Duas
novas leis poderão reduzir os
Nilson Mello*
Os litígios tributários no Brasil,
incluindo as disputas nas esferas administrativa e judicial, alcançam R$ 3,4
trilhões, o equivalente à metade do Produto Interno Bruto (PIB) de 2018, de
acordo com dados do governo federal. O elevado número de tributos, com
distintas naturezas, competências e destinações, potencializa contenciosos e
gera insegurança jurídica. O emaranhando de leis e regulamentos - alguns de
difícil compreensão e, mais grave, conflitantes entre si - é uma das duas
principais justificativas para que façamos uma Reforma Tributária – a outra é a
elevada carga que temos hoje, na casa dos 35% do Produto Interno Bruto (PIB)[1].
Como veremos na conclusão deste artigo, duas iniciativas recentes devem
representar uma efetiva contribuição para reduzir essas disputas judiciais e
desbloquear ativos importantes para a retomada da economia.
De 1988 até hoje foram editadas no
Brasil, em matéria tributária, mais de 390 mil normas[2],
o que equivale a mais de 1,92 normas tributárias por hora, considerando apenas
os dias úteis. Num breve “inventário” do atual sistema, podemos dizer que o país
tem hoje 77 tributos em vigor, entre impostos, contribuições e taxas, sem
contar os tributos previstos para eventos excepcionais, como os empréstimos
compulsórios, a serem instituídos por Lei Complementar, conforme prevê o artigo
148 da Constituição, a fim de fazer frente a despesas extraordinárias em caso
de calamidade pública, guerra ou sua iminência, bem como no caso de
investimento público de relevante interesse nacional. Cada um desses tributos
tem a sua própria Lei e a sua própria regulamentação em regras suplementares,
lembrando que tributos de mesma natureza têm normas distintas de acordo com o
ente federado (Distrito Federal, Estados e municípios) que o institui.
Na “categoria” impostos, têm-se hoje
seis tributos de competência federal, três estaduais e três municipais. Entre as
taxas, obrigatoriamente de destinação certa, são 29, desde as municipais, como
as instituídas para a coleta de lixo, até as federais, como as destinadas a
custear as pesquisas minerais ou os serviços metrológicos. Entre as contribuições,
são 37, incluindo as que incidem sobre a folha salarial, como PIS/Pasep e
Cofins, até as que ajudam a dar suporte ao ensino, caso do Fundo Nacional de
Desenvolvimento da Educação (FNDE), ou à indústria naval, caso do Fundo
Nacional de Marinha Mercante (FNMM).
Todo esse arcabouço legal é por si só
bastante complexo e exige, por parte do contribuinte, em especial as empresas,
que estão sujeitas ao recolhimento de vários desses impostos, taxas e
contribuições, acrescido de obrigações acessórias (um conjunto de documentos
declaratórios que comprova a legalidade dos procedimentos contábeis efetuados),
uma estrutura mínima de planejamento e gestão tributária, a fim de prevenir
erros e reduzir riscos.
Com muita frequência, a implantação
desses tributos, ao longo do tempo, gerou discussões doutrinárias e embates
judiciais acerca de sua constitucionalidade e legalidade, como, por exemplo,
questões relativas à possível invasão de competências, à quebra do princípio da
não cumulatividade (impostos incidindo sobre impostos), da anterioridade ou do
pacto federativo, bem como à violação de outros preceitos constitucionais. Esse
quadro contribuiu para aumentar o “estoque” de processos de natureza fiscal,
sobrecarregando o Judiciário. Hoje, calcula-se que 40% dos processos que
abarrotam nossos tribunais são de natureza tributária e estão relacionados à
execução fiscal. O custo da “judicialização” da cobrança desses créditos
tributários equivale a 1,3% do PIB[3].
Saliente-se que mais complexas do que
as leis que deram previsão ou instituíram toda essa gama de tributos são as
normas subsidiárias editadas, ao longo do tempo, pela Receita Federal, bem como
pelas fazendas públicas estaduais e municipais — representando a maior parte
das 390 mil normas referidas acima —, além de regras da administração pública,
emanadas de agências reguladoras, autarquias e demais órgãos públicos, com
potencial inferência na esfera tributária, que precisam ser observadas não
apenas pelas pessoas jurídicas, mas pelo contribuinte pessoa física.
