também conhecido como BR do Mar, é dessas iniciativas cercadas de boas intenções que, contudo, não deve surtir o efeito esperado, uma vez que parte de diagnósticos equivocados. Encaminhado ao Congresso no início de agosto, o PL tem como objetivo estimular o crescimento do transporte de cabotagem, isto é, entre os portos nacionais, e, para tanto, considera que o principal entrave ao setor é a pequena disponibilidade de navios. Pressupõe, também, que o modal está estagnado, registrando baixo crescimento. Com trâmite de urgência pedido pelo Planalto, o PL passaria a trancar a pauta na Câmara no dia 28, mas a matéria não pôde ser apreciada em face do encerramento da ordem do dia**.

Ambas as premissas do projeto são falsas, mas, teoricamente, com base nelas, o PL estabelece medidas para que empresas estrangeiras possam ampliar a operação na cabotagem, como se essa participação hoje fosse reduzida, o que também não é verdadeiro, pois 95% do transporte de cabotagem já são feitos por empresas sob controle estrangeiro. Para completar, o PL abre indiretamente a possibilidade de financiamento a estaleiros estrangeiros, para a produção de embarcações no exterior, em detrimento da indústria naval nacional (ver Nota de Esclarecimento ao término do artigo). Em vez de atrairmos mais financiamentos para o Brasil, estaríamos, na prática, disponibilizando recursos para garantir o emprego de operários chineses, coreanos e japoneses.

Na grande maioria dos países do mundo, mesmo nas economias mais abertas, como os Estados Unidos, o transporte de cabotagem é reservado a empresas nacionais, com tripulações nacionais e, de preferência, operando navios produzidos no próprio país. E isso se deve a questões estratégicas atinentes à soberania, à segurança e à economia, que guardam estreita relação entre si. Por sua vez, a vinculação da indústria naval ao modal é feita como forma de estímulo à produção e à geração de empregos. São setores que, por razões óbvias, devem integrar uma mesma cadeia econômica, com crescimento recíproco, retroalimentado, a exemplo do que o agronegócio representa para a indústria de implementos agrícolas, e vice-versa.

A cabotagem é um dos modais que mais crescem no Brasil, e hoje representa 11% de nossa matriz de transportes. Na década passada, cresceu em média 10% ao ano, de acordo com dados da Agência Nacional de Transportes Aquaviários (Antaq) e da Confederação Nacional dos Transportes (CNT).  De 2010 a 2018, o crescimento do modal foi de 28%, saltando de 127 milhões de toneladas transportadas para algo próximo aos 164 milhões de toneladas. De 2017 para 2018, o crescimento no volume transportado foi de 16,7%. 

Em 2019, em particular no primeiro semestre daquele ano, comparado ao mesmo período de 2018, quando houve a greve dos caminhoneiros, o crescimento do modal foi ainda mais robusto, de 24,7%. Os “donos” da carga perceberam que não poderiam ficar reféns das contingências (políticas e estruturais) das rodovias – ou do transporte rodoviário. O transporte marítimo pelos mais de 8 mil km de costa brasileira é mais seguro e muito menos poluente do que o transporte rodoviário. Por essa razão, é razoável que o governo pretenda dar maior estímulo ao seu desenvolvimento – embora, como demonstram os números acima – esse crescimento esteja sendo sustentável ao longo do tempo.

Contudo, não será ofertando um número maior de navios que se dará novo impulso ao modal. Muito menos com navios fabricados no exterior, à custa do desmonte de nossa indústria naval. Isso vai contra os interesses nacionais. Os verdadeiros entraves do setor não estão relacionados à falta de embarcações. Vale dizer que a taxa de ocupação média da frota que opera na cabotagem está em torno de 75% (25% de ociosidade). O gargalo, portanto, não está aí.

Os grandes óbices à cabotagem são o excesso de burocracia nos portos - onde há uma dezena de órgãos intervenientes, sem a devida uniformidade de atuação -, as elevadas taxas portuárias, a obrigatoriedade dos serviços de praticagem (pilotos específicos para cada porto), os elevados encargos trabalhistas das tripulações brasileiras e o alto preço do bunker (combustível naval), sobre o qual incide o ICMS, ao contrário do diesel rodoviário, subsidiado. Nenhum desses entraves é enfrentado pelo BR do Mar, que prefere apostar numa maior entrada em serviço de navios estrangeiros, fabricados no exterior, com financiamento indireto brasileiro. O que deve então ser feito em prol da cabotagem?

