terça-feira, 24 de março de 2020

Artigo


Duas novas leis poderão reduzir os
litígios tributários, que alcançam R$ 3,4 trilhões



Nilson Mello*

Os litígios tributários no Brasil, incluindo as disputas nas esferas administrativa e judicial, alcançam R$ 3,4 trilhões, o equivalente à metade do Produto Interno Bruto (PIB) de 2018, de acordo com dados do governo federal. O elevado número de tributos, com distintas naturezas, competências e destinações, potencializa contenciosos e gera insegurança jurídica. O emaranhando de leis e regulamentos - alguns de difícil compreensão e, mais grave, conflitantes entre si - é uma das duas principais justificativas para que façamos uma Reforma Tributária – a outra é a elevada carga que temos hoje, na casa dos 35% do Produto Interno Bruto (PIB)[1]. Como veremos na conclusão deste artigo, duas iniciativas recentes devem representar uma efetiva contribuição para reduzir essas disputas judiciais e desbloquear ativos importantes para a retomada da economia.
De 1988 até hoje foram editadas no Brasil, em matéria tributária, mais de 390 mil normas[2], o que equivale a mais de 1,92 normas tributárias por hora, considerando apenas os dias úteis. Num breve “inventário” do atual sistema, podemos dizer que o país tem hoje 77 tributos em vigor, entre impostos, contribuições e taxas, sem contar os tributos previstos para eventos excepcionais, como os empréstimos compulsórios, a serem instituídos por Lei Complementar, conforme prevê o artigo 148 da Constituição, a fim de fazer frente a despesas extraordinárias em caso de calamidade pública, guerra ou sua iminência, bem como no caso de investimento público de relevante interesse nacional. Cada um desses tributos tem a sua própria Lei e a sua própria regulamentação em regras suplementares, lembrando que tributos de mesma natureza têm normas distintas de acordo com o ente federado (Distrito Federal, Estados e municípios) que o institui.
Na “categoria” impostos, têm-se hoje seis tributos de competência federal, três estaduais e três municipais. Entre as taxas, obrigatoriamente de destinação certa, são 29, desde as municipais, como as instituídas para a coleta de lixo, até as federais, como as destinadas a custear as pesquisas minerais ou os serviços metrológicos. Entre as contribuições, são 37, incluindo as que incidem sobre a folha salarial, como PIS/Pasep e Cofins, até as que ajudam a dar suporte ao ensino, caso do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE), ou à indústria naval, caso do Fundo Nacional de Marinha Mercante (FNMM).
Todo esse arcabouço legal é por si só bastante complexo e exige, por parte do contribuinte, em especial as empresas, que estão sujeitas ao recolhimento de vários desses impostos, taxas e contribuições, acrescido de obrigações acessórias (um conjunto de documentos declaratórios que comprova a legalidade dos procedimentos contábeis efetuados), uma estrutura mínima de planejamento e gestão tributária, a fim de prevenir erros e reduzir riscos.
Com muita frequência, a implantação desses tributos, ao longo do tempo, gerou discussões doutrinárias e embates judiciais acerca de sua constitucionalidade e legalidade, como, por exemplo, questões relativas à possível invasão de competências, à quebra do princípio da não cumulatividade (impostos incidindo sobre impostos), da anterioridade ou do pacto federativo, bem como à violação de outros preceitos constitucionais. Esse quadro contribuiu para aumentar o “estoque” de processos de natureza fiscal, sobrecarregando o Judiciário. Hoje, calcula-se que 40% dos processos que abarrotam nossos tribunais são de natureza tributária e estão relacionados à execução fiscal. O custo da “judicialização” da cobrança desses créditos tributários equivale a 1,3% do PIB[3].
