terça-feira, 31 de março de 2020

Comentário


Nero e Bolsonaro


O último imperador romano não foi Nero, como “informou” a reportagem da Globonews nesta segunda-feira 30 de março (reprisada hoje cedo), comparando-o a Bolsonaro, mas Flávio Romulo Augusto, de apenas 15 anos. Naquela época, 475 DC, o Império do Ocidente já estava desabando, pressionado pelas “invasões bárbaras”, em especial pelos hérulos, tribo germânica liderada por Odoacro.
Roma caiu em 476, o que marca o início da Idade Média, que duraria até a queda de Constantinopla (Bizâncio), o Império do Oriente, em 1453, tomada pelos otomanos do sultão Mohamed II. Tem início aí outro Império, o Otomano, que duraria até o início do Século XX, após sair enfraquecido da Primeira Guerra Mundial.
O Império Otomano rivalizou, ao longo dos séculos, com o Império Austro-Húngaro e com as grandes potências ocidentais, em especial Inglaterra e França. Mas isso é um parêntese histórico. Sobre Nero, ou Nero Claudio Cesar, vale dizer que governou no início da Era Cristã, entre 54 e 68 DC, de acordo com Suetônio (“A vida dos 12 Césares”, Ediouro - foto), tendo sido sucedido por outros tantos imperadores - Galba, Óton, Vespesiano, Domiciano...
A analogia entre Nero e Bolsonaro é em parte válida. O presidente coloca fogo no próprio governo, ao ir contra orientações de seu Ministério da Saúde, não exatamente no país, já que as instituições continuam funcionando a contento. Há dúvidas, entre historiadores, se Nero realmente incendiou Roma ou se “apenas” assistiu à sua destruição passivamente enquanto tocava flauta.
O que é certo, e nos causa repulsa, é que executou a própria mãe, Agripina (irmã de Calígula), de quem fora amante. A obra mencionada é um clássico de fácil leitura, escrita por um contemporâneo, razão de seu sucesso até os dias de hoje. Os dados históricos - como quem foi o último imperador - são checáveis no Google, algo que a reportagem da Globonews poderia ter feito. (Por Nilson Mello)


Artigo


As perspectivas dos portos e do
transporte marítimo após a pandemia
(este artigo foi publicado originalmente pela Revista Portos e Navios, em 30 de março de 2020)