De forma prática, acabar com a incidência de ICMS sobre o bunker, tornando a competição com o modal rodoviário justa; eliminar a obrigatoriedade do serviço de praticagem para os navios que operam regularmente na cabotagem; permitir o livre trânsito de carga entre os portos nacionais, sem burocracia; e reduzir os encargos trabalhistas sobre as tripulações brasileiras, bem como equiparar o número de tripulantes a níveis internacionais, o que hoje não ocorre, isso enquanto não se têm uma efetiva reforma trabalhista que desonere de vez o emprego no Brasil.

Complementarmente, como concessão às empresas internacionais que operam no Mercosul, determinar a abertura do mercado entre Brasil. Argentina e Uruguai. Paralelamente, conceder às embarcações produzidas no Brasil prioridade na renovação de contratos de transporte de afretamento marítimo de longo prazo, nos afretamentos por viagem. Por fim, conceder às Empresas Brasileiras de Investimentos Navais (EBIN) isenção de Imposto de Renda, a exemplo do que está sendo feito com os fundos de infraestrutura, quando o investimento for realizado em construção de navios no Brasil. Esse roteiro é desafiador, mas muito mais realista.

*Nelson L. Carlini é engenheiro naval e Nilson Mello, advogado e jornalista.

** O pedido de urgência deverá ser retirado pelo Executivo.

 (Obs: Artigo publicado originariamente pela Agência iNFRA, em 25 de setembro, conforme link https://www.agenciainfra.com/blog/infradebate-o-br-do-mar-e-o-que-a-cabotagem-realmente-precisa/)

 

Nota de esclarecimento dos autores sobre o financiamento:

Em nosso artigo “O BR do Mar e o que a cabotagem realmente precisa”, publicado pela Agência iNFRA em 25/09, dissemos que o “PL abre a possibilidade de financiamento a estaleiros estrangeiros, via Fundo da Marinha Mercante (FMM), para a produção de embarcações no exterior, em detrimento da indústria naval nacional”, o que suscitou dúvidas por parte de entidades ligadas ao setor de navegação.

De fato, o Projeto de Lei 4.199 não estabelece expressamente essa alternativa. Contudo, na prática é o que indiretamente aconteceria, na medida em que a essas empresas com sede no Brasil, mas controladas por matriz no exterior, seria dado acesso ao Adicional de Frete para Renovação da Marinha Mercante (AFRMM).

O PL autoriza a importação sem restrições (isenção) de um navio, mas a matriz poderá criar quantas subsidiárias considerar convenientes para transferir para o Brasil a quantidade de navios que entender necessária à sua operação na cabotagem. Ao mesmo tempo, a matriz no exterior poderá construir embarcações em outros países, uma vez que tem colocação assegurada para as suas embarcações usadas: o mercado brasileiro de cabotagem.

Na prática, como essa “triangulação” poderá acontecer? De acordo com os incisos I e II do artigo 11 do PL 4.199 (BR do MAR), essas subsidiárias passam a fazer jus aos recursos do AFRMM, tributo pago por importadores e que é destinado à quitação do financiamento do Fundo da Marinha Mercante (FMM), teoricamente, usado na construção de embarcações em estaleiros brasileiros.

No caso do segmento de contêineres, por exemplo, esses recursos seriam suficientes para a matriz amortizar ou quitar o financiamento usado para pagar navios produzidos em outros países. Na prática, é o que ocorrerá, razão pela qual dissemos que o “PL abre a possibilidade de financiamento a estaleiros estrangeiros, via Fundo da Marinha Mercante (FMM), para a produção de embarcações no exterior, em detrimento da indústria naval nacional”.

Um aspecto ainda mais controverso é que, no caso de origem ou destino Norte e Nordeste, o AFRMM não é pago à empresa de navegação pelo dono da carga (embarcador), mas na forma de ressarcimento do Fundo de Marinha Mercante (FMM).