Parece já haver consenso no país de
que esse gigantesco arcabouço legal representa um arsenal burocrático que
atinge diretamente o setor produtivo, minando a sua produtividade e a sua
competitividade. O Brasil é o país em que as empresas gastam mais tempo para
pagar tributos e cumprir suas obrigações acessórias[4]
- em média, 1.958 horas. No Chile, país que apresenta as maiores taxas médias
de crescimento econômico na América Latina nas últimas décadas, empenham-se
apenas 191 horas no cumprimento dessa tarefa. Entre os países integrantes da
Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), a média é de
160,7 horas. São dados como esses - mas não apenas esses - que fazem com que o
nosso país esteja tão mal colocado no ranking de ambiente de negócios do Banco
Mundial, figurando na 125º lugar entre 190 nações.
Portanto, medidas no sentido da
simplificação do sistema tributário são bem-vindas, assim como são bem-vindas
iniciativas que venham a criar mecanismos alternativos de resolução de
litígios, contribuindo para a redução (“desjudicialização”) do número de
processos envolvendo o Fisco. A célere regularização do crédito tributário,
além de descongestionar o Judiciário, desbloqueia ativos para ingresso direto
na economia, seja via novos aportes de investimento pelo governo, em função do
reforço de caixa, seja via liberação de recursos do próprio setor produtivo. Os
dois projetos de Reforma Tributária que se encontram neste momento no Congresso
(PEC-110, na Câmara, e PEC-45, no Senado), contudo, não têm, à primeira vista,
a capacidade de atacar diretamente o fenômeno do excesso de “judicialização”,
ainda que possam estar em linha com a ideia de simplificação, na medida em que
unificam alguns tributos em um único imposto de valor agregado: o IBS – Imposto
sobre Bens e Serviços.
Na verdade, dada a complexidade da
dinâmica tributária brasileira, conforme apontam os dados mencionados no
presente artigo, dificilmente um só projeto terá a capacidade de equacionar
todas as variáveis potencialmente antitéticas que condicionam o atual sistema,
quais sejam, redução de tributação com impulso ao desenvolvimento, aliada à
simplificação e, ao mesmo tempo, à manutenção da capacidade financeira do
Estado, à preservação do pacto federativo e ao respeito ao princípio da
progressividade dos impostos (quem ganha
mais pagando mais), entre outros.
Como assim antitéticos? Por exemplo,
tanto a PEC-45 quanto a 110 podem, de fato, contribuir para desonerar o setor
produtivo, dando impulso ao crescimento econômico, mas não contribuem para a
progressividade tributária, uma vez que o imposto de valor agregado que
estabelecem (IBS) incide sobre o consumo, prejudicando as camadas de mais baixa
renda. Não há nos dois projetos medidas de caráter mais amplo capazes de
conciliar essas e outras variáveis relevantes, razão pela qual não deveríamos
dar o nome de “reforma” a esses dois projetos que, a rigor, unificam vários
tributos num único imposto, mas não têm o condão de reestruturar todo o sistema.
A complexidade da reestruturação talvez
possa explicar a demora do Executivo em enviar a sua própria proposta de
reforma ou em “adotar” um dos referidos projetos do Congresso. Talvez essa
postura signifique que o governo optará mesmo por uma reforma paulatina e
fatiada, o que neste momento nos parece ser o caminho mais apropriado, dado os
desafios apontados. A notícia boa é que
parte dessa reforma, no sentido da simplificação, da redução de litígios e da
prevenção da “judicialização”, já vem sendo feita por meio de iniciativas
pontuais tanto do Executivo quanto do Legislativo. Entre essas iniciativas, se
destacam a MP 899/2019, denominada do “Contribuinte Legal”, que institui a
transação como forma alternativa de resolução de controvérsias na área fiscal,
e o Projeto de Lei nº 4.257/2019, que prevê a adoção da
arbitragem como instrumento de acelerar a solução de litígios tributários, também
contribuindo para eliminar gargalos no Judiciário.