Nilson Mello*
         Os maiores obstáculos à operação dos terminais portuários brasileiros, com reflexos negativos no transporte marítimo e, portanto, no comércio exterior, não estão, na verdade, nos portos. A sentença parece paradoxal, mas, a rigor, exprime uma realidade que merece ser assimilada como lição, sob o risco de continuarmos a estabelecer metas equivocadas, ou nos esquecermos de estabelecê-las, negligenciando as medidas certas e retroalimentando problemas que afetarão a retomada de nosso crescimento econômico. Os obstáculos são externos e têm dupla natureza: estrutural e legal-institucional.
Nas últimas décadas, em especial a partir da Lei 8.630 de 1993, quando ocorreram as primeiras licitações nos portos, o setor recebeu um considerável aporte de investimentos. Calcula-se que de lá para cá mais de R$ 35 bilhões foram investidos em novos terminais e na modernização de instalações já existentes, tanto as do segmento de contêiner quanto as de graneis líquido e sólido, o que garantiu ao setor um novo patamar de eficiência e produtividade.
Esse processo de revitalização foi fundamental para evitar que houvesse um gargalo estrutural, ou até mesmo um colapso na movimentação de cargas, pois a dinâmica do comércio global no médio e no longo prazos, a despeito de crises conjunturais ou pontuais - como a que se enfrenta hoje decorrente da Covid-19 -, é de crescimento. Tornou-se mais relevante ainda se considerarmos que 95% do comércio exterior brasileiro passam pelos nossos terminais portuários, espalhados por três dezenas de portos ao longo de 7,3 mil km de litoral.
A necessidade de permanentes investimentos no setor pode ser confirmada pelo aumento da tonelagem das embarcações que transportam todo tipo de mercadoria ao redor do mundo, fenômeno que decorre não apenas da incessante expansão das trocas internacionais, como da busca de economia em escala em meio a esse crescimento. No início dos anos 1980, os maiores porta-contêineres em operação no mundo eram de 1,2 mil TEUs (medida padrão para contêineres de 20 pés), enquanto hoje essas embarcações já chegam aos 23 mil TEUs de capacidade – um aumento de porte de mais de  700%, em três décadas.
Aqui e no mundo, a infraestrutura portuária precisa ser continuamente adaptada para receber navios maiores, algo incontornável. Por isso, mesmo com os significativos avanços feitos nos terminais nas últimas décadas, novos investimentos devem ser realizados, a fim de prevenir gargalos, principalmente tendo em vista a retomada do crescimento no Brasil e no mundo. De acordo com o Banco de Desenvolvimento da América Latina (CAF), o Brasil precisa investir R$ 25 bilhões nos seus portos nas próximas duas décadas, de modo a acompanhar o inexorável crescimento do tráfego marítimo e evitar possíveis restrições que geram ineficiências e comprometem a competitividade de sua cadeia produtiva.
O setor privado está pronto a fazer esses investimentos. Somente o segmento de contêineres, que compreende cerca de vinte modernas instalações nos 15 principais portos brasileiros, gerando dez mil empregos diretos, tem projetos de instalação, modernização e ampliação da ordem de R$ 5 bilhões nos próximos cinco anos, de acordo com entidades que representam o setor. Contudo, para que esses investimentos efetivamente se concretizem, é imperativo que se tenha um ambiente institucional estável, com clareza e previsibilidade nas normas que disciplinam o setor. Esse ambiente de estabilidade, com segurança jurídica, porém, nem sempre tem sido a tônica nos últimos anos, e eis aí obstáculo de ordem legal referido de início.
 As fontes dessa insegurança são muitas, entre elas, o excesso de obrigações acessórias de nosso sistema tributário, com quase 80 tributos de diferentes naturezas, cada qual com uma infinita gama de normas, bem como o alto grau de burocracia resultante da atuação, nos portos, de uma dezena de órgãos públicos, das três esferas, com distintas competências e, não raro, atribuições sobrepostas, sem a devida uniformização. As normas suplementares atinentes à tributação e às atividades de regulamentação, regulação e fiscalização do Poder Público, emanadas desses vários órgãos, nem sempre trazem a clareza, a objetividade e, principalmente, a padronização que um ambiente de negócios saudável requer.
A própria morosidade do Judiciário contribui para aumentar a instabilidade e a insegurança institucional, sendo ela também, em grande parte, resultado - é preciso salientar - desse arcabouço legal excessivamente detalhista, de caráter nitidamente dirigista, que potencializa os litígios. Contribui sobremaneira para este quadro desfavorável aos negócios e, claro, para elevar o número de conflitos administrativos e sobrecarregar o Judiciário, a atuação muitas vezes desmedida dos diferentes entes federados que, na sua voracidade arrecadatória, tomam decisões em desacordo com o ordenamento jurídico.
