sábado, 26 de setembro de 2020

Pandemia

 

E o retorno às aulas?


         Os dados do Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb) divulgados no último dia 15 pelo MEC revelaram evolução no ensino médio, avanço tímido no ensino fundamental, disparidade entre os estados e entre as redes pública e privada, bem como uma realidade educacional ainda distante das metas estabelecidas. Criado em 2007, com avaliações a cada dois anos - considerando as disciplinas de português e matemática e as taxas de aprovação e evasão -, o Ideb é um dos principais instrumentos de aferição da educação do país.

         Os números dizem respeito ao levantamento realizado em 2019, com a participação de cerca de 35 milhões de alunos, do fundamental ao último ano escolar, matriculados em 199 mil escolas públicas e particulares. O segmento que apresentou melhor evolução nessa edição, o ensino médio, alcançou 4,2 pontos (numa escala de 0 a 10), 0,4 a mais que em 2017 e o melhor resultado desde o início da série histórica. Contudo, a meta prevista para o período era de 5 pontos, alcançada por apenas um estado: Goiás.

         Um dado relevante é que, no ensino médio, as notas dos alunos da rede estadual tiveram avanço maior (0,4 contra 0,2) do que as dos estudantes das particulares, embora, no geral, o desempenho da rede privada ainda seja melhor do que o da rede pública (nota 6.0, contra 3,9).

Já nos primeiros anos do ensino fundamental, o avanço geral foi mais tímido, de 0,1 ponto, para nota 5,9, superior à meta para este segmento, que era de 5,7 pontos. Nove estados conseguiram nota superior a 6: Distrito Federal, São Paulo, Minas Gerais, Espírito Santo, Paraná, Santa Catarina, Rio Grande do Sul, Goiás e Ceará. Nos anos finais do ensino básico, o aumento das notas foi maior (0,2), mas, em compensação, os 4,9 pontos alcançados no geral ficaram abaixo da meta, de 5,2 pontos. Neste segmento, apenas sete estados cumpriram suas metas isoladas: Amazonas, Alagoas, Pernambuco, Piauí, Ceará, Paraná e Goiás.

O Rio de Janeiro não tem do que se orgulhar. Além de não se destacar em nenhum segmento, um percentual muito reduzido de seus municípios alcança as metas do Ideb no ensino fundamental: 18,3% nos anos iniciais e meros 4,3% nos anos finais. O mau desempenho se deve, ao que tudo indica, ao baixo rendimento da rede pública, principalmente no interior do estado. Para se ter ideia do atraso fluminense, o Ceará, líder neste quesito, tem 98,9% dos municípios atingindo a meta nos anos iniciais do ensino fundamental e 83,7% nos anos finais.

Vale notar que é justamente no Rio de Janeiro, estado de fraquíssimo desempenho no Ideb - apesar de ex-capital da República e segunda maior economia da Federação - que a questão do retorno às salas de aula tem sido mais politizada e, por consequência, judicializada. Atendendo a pedido do Sindicato dos Professores do Município, o Tribunal de Justiça do Estado e o Tribunal Regional do Trabalho já deram decisões cautelares suspendendo o decreto da Prefeitura de retorno às aulas.

Na última segunda-feira, o procurador Geral da República, Augusto Aras, decidiu entrar na disputa e enviou manifestação ao Supremo pela manutenção da proibição de retorno. Pena que, em meio a uma disputa de indisfarçado caráter político, os especialistas não estejam sendo ouvidos. No último dia 14, a OMS, o Unicef e a Unesco divulgaram documento conjunto recomendando o retorno às aulas, porque entendem que agora “a prioridade deve ser a continuidade da educação das crianças”, de acordo com protocolos de segurança.

Infelizmente, no Rio já pode tudo: praia, shopping, academia de ginástica, clubes, bares e restaurantes. Menos alunos nas escolas.

Por Nilson Mello

 

        

quarta-feira, 23 de setembro de 2020

Eleições 2020

 

Sorte deles, azar o nosso

(Obs: este artigo foi publicado simultaneamente com o Correio da Manhã)

    A liberdade é o direito de fazer tudo o que as leis permitem; se um cidadão pudesse fazer tudo o que elas proíbem, não haveria mais liberdade, porque os outros também teriam tal poder. A sentença é de Montesquieu, em Do Espírito das Leis, obra iluminista de 1748, que, seguindo o racionalismo iniciado com Descartes no século anterior, procurou dar cientificidade às ciências sociais e, por extensão, ao direito e à política.