Saliente-se que mais complexas do que as leis que deram previsão ou instituíram toda essa gama de tributos são as normas subsidiárias editadas, ao longo do tempo, pela Receita Federal, bem como pelas fazendas públicas estaduais e municipais — representando a maior parte das 390 mil normas referidas acima —, além de regras da administração pública, emanadas de agências reguladoras, autarquias e demais órgãos públicos, com potencial inferência na esfera tributária, que precisam ser observadas não apenas pelas pessoas jurídicas, mas pelo contribuinte pessoa física.  
Parece já haver consenso no país de que esse gigantesco arcabouço legal representa um arsenal burocrático que atinge diretamente o setor produtivo, minando a sua produtividade e a sua competitividade. O Brasil é o país em que as empresas gastam mais tempo para pagar tributos e cumprir suas obrigações acessórias[4] - em média, 1.958 horas. No Chile, país que apresenta as maiores taxas médias de crescimento econômico na América Latina nas últimas décadas, empenham-se apenas 191 horas no cumprimento dessa tarefa. Entre os países integrantes da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), a média é de 160,7 horas. São dados como esses - mas não apenas esses - que fazem com que o nosso país esteja tão mal colocado no ranking de ambiente de negócios do Banco Mundial, figurando na 125º lugar entre 190 nações.
Portanto, medidas no sentido da simplificação do sistema tributário são bem-vindas, assim como são bem-vindas iniciativas que venham a criar mecanismos alternativos de resolução de litígios, contribuindo para a redução (“desjudicialização”) do número de processos envolvendo o Fisco. A célere regularização do crédito tributário, além de descongestionar o Judiciário, desbloqueia ativos para ingresso direto na economia, seja via novos aportes de investimento pelo governo, em função do reforço de caixa, seja via liberação de recursos do próprio setor produtivo. Os dois projetos de Reforma Tributária que se encontram neste momento no Congresso (PEC-110, na Câmara, e PEC-45, no Senado), contudo, não têm, à primeira vista, a capacidade de atacar diretamente o fenômeno do excesso de “judicialização”, ainda que possam estar em linha com a ideia de simplificação, na medida em que unificam alguns tributos em um único imposto de valor agregado: o IBS – Imposto sobre Bens e Serviços.
Na verdade, dada a complexidade da dinâmica tributária brasileira, conforme apontam os dados mencionados no presente artigo, dificilmente um só projeto terá a capacidade de equacionar todas as variáveis potencialmente antitéticas que condicionam o atual sistema, quais sejam, redução de tributação com impulso ao desenvolvimento, aliada à simplificação e, ao mesmo tempo, à manutenção da capacidade financeira do Estado, à preservação do pacto federativo e ao respeito ao princípio da progressividade dos impostos (quem  ganha mais pagando mais), entre outros.
Como assim antitéticos? Por exemplo, tanto a PEC-45 quanto a 110 podem, de fato, contribuir para desonerar o setor produtivo, dando impulso ao crescimento econômico, mas não contribuem para a progressividade tributária, uma vez que o imposto de valor agregado que estabelecem (IBS) incide sobre o consumo, prejudicando as camadas de mais baixa renda. Não há nos dois projetos medidas de caráter mais amplo capazes de conciliar essas e outras variáveis relevantes, razão pela qual não deveríamos dar o nome de “reforma” a esses dois projetos que, a rigor, unificam vários tributos num único imposto, mas não têm o condão de reestruturar todo o sistema.
A complexidade da reestruturação talvez possa explicar a demora do Executivo em enviar a sua própria proposta de reforma ou em “adotar” um dos referidos projetos do Congresso. Talvez essa postura signifique que o governo optará mesmo por uma reforma paulatina e fatiada, o que neste momento nos parece ser o caminho mais apropriado, dado os desafios apontados.  A notícia boa é que parte dessa reforma, no sentido da simplificação, da redução de litígios e da prevenção da “judicialização”, já vem sendo feita por meio de iniciativas pontuais tanto do Executivo quanto do Legislativo. Entre essas iniciativas, se destacam a MP 899/2019, denominada do “Contribuinte Legal”, que institui a transação como forma alternativa de resolução de controvérsias na área fiscal, e o Projeto de Lei nº 4.257/2019, que prevê a adoção da arbitragem como instrumento de acelerar a solução de litígios tributários, também contribuindo para eliminar gargalos no Judiciário.  