 Vai neste sentido a pretensão manifestada pelas secretarias municipais de Fazenda de cidades onde há terminais portuários de cobrar, conforme recente notícia veiculada pela imprensa, o Imposto sobre Serviços (ISS) das companhias de navegação (os armadores) pelos valores que estes recebem dos clientes (exportadores, importadores, consignatários de cargas), a título de ressarcimento, pelos serviços de movimentação e organização de contêineres nos terminais, a chamada THC (Terminal Handling Charge, em inglês).
A cobrança é flagrantemente ilegal, na medida em que representaria uma dupla tributação em cima de um mesmo fato gerador, considerando que os terminais portuários já recolhem ISS pela movimentação de contêineres em seus pátios de manobras e armazéns - os mesmos contêineres que são trazidos pelos navios e perfilados e empilhados nos terminais. Na verdade, o armador não presta serviços portuários e, portanto, não pode estar sujeito ao ISS. Não é contribuinte de fato ou de direito do imposto. Pela dinâmica, o operador portuário cobra a THC da empresa de navegação, e esta embute o ressarcimento em seu preço final, previamente ajustado com o cliente (importadores e exportadores). 
Vale dizer que, além de outros tributos, em especial taxas, o armador recolhe ICMS no transporte de carga entre portos nacionais. Por sua vez, a cobrança da THC pelos terminais portuários é mais do que justa e legítima, uma vez que corresponde à prestação de um serviço complexo efetivamente realizado: a movimentação, organização e guarda de cargas.
À parte as questões de ordem legal-institucional, os portos e, por extensão, o transporte marítimo, enfrentam os obstáculos externos de natureza estrutural, como dito de início, os quais também podem desencorajar investimentos no setor. Por mais modernos e eficientes que nossos terminais possam ser hoje, em virtude dos significativos aportes de recursos feitos em ampliação, equipamentos, capacitação de pessoal e adoção de novos procedimentos, sua eficiência e produtividade ficam em parte comprometidas – não sendo aproveitadas pela cadeia produtiva – devido às restrições de acesso às suas instalações.
No acesso terrestre, a integração intermodal ainda incipiente é o maior problema. No acesso por mar, o recorrente atraso nas obras de dragagens, tanto as emergenciais como as de manutenção, constituem o maior óbice. Os navios porta-contêineres de maior porte em operação do mundo não acessam nossos portos. E isso ocorre, sobretudo, porque as dragagens nos canais de acesso aos modernos terminais são deficientes. Em alguns portos, devido a problemas nas vias navegáveis, as embarcações enfrentam restrições em suas manobras, inclusive a impossibilidade de operar com carga total, o que coloca em xeque a economia de escala.
O Programa Nacional de Dragagens prevê um total de R$ 3,8 bilhões em investimentos nessas obras nos principais portos brasileiros até 2022. Espera-se que este cronograma de fato possa ser mantido e que erros na contratação desses serviços no passado não mais se repitam. O ideal seria o envolvimento da inciativa privada nesse processo, analogamente ao que ocorre nas rodovias, participando da manutenção das vias navegáveis, do controle de acesso e na ampliação de canais.
Para o acesso terrestre, o empenho por parte do governo federal no sentido de tirar do papel importantes projetos rodoviários e ferroviários, a fim de garantir maior eficiência à circulação de cargas entre os centros produtores e os terminais, será bem-vindo. Tendo em vista as óbvias limitações do orçamento público, as parcerias público-privadas podem representar um caminho ágil e seguro na superação desses desafios. Vale ressaltar que grande parte dos obstáculos estruturais também decorre dos obstáculos legais e institucionais. Basta dizer que o país tem no momento 14 mil obras paradas devido a inadequações de ordem técnico-legal. Uma parcela significativa dessas obras é da área de infraestrutura e a sua retomada, certamente, teria reflexos positivos no setor portuário.
Considerando o que foi dito aqui, é imperativo que os Três Poderes, nas diferentes esferas, compreendam a importância de o país caminhar para um ambiente de mais estabilidade e segurança institucional, e se empenhem, dentro de suas competências, na consecução desse objetivo. Reformas que tornem o Estado mais eficiente, simplifiquem o nosso sistema tributário, reduzam a burocracia e garantam clareza à atuação de agências reguladoras, livrando-as de interferência indevida, são vértices do desenvolvimento portuário e brasileiro que não devem ser negligenciados. 
Apesar do momento conjuntural adverso, que nos faz concentrar esforços em questões emergenciais relacionadas à pandemia do novo coronavírus, não podemos perder o foco nas medidas de médio e longo prazos que recolocarão o Brasil no rumo do crescimento. Há muito trabalho pela frente.

