quarta-feira, 2 de março de 2022

A geopolítica da crise

 

A Cisplatina, a guerra da Ucrânia e a atividade global

(Obs: este artigo foi publicado originalmente pela Agência iNFRA)

Nilson Mello

            A Rússia é a sexta principal origem das importações do Brasil e também um importante destino de nosso agronegócio. Em 2021, os fluxos comerciais entre as duas nações foram de US$ 5,7 bilhões em importações brasileiras e US$ 1,6 bilhão em exportações. Compramos, principalmente, derivados de petróleo (em especial, fertilizantes químicos) e trigo, enquanto vendemos, entre outros, carnes e soja. O Brasil é dependente da importação de trigo, e Rússia e Ucrânia são os maiores exportadores do grão, respondendo por quase 30% da demanda mundial.

            Que o comércio desses produtos assim como o transporte marítimo com esses países poderão ser significativamente afetados caso a guerra se estenda (já não é mais uma crise, nem uma operação militar limitada) não restam dúvidas. As sanções impostas à Moscou são uma clara desaprovação da comunidade internacional e não tardarão a trazer graves consequências para a economia russa. Ao cerco econômico se somam agora sanções esportivas que incluem a exclusão pela Fifa da Copa do Mundo.

A prova de que a Rússia planejou durante muito tempo suas ações militares – e se preparou para as restrições financeiras – está no fato de ter aumentado vertiginosamente suas reservas, que hoje alcançam US$ 630 bilhões. Somente as reservas em ouro foram aumentadas de R$ 100 bilhões para US$ 132 bilhões, em menos de uma década. Em função de sua exclusão do principal sistema internacional de pagamentos e compensações (Swift), ainda não está claro quanto desses recursos ainda poderá movimentar – e de que forma.

As maiores preocupações, no entanto, não estão restritas apenas ao que se passa no Leste Europeu, mas à reação em cadeia que o conflito potencializa, afetando a atividade econômica ao redor do mundo. O conflito pode comprometer o desempenho econômico de Estados Unidos e China, as “locomotivas” globais, num momento em que havia forte expectativa de uma retomada sustentável, após o período mais crítico da pandemia de Covid-19. Paralelamente, o risco de maior pressão inflacionária, em função de novos problemas nas cadeias de suprimentos, pode levar os Bancos Centrais a adotarem políticas monetárias mais restritivas, aumentado os juros.

Esse por si só seria um fator inibidor do crescimento, em diferentes economias: empresas passam a tomar menos recursos, para evitar aumento do endividamento, o que reduz a possibilidade de investimentos. E agentes econômicos em geral tendem a buscar ativos de segurança, como ouro e títulos do Tesouro americano, o que também, em tese, reduz a disponibilidade de capitais para os grandes investimentos, em especial em infraestrutura e em países emergentes como o Brasil.

Contudo, todo este cenário é conjectural, longe ainda de estar concretizado, lembrando que uma saída diplomática, com um acordo de cessar-fogo no curto prazo, não está de forma alguma descartada. Em torno do que não cabem mais dúvidas é em relação às alegações do Kremlin para a invasão. Elas são infundadas: não há provas de que populações de origem russa estivessem sob perseguição em território ucraniano. O argumento falacioso remete àquele utilizado por Hitler para anexar os Sudetos, em 1938, numa etapa preliminar da Segunda Guerra Mundial, minimizada pelos demais líderes europeus de então.

A justificativa da origem histórica comum dos dois países, de seus laços étnicos, culturais e religiosos indissociáveis (a Igreja Ortodoxa russa surgiu em Kiev), tampouco é válida para desqualificar a autonomia e a independência ucraniana. O país é hoje um Estado soberano, e assim deve ser visto pela comunidade internacional, não importando o fato de ter sido domínio da Rússia por séculos. Guardando as devidas proporções, seria como se o Brasil decidisse anexar o Uruguai com base em questões históricas e geopolíticas, considerando a forte colonização de origem luso-brasileira em solo uruguaio, o fato de ter sido território brasileiro até a Guerra Cisplatina (1825-1828) e de não haver fronteira natural entre os dois países (fronteira “seca”).

Putin reclama da expansão da OTAN após o fim da Guerra Fria e o consequente desmantelamento do Pacto de Varsóvia. Acusa os aliados ocidentais de uma projeção de poder militar nas fronteiras russas. De fato, talvez as negociações para o ingresso da Ucrânia na organização não tenham sido um movimento dos mais sensatos.