Isto significa que o navio afretado, construído no exterior, fará jus ao recebimento de recursos originalmente destinados a pagamento de financiamentos para construção no Brasil. Com esta possibilidade aberta pelo artigo 11 do 4.199 esses recursos do FMM estariam liberados à EBN para amortizar a compra de navios, mesmo na China, Japão, Cingapura e Coréia, entre outros.  (NLC e NM)

 

sábado, 26 de setembro de 2020

Pandemia

 

E o retorno às aulas?


         Os dados do Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb) divulgados no último dia 15 pelo MEC revelaram evolução no ensino médio, avanço tímido no ensino fundamental, disparidade entre os estados e entre as redes pública e privada, bem como uma realidade educacional ainda distante das metas estabelecidas. Criado em 2007, com avaliações a cada dois anos - considerando as disciplinas de português e matemática e as taxas de aprovação e evasão -, o Ideb é um dos principais instrumentos de aferição da educação do país.

         Os números dizem respeito ao levantamento realizado em 2019, com a participação de cerca de 35 milhões de alunos, do fundamental ao último ano escolar, matriculados em 199 mil escolas públicas e particulares. O segmento que apresentou melhor evolução nessa edição, o ensino médio, alcançou 4,2 pontos (numa escala de 0 a 10), 0,4 a mais que em 2017 e o melhor resultado desde o início da série histórica. Contudo, a meta prevista para o período era de 5 pontos, alcançada por apenas um estado: Goiás.

         Um dado relevante é que, no ensino médio, as notas dos alunos da rede estadual tiveram avanço maior (0,4 contra 0,2) do que as dos estudantes das particulares, embora, no geral, o desempenho da rede privada ainda seja melhor do que o da rede pública (nota 6.0, contra 3,9).

Já nos primeiros anos do ensino fundamental, o avanço geral foi mais tímido, de 0,1 ponto, para nota 5,9, superior à meta para este segmento, que era de 5,7 pontos. Nove estados conseguiram nota superior a 6: Distrito Federal, São Paulo, Minas Gerais, Espírito Santo, Paraná, Santa Catarina, Rio Grande do Sul, Goiás e Ceará. Nos anos finais do ensino básico, o aumento das notas foi maior (0,2), mas, em compensação, os 4,9 pontos alcançados no geral ficaram abaixo da meta, de 5,2 pontos. Neste segmento, apenas sete estados cumpriram suas metas isoladas: Amazonas, Alagoas, Pernambuco, Piauí, Ceará, Paraná e Goiás.

O Rio de Janeiro não tem do que se orgulhar. Além de não se destacar em nenhum segmento, um percentual muito reduzido de seus municípios alcança as metas do Ideb no ensino fundamental: 18,3% nos anos iniciais e meros 4,3% nos anos finais. O mau desempenho se deve, ao que tudo indica, ao baixo rendimento da rede pública, principalmente no interior do estado. Para se ter ideia do atraso fluminense, o Ceará, líder neste quesito, tem 98,9% dos municípios atingindo a meta nos anos iniciais do ensino fundamental e 83,7% nos anos finais.

Vale notar que é justamente no Rio de Janeiro, estado de fraquíssimo desempenho no Ideb - apesar de ex-capital da República e segunda maior economia da Federação - que a questão do retorno às salas de aula tem sido mais politizada e, por consequência, judicializada. Atendendo a pedido do Sindicato dos Professores do Município, o Tribunal de Justiça do Estado e o Tribunal Regional do Trabalho já deram decisões cautelares suspendendo o decreto da Prefeitura de retorno às aulas.

Na última segunda-feira, o procurador Geral da República, Augusto Aras, decidiu entrar na disputa e enviou manifestação ao Supremo pela manutenção da proibição de retorno. Pena que, em meio a uma disputa de indisfarçado caráter político, os especialistas não estejam sendo ouvidos. No último dia 14, a OMS, o Unicef e a Unesco divulgaram documento conjunto recomendando o retorno às aulas, porque entendem que agora “a prioridade deve ser a continuidade da educação das crianças”, de acordo com protocolos de segurança.

Infelizmente, no Rio já pode tudo: praia, shopping, academia de ginástica, clubes, bares e restaurantes. Menos alunos nas escolas.

Por Nilson Mello