*Nilson Mello - advogado e jornalista, pós-graduado em Economia e em Direito Tributário, é sócio diretor da Meta Consultoria e Comunicação e do Ferreira de Mello Advocacia.


terça-feira, 24 de março de 2020

Artigo


Duas novas leis poderão reduzir os
litígios tributários, que alcançam R$ 3,4 trilhões



Nilson Mello*

Os litígios tributários no Brasil, incluindo as disputas nas esferas administrativa e judicial, alcançam R$ 3,4 trilhões, o equivalente à metade do Produto Interno Bruto (PIB) de 2018, de acordo com dados do governo federal. O elevado número de tributos, com distintas naturezas, competências e destinações, potencializa contenciosos e gera insegurança jurídica. O emaranhando de leis e regulamentos - alguns de difícil compreensão e, mais grave, conflitantes entre si - é uma das duas principais justificativas para que façamos uma Reforma Tributária – a outra é a elevada carga que temos hoje, na casa dos 35% do Produto Interno Bruto (PIB)[1]. Como veremos na conclusão deste artigo, duas iniciativas recentes devem representar uma efetiva contribuição para reduzir essas disputas judiciais e desbloquear ativos importantes para a retomada da economia.
De 1988 até hoje foram editadas no Brasil, em matéria tributária, mais de 390 mil normas[2], o que equivale a mais de 1,92 normas tributárias por hora, considerando apenas os dias úteis. Num breve “inventário” do atual sistema, podemos dizer que o país tem hoje 77 tributos em vigor, entre impostos, contribuições e taxas, sem contar os tributos previstos para eventos excepcionais, como os empréstimos compulsórios, a serem instituídos por Lei Complementar, conforme prevê o artigo 148 da Constituição, a fim de fazer frente a despesas extraordinárias em caso de calamidade pública, guerra ou sua iminência, bem como no caso de investimento público de relevante interesse nacional. Cada um desses tributos tem a sua própria Lei e a sua própria regulamentação em regras suplementares, lembrando que tributos de mesma natureza têm normas distintas de acordo com o ente federado (Distrito Federal, Estados e municípios) que o institui.
Na “categoria” impostos, têm-se hoje seis tributos de competência federal, três estaduais e três municipais. Entre as taxas, obrigatoriamente de destinação certa, são 29, desde as municipais, como as instituídas para a coleta de lixo, até as federais, como as destinadas a custear as pesquisas minerais ou os serviços metrológicos. Entre as contribuições, são 37, incluindo as que incidem sobre a folha salarial, como PIS/Pasep e Cofins, até as que ajudam a dar suporte ao ensino, caso do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE), ou à indústria naval, caso do Fundo Nacional de Marinha Mercante (FNMM).
Todo esse arcabouço legal é por si só bastante complexo e exige, por parte do contribuinte, em especial as empresas, que estão sujeitas ao recolhimento de vários desses impostos, taxas e contribuições, acrescido de obrigações acessórias (um conjunto de documentos declaratórios que comprova a legalidade dos procedimentos contábeis efetuados), uma estrutura mínima de planejamento e gestão tributária, a fim de prevenir erros e reduzir riscos.
Com muita frequência, a implantação desses tributos, ao longo do tempo, gerou discussões doutrinárias e embates judiciais acerca de sua constitucionalidade e legalidade, como, por exemplo, questões relativas à possível invasão de competências, à quebra do princípio da não cumulatividade (impostos incidindo sobre impostos), da anterioridade ou do pacto federativo, bem como à violação de outros preceitos constitucionais. Esse quadro contribuiu para aumentar o “estoque” de processos de natureza fiscal, sobrecarregando o Judiciário. Hoje, calcula-se que 40% dos processos que abarrotam nossos tribunais são de natureza tributária e estão relacionados à execução fiscal. O custo da “judicialização” da cobrança desses créditos tributários equivale a 1,3% do PIB[3].
Saliente-se que mais complexas do que as leis que deram previsão ou instituíram toda essa gama de tributos são as normas subsidiárias editadas, ao longo do tempo, pela Receita Federal, bem como pelas fazendas públicas estaduais e municipais — representando a maior parte das 390 mil normas referidas acima —, além de regras da administração pública, emanadas de agências reguladoras, autarquias e demais órgãos públicos, com potencial inferência na esfera tributária, que precisam ser observadas não apenas pelas pessoas jurídicas, mas pelo contribuinte pessoa física.  
Parece já haver consenso no país de que esse gigantesco arcabouço legal representa um arsenal burocrático que atinge diretamente o setor produtivo, minando a sua produtividade e a sua competitividade. O Brasil é o país em que as empresas gastam mais tempo para pagar tributos e cumprir suas obrigações acessórias[4] - em média, 1.958 horas. No Chile, país que apresenta as maiores taxas médias de crescimento econômico na América Latina nas últimas décadas, empenham-se apenas 191 horas no cumprimento dessa tarefa. Entre os países integrantes da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), a média é de 160,7 horas. São dados como esses - mas não apenas esses - que fazem com que o nosso país esteja tão mal colocado no ranking de ambiente de negócios do Banco Mundial, figurando na 125º lugar entre 190 nações.