Contudo, mesmo atrelado a critérios científicos, ou seja, a provas e evidências, na melhor tradição cartesiana, as leis não poderão estar desprovidas de seu caráter axiológico, do seu valor moral, do contrário deturparão a realidade que, em prol da harmonia social, se destinam a regular. O título do livro por sinal expressa essa preocupação.

O que se pretende exatamente com as leis ou com uma lei em particular? Qual foi a vontade do legislador, representando a coletividade, e a que fim ela se destina? A racionalidade científica deve ser buscada no conteúdo de uma norma, não apenas na sua forma. E a razão não está apartada da moral. Na verdade, a moral é consequência da razão, e vice-versa.

Promulgada em junho de 2010, a Lei da Ficha Limpa (Lei Complementar no 135) resultou de um grande movimento popular que tinha como objetivo garantir idoneidade aos postulantes de cargos eletivos. Contou, para a sua tramitação e aprovação no Congresso, com a assinatura de mais de 1,6 milhão de eleitores, que traduziam o sentimento de repúdio da sociedade à corrupção no meio político.

A Ficha Limpa não impediu que, de lá para cá, houvesse outros casos de corrupção envolvendo candidatos, parlamentares e governantes. Mas o crivo legal dá ao menos ao eleitor a esperança de que um ambiente político ainda mais degenerado está sendo evitado, além da certeza de que o infrator estará fora do páreo por duas legislaturas - os oito anos de penalidade previstos pela norma para quem praticou atos ilícitos em campanha, como caixa dois ou abuso de poder econômico e político.

A regra de deixar o mau candidato de molho por duas legislaturas valeria para 2020, não fosse a decisão do Tribunal Superior Eleitoral do dia 1º de setembro.  Por cinco votos a dois, o TSE deu interpretação literal – e, portanto, podemos dizer, desprovida de racionalidade e moralidade – à Emenda Constitucional no 107, de julho passado, que adiou de 4 de outubro para 15 de novembro o primeiro turno das eleições deste ano, em função da pandemia de Covid-19. 

Na contramão do parecer do Ministério Público Eleitoral, que temia o “desprezo pela moralidade eleitoral”, cinco dos sete ministros entenderam que, como a lei estabeleceu oito anos de inelegibilidade a contar da data da eleição em que ocorreu o ato ilícito, e a EC 107 alterou a data do pleito, mas foi omissa quanto aos prazos da Ficha Limpa, os políticos enquadrados em 2012 (cujo primeiro turno se deu em 7 de outubro), estão livres para concorrer em 15 de novembro, o que não aconteceria se o escrutínio fosse mantido para o dia 04 do mês que vem. Cabe indagar se omissão dos parlamentares foi proposital. Pelo histórico de fisiologismo, provavelmente sim.

O MP Eleitoral propunha que a inelegibilidade também fosse estendida até 31 de dezembro, fazendo valer o “espírito” da Lei da Ficha Limpa. Agora, calcula-se que mais de 1,5 mil fichas-sujas que estariam impedidos de concorrer poderão participar da eleição. Por obra de uma interpretação literal, em detrimento de um entendimento axiológico, a Justiça Eleitoral lhes deu uma liberdade que afronta a liberdade de todos os brasileiros que querem candidaturas limpas. Ao sustentar o seu voto a favor dos fichas-sujas, neste caso, o ministro Alexandre de Moraes disse que “sorte é sorte”. Sorte deles, azar o nosso.

Por Nilson Mello

terça-feira, 8 de setembro de 2020

 

A China, o agronegócio e o preço dos alimentos



No ano de 2600, mantidas as atuais taxas de crescimento demográfico exponencial (de 1,9% ao ano), a população mundial ficará ombro a ombro, e o consumo de eletricidade será de tal ordem que deixará a Terra incandescente, previu o astrofísico Stephen Hawking, em O Universo em uma casca de noz (2002). Não queremos viver espremidos como numa rampa de acesso a um estádio de futebol em final de campeonato. E, como isso, na prática, inviabilizaria a sobrevivência do ser humano, bem como a da maioria das espécies, podemos supor que até lá tenhamos adotado as medidas capazes de evitar a catástrofe.