Cabe salientar que hoje o tempo de
duração de um processo de execução fiscal chega a ultrapassar dez anos, com
recuperação de apenas 30% do valor pretendido pelo Fisco. O PL nº
4.257/2019, de autoria do senador Antonio Anastasia, encontra-se em trâmite, enquanto
a MP 899/2019, editada em outubro do ano passado pelo governo, após alterações
no Congresso, foi transformada no Projeto de Lei de
Conversão (PLV) nº 02 de 2020. Esse PLV tinha previsão de deliberação
e aprovação ainda no decorrer do mês de março, antes da paralisação causada
pela pandemia do novo coronavírus. Mas pela MP, já em vigor, contribuinte e governo podem
negociar as dívidas tributárias, tanto as que estão na esfera administrativa,
quanto as que já se encontram em discussão no Judiciário.
Há ainda
questões procedimentais e até de ordem constitucional a serem esclarecidas no
PLV nº 02 resultante da MP 899. Contudo, desde já pode-se prever que o impacto desta nova lei deverá ser
considerável: a carteira de créditos irrecuperáveis ou de difícil recuperação
que poderá ser objeto do instituto da transação é calculada em R$ 1,4 trilhão
pelo governo. Estimam-se em R$ 2 trilhões os créditos tributários passíveis de
ser objeto do instituto da transação. São recursos que, desbloqueados mediante
acordos entre o Fisco e os contribuintes, serão empregados na atividade
produtiva, gerando renda e emprego. Engessados como estão por conta das longas
pendências judiciais, essas cifras não têm qualquer utilidade social nem trazem
benefício à população.
Conforme
salientado na exposição de motivos da MP 899, “a União não pode utilizar esse
potencial de receitas para nada, a não ser como registro contábil de um suposto
ativo, sem lastro efetivo”. Com a aprovação da Lei oriunda da MP 899 (PLV
02/2020), os litígios poderão ser rapidamente solucionados, gerando ganhos
significativos ganhos de arrecadação no curto prazo: R$ 1,42 bilhão já em 2019,
uma vez que a medida foi editada em outubro[5]; R$ 6,3
bilhões este ano; e R$ 5,9 bilhões em 2021. Na prática, a iniciativa veio também
pôr fim aos Programas de Recuperação Fiscal (Refis) que, vulgarizados pela
recorrência com que foram editados, acabaram por servir de estímulo ao
sonegador e ao devedor.
Iniciativas
como a MP 899/2019 (agora PLV nº 02 de 2020) e
o PL nº 4.257/2019 - em linha com a redução da litigiosidade, a
desobstrução do Judiciário e a simplificação do sistema, nos autorizam a dizer
que a Reforma Tributária, na prática, já começou. Porém, para que cumpra todos
os seus objetivos, diminuindo a carga sobre o contribuinte sem comprometer as
finanças públicas, a partir da racionalização do sistema, projetos
complementares devem ser discutidos e aprovados. Quanto mais rápido isso for
feito, melhor será para o país. O trabalho está apenas começando.
*jornalista e advogado,
pós-graduado em Direito Tributário pela Fundação Getúlio Vargas (FGV-Rio) e em
Economia pela UFRJ, é membro da Comissão de Direito Financeiro e Tributário do
IAB – Instituto dos Advogados Brasileiros e sócio diretor do Ferreira de Mello
Advocacia (FMA) e da Meta Consultoria e Comunicação.
[1] A
carga oficial, medida pelo Tesouro Nacional, foi de 33,58% em 2018. Os dados
oficiais relativos a 2019 não estão consolidados, mas os economistas José
Roberto Afonso e Kleber de Castro, afirmam que a carga chegou a 35,7% do PIB,
seu pico histórico.
[2] Instituto
Brasileiro de Planejamento Tributário- IBET.
[3] Os
dados são do Conselho Nacional de Justiça (CNJ).
[4]
Dados do Banco Mundial (Bird)
[5]
Estimativa do Tesouro Nacional, na época da edição da MP 899, ainda não
confirmada.
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