Portanto, medidas no sentido da simplificação do sistema tributário são bem-vindas, assim como são bem-vindas iniciativas que venham a criar mecanismos alternativos de resolução de litígios, contribuindo para a redução (“desjudicialização”) do número de processos envolvendo o Fisco. A célere regularização do crédito tributário, além de descongestionar o Judiciário, desbloqueia ativos para ingresso direto na economia, seja via novos aportes de investimento pelo governo, em função do reforço de caixa, seja via liberação de recursos do próprio setor produtivo. Os dois projetos de Reforma Tributária que se encontram neste momento no Congresso (PEC-110, na Câmara, e PEC-45, no Senado), contudo, não têm, à primeira vista, a capacidade de atacar diretamente o fenômeno do excesso de “judicialização”, ainda que possam estar em linha com a ideia de simplificação, na medida em que unificam alguns tributos em um único imposto de valor agregado: o IBS – Imposto sobre Bens e Serviços.
Na verdade, dada a complexidade da dinâmica tributária brasileira, conforme apontam os dados mencionados no presente artigo, dificilmente um só projeto terá a capacidade de equacionar todas as variáveis potencialmente antitéticas que condicionam o atual sistema, quais sejam, redução de tributação com impulso ao desenvolvimento, aliada à simplificação e, ao mesmo tempo, à manutenção da capacidade financeira do Estado, à preservação do pacto federativo e ao respeito ao princípio da progressividade dos impostos (quem  ganha mais pagando mais), entre outros.
Como assim antitéticos? Por exemplo, tanto a PEC-45 quanto a 110 podem, de fato, contribuir para desonerar o setor produtivo, dando impulso ao crescimento econômico, mas não contribuem para a progressividade tributária, uma vez que o imposto de valor agregado que estabelecem (IBS) incide sobre o consumo, prejudicando as camadas de mais baixa renda. Não há nos dois projetos medidas de caráter mais amplo capazes de conciliar essas e outras variáveis relevantes, razão pela qual não deveríamos dar o nome de “reforma” a esses dois projetos que, a rigor, unificam vários tributos num único imposto, mas não têm o condão de reestruturar todo o sistema.
A complexidade da reestruturação talvez possa explicar a demora do Executivo em enviar a sua própria proposta de reforma ou em “adotar” um dos referidos projetos do Congresso. Talvez essa postura signifique que o governo optará mesmo por uma reforma paulatina e fatiada, o que neste momento nos parece ser o caminho mais apropriado, dado os desafios apontados.  A notícia boa é que parte dessa reforma, no sentido da simplificação, da redução de litígios e da prevenção da “judicialização”, já vem sendo feita por meio de iniciativas pontuais tanto do Executivo quanto do Legislativo. Entre essas iniciativas, se destacam a MP 899/2019, denominada do “Contribuinte Legal”, que institui a transação como forma alternativa de resolução de controvérsias na área fiscal, e o Projeto de Lei nº 4.257/2019, que prevê a adoção da arbitragem como instrumento de acelerar a solução de litígios tributários, também contribuindo para eliminar gargalos no Judiciário.  
Cabe salientar que hoje o tempo de duração de um processo de execução fiscal chega a ultrapassar dez anos, com recuperação de apenas 30% do valor pretendido pelo Fisco. O PL nº 4.257/2019, de autoria do senador Antonio Anastasia, encontra-se em trâmite, enquanto a MP 899/2019, editada em outubro do ano passado pelo governo, após alterações no Congresso, foi transformada no Projeto de Lei de Conversão (PLV) nº 02 de 2020. Esse PLV tinha previsão de deliberação e aprovação ainda no decorrer do mês de março, antes da paralisação causada pela pandemia do novo coronavírus. Mas pela MP, já em vigor, contribuinte e governo podem negociar as dívidas tributárias, tanto as que estão na esfera administrativa, quanto as que já se encontram em discussão no Judiciário.
Há ainda questões procedimentais e até de ordem constitucional a serem esclarecidas no PLV nº 02 resultante da MP 899. Contudo, desde já pode-se prever que o impacto desta nova lei deverá ser considerável: a carteira de créditos irrecuperáveis ou de difícil recuperação que poderá ser objeto do instituto da transação é calculada em R$ 1,4 trilhão pelo governo. Estimam-se em R$ 2 trilhões os créditos tributários passíveis de ser objeto do instituto da transação. São recursos que, desbloqueados mediante acordos entre o Fisco e os contribuintes, serão empregados na atividade produtiva, gerando renda e emprego. Engessados como estão por conta das longas pendências judiciais, essas cifras não têm qualquer utilidade social nem trazem benefício à população.
Conforme salientado na exposição de motivos da MP 899, “a União não pode utilizar esse potencial de receitas para nada, a não ser como registro contábil de um suposto ativo, sem lastro efetivo”. Com a aprovação da Lei oriunda da MP 899 (PLV 02/2020), os litígios poderão ser rapidamente solucionados, gerando ganhos significativos ganhos de arrecadação no curto prazo: R$ 1,42 bilhão já em 2019, uma vez que a medida foi editada em outubro[5]; R$ 6,3 bilhões este ano; e R$ 5,9 bilhões em 2021. Na prática, a iniciativa veio também pôr fim aos Programas de Recuperação Fiscal (Refis) que, vulgarizados pela recorrência com que foram editados, acabaram por servir de estímulo ao sonegador e ao devedor.
Iniciativas como a MP 899/2019 (agora PLV nº 02 de 2020) e o PL nº 4.257/2019 - em linha com a redução da litigiosidade, a desobstrução do Judiciário e a simplificação do sistema, nos autorizam a dizer que a Reforma Tributária, na prática, já começou. Porém, para que cumpra todos os seus objetivos, diminuindo a carga sobre o contribuinte sem comprometer as finanças públicas, a partir da racionalização do sistema, projetos complementares devem ser discutidos e aprovados. Quanto mais rápido isso for feito, melhor será para o país. O trabalho está apenas começando.