Um efetivo controle de natalidade em escala global é a resposta óbvia que nos vem à mente, mas como tal medida também dependeria da superação de obstáculos políticos e, principalmente, religiosos de grande complexidade, outras saídas devem ser tentadas, paralelamente. Imaginar um horizonte de distopia nos ajuda a ter um olhar mais lúcido e responsável para os desafios do presente. Um dos desafios é aumentar a produção da agricultura e da pecuária, a fim de alimentar mais e mais bocas, sem, contudo, levar à total devastação de florestas, agravar as mudanças climáticas ou extrapolar no emprego de agrotóxicos, nocivos à saúde.

O Brasil tem conseguido aumentar a produção de alimentos sem ampliar as áreas destinadas à agropecuária. Aumento de produtividade.  Mas a busca de novos patamares de eficiência, tendo em vista a crescente demanda por alimentos, em algum momento encontrará limites que determinarão a incorporação de novas áreas para o plantio e para o gado. Se reconhecermos o uso mais racional dos recursos naturais do Planeta como um princípio a ser respeitado – até para evitar o futuro distópico – outras respostas terão que ser dadas pela Ciência, e adotadas pelos governantes.

Depois de 4 bilhões de anos de vida orgânica evoluindo por seleção natural, estamos caminhando para a era da vida inorgânica configurada por design inteligente, afirma Yuval Noah Harari, em 21 Lições para o Século 21 (2018). Mais do que isso, em futuro bem próximo, prevê o historiador em sua utopia (ou seria uma distopia?), seremos capazes de produzir em escala de consumo, a partir da bioengenharia, desde uma cenoura até uma suculenta bisteca bovina, o que teoricamente resolveria o problema da produção de alimentos e de seu impacto sobre o ambiente, sem, no entanto, equacionar outras questões relativas à economia, em especial a geração de empregos.

De olho no futuro, analisamos o noticiário da semana passada sobre o impacto da demanda da China sobre os preços dos alimentos no Brasil com preocupação. Pequim decidiu fazer estoques estratégicos, aumentando a compra de grãos e proteína animal. O Brasil foi um de seus grandes vendedores, favorecido por preços mais competitivos, tendo em vista à forte desvalorização do real frente ao dólar (40% nos últimos 12 meses).

Entre janeiro a julho, as compras chinesas injetaram US$ 24 bilhões no agronegócio brasileiro, cifra recorde para um primeiro semestre de ano e 30% superior ao mesmo período de 2019. Essas exportações garantiram saldos positivos da balança comercial e impediram que a queda do PIB no semestre fosse ainda maior. Mas o efeito colateral está aí: aumento dos preços de itens da cesta básica em até 23% nos últimos 12 meses e risco de desabastecimento.

Como não há de se falar em controle de preços, porque a medida vai contra a eficiência econômica e gera outras distorções que acabam atingindo o próprio consumidor, o que se espera é que o próprio aumento da demanda interna leve a uma maior produção e ao reequilíbrio entre oferta e procura. Ou a substituição, pela população, de itens mais caros pelos que estão mais baratos, até que a situação se normalize. Isso, é claro, enquanto a China e o mundo não adotarem um controle de natalidade mais rigoroso e a bisteca biônica não chegar às prateleiras, lembrando que a iguaria do Harari também estará sujeita às oscilações de mercado, que determinam a formação dos preços dos produtos.

 Os excedentes

Os mais românticos (ingênuos?) apostam na agricultura familiar como um caminho para resolver os problemas da fome no mundo, e também para prevenir as agressões ao ambiente e levar a produção de alimentos a um patamar mais ético no que toca o respeito à dignidade dos animais esse, por sinal, um tema recorrente nos livros de Harari, e com grande razão. Sim, é isso mesmo, a bioética.

Porém, a agricultura familiar, por si só, mesmo que não esteja voltada apenas para a subsistência, não teria escala para prover alimentos para bilhões e bilhões de pessoas. Além disso, os produtos da agricultura familiar que venham a ser comercializados – os excedentes, a fonte do lucro – também estarão sujeitos às oscilações de demanda e, por consequência, à variação de preços.

Tudo considerado, o agronegócio não deve ser demonizado, pois não é problema, mas parte da solução. No momento, a melhor solução. Nunca é demais lembrar que a agricultura planificada, ou seja, comunista, onde o preço era definido pelo burocrata, matou milhões de fome na extinta URSS, sob Stalin. A produção agropecuária de Cuba é pífia pela mesma razão. Falta a mola propulsora. Falta o lucro.

 

Por Nilson Mello