Cabe salientar que hoje o tempo de duração de um processo de execução fiscal chega a ultrapassar dez anos, com recuperação de apenas 30% do valor pretendido pelo Fisco. O PL nº 4.257/2019, de autoria do senador Antonio Anastasia, encontra-se em trâmite, enquanto a MP 899/2019, editada em outubro do ano passado pelo governo, após alterações no Congresso, foi transformada no Projeto de Lei de Conversão (PLV) nº 02 de 2020. Esse PLV tinha previsão de deliberação e aprovação ainda no decorrer do mês de março, antes da paralisação causada pela pandemia do novo coronavírus. Mas pela MP, já em vigor, contribuinte e governo podem negociar as dívidas tributárias, tanto as que estão na esfera administrativa, quanto as que já se encontram em discussão no Judiciário.
Há ainda questões procedimentais e até de ordem constitucional a serem esclarecidas no PLV nº 02 resultante da MP 899. Contudo, desde já pode-se prever que o impacto desta nova lei deverá ser considerável: a carteira de créditos irrecuperáveis ou de difícil recuperação que poderá ser objeto do instituto da transação é calculada em R$ 1,4 trilhão pelo governo. Estimam-se em R$ 2 trilhões os créditos tributários passíveis de ser objeto do instituto da transação. São recursos que, desbloqueados mediante acordos entre o Fisco e os contribuintes, serão empregados na atividade produtiva, gerando renda e emprego. Engessados como estão por conta das longas pendências judiciais, essas cifras não têm qualquer utilidade social nem trazem benefício à população.
Conforme salientado na exposição de motivos da MP 899, “a União não pode utilizar esse potencial de receitas para nada, a não ser como registro contábil de um suposto ativo, sem lastro efetivo”. Com a aprovação da Lei oriunda da MP 899 (PLV 02/2020), os litígios poderão ser rapidamente solucionados, gerando ganhos significativos ganhos de arrecadação no curto prazo: R$ 1,42 bilhão já em 2019, uma vez que a medida foi editada em outubro[5]; R$ 6,3 bilhões este ano; e R$ 5,9 bilhões em 2021. Na prática, a iniciativa veio também pôr fim aos Programas de Recuperação Fiscal (Refis) que, vulgarizados pela recorrência com que foram editados, acabaram por servir de estímulo ao sonegador e ao devedor.
Iniciativas como a MP 899/2019 (agora PLV nº 02 de 2020) e o PL nº 4.257/2019 - em linha com a redução da litigiosidade, a desobstrução do Judiciário e a simplificação do sistema, nos autorizam a dizer que a Reforma Tributária, na prática, já começou. Porém, para que cumpra todos os seus objetivos, diminuindo a carga sobre o contribuinte sem comprometer as finanças públicas, a partir da racionalização do sistema, projetos complementares devem ser discutidos e aprovados. Quanto mais rápido isso for feito, melhor será para o país. O trabalho está apenas começando.

*jornalista e advogado, pós-graduado em Direito Tributário pela Fundação Getúlio Vargas (FGV-Rio) e em Economia pela UFRJ, é membro da Comissão de Direito Financeiro e Tributário do IAB – Instituto dos Advogados Brasileiros e sócio diretor do Ferreira de Mello Advocacia (FMA) e da Meta Consultoria e Comunicação.




[1] A carga oficial, medida pelo Tesouro Nacional, foi de 33,58% em 2018. Os dados oficiais relativos a 2019 não estão consolidados, mas os economistas José Roberto Afonso e Kleber de Castro, afirmam que a carga chegou a 35,7% do PIB, seu pico histórico.
[2] Instituto Brasileiro de Planejamento Tributário- IBET.
[3] Os dados são do Conselho Nacional de Justiça (CNJ).
[4] Dados do Banco Mundial (Bird)
[5] Estimativa do Tesouro Nacional, na época da edição da MP 899, ainda não confirmada.

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