*jornalista e advogado, pós-graduado em Direito Tributário pela Fundação Getúlio Vargas (FGV-Rio) e em Economia pela UFRJ, é membro da Comissão de Direito Financeiro e Tributário do IAB – Instituto dos Advogados Brasileiros e sócio diretor do Ferreira de Mello Advocacia (FMA) e da Meta Consultoria e Comunicação.




[1] A carga oficial, medida pelo Tesouro Nacional, foi de 33,58% em 2018. Os dados oficiais relativos a 2019 não estão consolidados, mas os economistas José Roberto Afonso e Kleber de Castro, afirmam que a carga chegou a 35,7% do PIB, seu pico histórico.
[2] Instituto Brasileiro de Planejamento Tributário- IBET.
[3] Os dados são do Conselho Nacional de Justiça (CNJ).
[4] Dados do Banco Mundial (Bird)
[5] Estimativa do Tesouro Nacional, na época da edição da MP 899, ainda não confirmada.

quarta-feira, 18 de março de 2020

Comentário

Leitura distinta
Achei que o presidente e seus principais ministros se saíram bem na entrevista coletiva desta quarta-feira (18/03) à tarde sobre o Covid-19. Aliás, a equipe presente à entrevista, liderada pelo ministro Mandetta, da Saúde, é técnica, competente e transmitiu segurança. Discordo da crítica (ácida!) feita por comentaristas na TV, de que o presidente politizou o debate sobre a pandemia. Primeiro, porque tudo que um presidente fala é inexoravelmente político e, segundo, porque a maior parte das perguntas foi de cunho político, não havendo margem para resposta de outro teor, ainda que isso fosse possível. Em suma, o país não está desgovernado e, apesar dos desafios que a pandemia impõe, as medidas tanto na área da saúde quanto na economia estão sendo tomadas com critério e responsabilidade