Porém, para uma reflexão honesta da questão, antes devemos nos perguntar se os estados-satélites do antigo Bloco Comunista, como Polônia e Romênia, bem como ex-repúblicas soviéticas, como Letônia, Estônia e Lituânia, não ingressaram na OTAN justamente por se sentirem ameaçados por uma Rússia liderada há 20 anos por um dirigente de perfil autocrata e de indisfarçável inspiração expansionista. Em outras palavras, não viria do Leste a verdadeira ameaça?

 

 

terça-feira, 1 de março de 2022

Guerra no Leste Europeu

                                       Ucrânia: diagnóstico e prognósticos

 


Nilson Mello

 

Putin não conseguiu realizar uma blitzkrieg para tomar Kiev rapidamente. Segundo especialistas em estratégia militar, isso se deve ao fato de ter adaptado o seu objetivo inicial, passando de uma operação militar originalmente limitada às províncias com conflitos separatistas do sul da Ucrânia, para uma conquista de todo o território ucraniano, e capitulação de seu governo a partir de uma rápida tomada da capital - o que não ocorreu.

A razão para o fracasso de sua “blitzkrieg”, além da tenacidade do povo e do Exército ucranianos, estaria no fato de o avanço russo, ao contrário da guerra relâmpago da Wehrmacht no início da Segunda Guerra Mindial, não ter sido feito em escalas subsequentes, deixando grandes “hiatos” (gaps) logísticos na retaguarda. O que se pode esperar agora? Uma das possibilidades é que a Ucrânia se transforme num território conflagrado com o conflito se estendendo por longo prazo.

Uma preocupação neste sentido se justifica pelo fato de muitos grupos, de variadas tendências ideológicas, e com diferentes interesses políticos, terem se organizado em milícias armadas na Ucrânia para auxiliar o Exército regular no enfrentamento às forças russas. Muitos desses grupos receberam reforços de voluntários estrangeiros, de origens étnicas e religiosas díspares. Isso talvez possa transformar a Ucrânia num campo de batalha por tempo indeterminado, com o conflito se estendendo anos a fio, sem definição de vitorioso, mal comparando, como ocorreu na Guerra Civil do Líbano (1975 a 1990) e mais recentemente na Síria.

Uma vitória russa, após duras batalhas e tomada do poder, não afastaria esta possibilidade, pois o conflito tenderia a se estender contra o domínio russo. A alternativa preocupante seria a de Putin, percebendo que não haverá a fácil conquista que esperava, e se vendo pressionando pelas fortes sanções internacionais, fazer uso de arma nuclear. A possibilidade é remota, mas não está totalmente descartada, sobretudo tendo em vista o perfil do “líder” soviético.

A melhor alternativa, pela qual a ONU e a comunidade internacional conjuga os seus melhores esforços, é um acordo imediato de cessar-fogo e a retomada das negociações diplomáticas. Ainda há espaço para essas negociações. A questão é saber como esse mosaico de grupos díspares se comportará após o fim das hostilidades formais.

Por fim, há quem diga que Putin perdeu prestígio interno com a guerra, ou mesmo que foi à guerra numa tentativa de renovar o seu prestígio, que já estaria em declínio após mais de duas décadas no poder. Assim, em tese, sua queda, por desgaste e pressão interna, não pode estar totalmente descartada - lembrando apenas que esta hipótese não elimina outras questões relacionadas à Ucrânia, conforme mencionadas acima. O cenário é, portanto, de grande imprevisibilidade.

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Paralelo Ucrânia x Uruguai
Guardando as devidas proporções, seria como se hoje o Brasil decidisse invadir o Uruguai com base em questões históricas (forte colonização de origem luso-brasileira e território que já pertenceu ao Brasil até o Primeiro Reinado); geográficas (a rigor, a Região Sul do Brasil, em particular o extremo do Rio Grande do Sul, predominantemente uma planície, os Pampas, se estende até o Rio da Prata, em fronteira “seca”, sem delimitação por rio); e geopolíticas e estratégicas. A exemplo do que ocorreu com a Ucrânia, em relação à divisão artificial feita pela antiga URSS, poderia o Brasil alegar que a “Província Oriental del Rio de la Plata” (o Uruguai) é um pseudo-Estado, um artificialismo criado sob a pressão de potências estrangeiras, em particular a Inglaterra, durante a Guerra da Cisplatina (1825-1828). Desde então e mais recentemente, populações de origem brasileira estariam sendo discriminadas, quando não atacadas. Além disso, alegaria, se não houvesse a criação do Uruguai, sequer teria havido a Guerra do Paraguai (1865-1870), décadas depois, pois a segurança do Prata não estaria em jogo… E por aí vai. Os argumentos de Putin, para invadir a Ucrânia, não estão muito distantes disso… Ou seja, são insustentáveis à luz da moral.