segunda-feira, 9 de março de 2020

Artigo


Os investimentos e as Reformas
Administrativa e Tributária


A dívida pública brasileira alcançou, em 2019, R$ 4,2 trilhões, o que representa um aumento de 9,5% em relação ao ano anterior. O resultado frustrou as expectativas do Ministério da Economia que, em outubro passado, conforme artigo publicado aqui neste Blog, projetava fechar o ano com o estoque da dívida em R$ 3,8 trilhões. Apesar da pesada carga tributária suportada pela sociedade – algo em torno de 35,7% do PIB -, e dos esforços que têm sido feitos nos últimos anos para conter as despesas correntes discricionárias, aquelas que não estão legalmente vinculadas, a dívida pública tem mantido uma dinâmica de crescimento: era de cerca de 77% do Produto Interno Bruto (PIB) em 2018 e deve superar os 80%, em 2020, previsão que já considera, segundo o governo, eventuais efeitos positivos da Reforma da Previdência, concluída em outubro passado.[1]
As razões para o recorrente desequilíbrio fiscal que há anos o país enfrenta, com sucessivos déficits primários (despesas acima das receitas) desde 2013, assim como para o esgotamento da capacidade de investimento, estão relacionadas não apenas às políticas de expansão fiscal adotadas em diferentes governos como também, e principalmente, à nossa matriz constitucional. A máquina pública brasileira, uma vez que não consegue alcançar o equilíbrio de suas contas dentro do modelo que a Constituição impõe, de orçamento engessado, torna-se incapaz de aumentar a poupança nacional, de forma a ampliar investimentos e gerar crescimento econômico sustentável. O problema é estrutural, motivo pelo qual o país necessita das reformas ora em discussão.
Ressalte-se que os gastos são crescentes e o investimento, decrescente, situando-se, hoje, em um dos patamares mais baixos da história[2]. Em 2017, a taxa de investimento do setor público foi de meros 1,85% do PIB, contra os 4,06% registrados em 2013, antes da recessão do triênio 2014-2016, com uma leve melhora em 2018, para 2,43%[3]. Ao seu turno, o setor privado, combalido pela crise econômica e submetido a forte tributação, também reduziu o volume de investimentos: recuo de 16,85% do PIB, em 2013, para 13,39% em 2018. No momento, a iniciativa privada responde por 85% da taxa de investimento no Brasil, mantendo patamares bem mais elevados do que o setor público.
Isso por si só não seria problema, se o volume total de investimentos na economia brasileira fosse o suficiente, mas a realidade é que está muito aquém das taxas necessárias para o país superar suas enormes deficiências, além do que há áreas, como educação, saúde e segurança, em que o papel do Estado é primordial. Para se ter uma ideia de como esses nossos 15,82% do PIB (somados setores privado e público) significam pouco em termos de investimento, basta dizer que a taxa média de investimento dos países emergentes, rol em que o Brasil encontra-se, é de cerca de 35% do PIB; a do Mundo, de 26,2%; e a da América Latina, de 19,6%. Num ranking de investimentos que reúne 172 nações, figuramos no 152º lugar.[4]
Vale repetir que a dificuldade de o Estado brasileiro exercer o papel de indutor da economia - como seria de se esperar, tendo em vista uma matriz constitucional de viés claramente dirigista e, em particular, em situações de baixo crescimento, como enfrentamos hoje - decorre justamente do direcionamento da maior parte das receitas para as chamadas despesas obrigatórias, constitucionalmente vinculadas. Trata-se, na verdade, de um paradoxo, porque a matriz constitucional elaborada com a missão, entre outras, de equacionar a nossa grande “dívida social” acaba por inviabilizar financeiramente o Estado, impondo altos custos à sociedade e comprometendo o crescimento econômico do qual poderia resultar melhores índices de desenvolvimento social.
Entre as despesas obrigatórias, a Previdência Social (43,8% do orçamento) e a folha salarial de servidores ativos e inativos (22,1%) consomem mais da metade das receitas federais, deixando pouco espaço de manobra para o gestor público bem intencionado. A Reforma da Previdência, concluída em outubro passado, foi passo importante na busca do equilíbrio orçamentário – até porque o sistema tornara-se intrinsecamente deficitário –, mas não passo suficiente. Para reverter uma estrutura perversa que, embora muito dispendiosa, não consegue realizar os investimentos necessários e entregar os serviços esperados pela população, outras reformas são imprescindíveis.
Neste ponto, alguém deve estar se perguntado por que não aumentar as despesas mesmo com rombos orçamentários ou simplesmente deixar de pagar a dívida. A questão é atinente à ciência econômica, mas com evidente conexão com o direito financeiro e tributário. De forma muito resumida, pode-se dizer que políticas fiscais irresponsáveis e déficits orçamentários prolongados geram distorções em cadeia na economia. Cabe dizer que a recessão econômica iniciada em 2014 teve a expansão fiscal em seu DNA.
Um efeito deletério do endividamento público é que, quando o governo se endivida demais, acaba drenando os recursos financeiros disponíveis na sociedade, encarecendo o crédito para empresas e indivíduos. Quanto maior for a dívida pública maiores serão os juros. Governos fiscalmente responsáveis contribuem, portanto, para o aumento do crédito e dos investimentos. Já a possibilidade de calote, ou seja, de simplesmente deixar de pagar a dívida, total ou parcialmente, não é uma solução plausível, devido ao efeito em cadeia sobre toda a economia: grande parte da cadeia produtiva entra em colapso. Nessas situações, poucos lucram (muito) e a maior parte da sociedade perde.
Neste sentido, é preciso dizer que os credores do governo não são apenas banqueiros de “fraque e cartola” (esses também), mas a própria sociedade: 26,68% dos títulos da dívida pública brasileira estão nas mãos de fundos investidores; 24,89%, com fundos de previdência; 24,69%, com instituições financeiras; e o restante com investidores estrangeiros e outros credores.
Assim, temos um silogismo como desafio: para voltar a crescer e se desenvolver, o Brasil precisa investir; para voltar a investir, precisa equacionar o seu problema fiscal; para tanto, precisar promover reformas que levem à reestruturação do Estado, tornando-o mais eficiente. E é neste contexto que se inserem as reformas Administrativa e Tributária, ambas anunciadas para entrar em discussão no Congresso neste mês, passado o “recesso” de Carnaval.
A Reforma Administrativa deveria preceder a Reforma Tributária. Isso porque, se temos um Estado que gasta em excesso e cujos gastos são de má qualidade, pois não equacionam problemas sociais renitentes, não adianta alterar o sistema tributário sem ter a exata noção de que como será o perfil de gastos da nova máquina pública que emergirá da Reforma Administrativa. É certo que esta nova máquina deve ter uma lógica orçamentária completamente diferente da de hoje: deve implicar uma estrutura que tenha menor dispêndio com custeio e maior disponibilidade de recursos para as áreas essências - educação, saúde, saneamento, mobilidade urbana, infraestrutura, segurança. Em outras palavras, uma estrutura administrativa pública em que o Estado finalmente deixe de ser um fim em si mesmo - como a matriz constitucional involuntariamente acabou engendrando – para se tornar o meio pelo qual a sociedade alcançará patamares mais elevados de bem estar.
Em relação à Reforma Tributária, já foi dito neste espaço que ela deve ser feita considerando sete valores/parâmetros: 1. A simplificação do sistema; 2. A ênfase tributária na renda e não na produção ou no consumo; 3. A defesa do princípio da não cumulatividade; 4. O respeito à progressividade em oposição à regressividade; 5. A manutenção do pacto federativo; 6. O estímulo à produção e ao desenvolvimento; e 7. A preservação da capacidade financeira do Estado. Como se percebe, esses valores/parâmetros são potencialmente antitéticos entre si, e a sua aplicação, como norteadores da reestruturação do sistema, dependerá do real diagnóstico do Estado.
Reduzir carga tributária, por exemplo, para desonerar o setor produtivo e estimular o crescimento econômico, é, em tese, uma medida acertada, mas como fazer isso sem destruir a capacidade financeira de um Estado já envolto em sérios problemas orçamentários? É preciso, portanto, redimensionar o Estado, racionalizando seus custos, o que faz da Reforma Administrativa pressuposto da Tributária, que poderá ser feita de forma paulatina, por etapas, dada a sua complexidade. O fato de o governo ainda não ter o seu próprio projeto de reforma do sistema tributário pode, curiosamente, representar uma vantagem neste momento. Não é tarefa fácil o que se tem pela frente, mas é a tarefa que se impõe ao Brasil este ano.

Por Nilson Mello*
(*advogado e jornalista, pós-graduado em Economia e em Direito Financeiro e Tributário, é sócio diretor da Meta Consultoria e Comunicação e do Ferreira de Mello Advocacia)






[1] Em janeiro deste ano, as contas do governo tiveram superávit primário de R$ 44 bilhões, melhor resultado para este mês em 24 anos, o que confirma o esforço fiscal empreendido.
[2] Fonte: Observatório de Política Fiscal/FGV-Ibre
[3] Dados de 2019 ainda não consolidados.
[4] Dados FMI/FGV, 2018.