Sorte
deles, azar o nosso
A
liberdade é o direito de fazer tudo o que as leis permitem; se um cidadão
pudesse fazer tudo o que elas proíbem, não haveria mais liberdade, porque os
outros também teriam tal poder. A sentença é de Montesquieu, em Do Espírito das Leis, obra iluminista de
1748, que, seguindo o racionalismo iniciado com Descartes no século anterior,
procurou dar cientificidade às ciências sociais e, por extensão, ao direito e à
política.
Contudo,
mesmo atrelado a critérios científicos, ou seja, a provas e evidências, na
melhor tradição cartesiana, as leis não poderão estar desprovidas de seu
caráter axiológico, do seu valor moral, do contrário deturparão a realidade que,
em prol da harmonia social, se destinam a regular. O título do livro por sinal
expressa essa preocupação.
O
que se pretende exatamente com as leis ou com uma lei em particular? Qual foi a
vontade do legislador, representando a coletividade, e a que fim ela se
destina? A racionalidade científica deve ser buscada no conteúdo de uma norma,
não apenas na sua forma. E a razão não está apartada da moral. Na verdade, a
moral é consequência da razão, e vice-versa.
Promulgada
em junho de 2010, a Lei da Ficha Limpa (Lei Complementar no 135) resultou de um grande
movimento popular que tinha como objetivo garantir idoneidade aos postulantes
de cargos eletivos. Contou, para a sua tramitação e aprovação no Congresso, com
a assinatura de mais de 1,6 milhão de eleitores, que traduziam o sentimento de
repúdio da sociedade à corrupção no meio político.
A
Ficha Limpa não impediu que, de lá para cá, houvesse outros casos de corrupção envolvendo
candidatos, parlamentares e governantes. Mas o crivo legal dá ao menos ao
eleitor a esperança de que um ambiente político ainda mais degenerado está
sendo evitado, além da certeza de que o infrator estará fora do páreo por duas
legislaturas - os oito anos de penalidade previstos pela norma para quem praticou
atos ilícitos em campanha, como caixa dois ou abuso de poder econômico e
político.
A
regra de deixar o mau candidato de molho por duas legislaturas valeria para
2020, não fosse a decisão do Tribunal Superior Eleitoral do dia 1º de setembro.
Por cinco votos a dois, o TSE deu
interpretação literal – e, portanto, podemos dizer, desprovida de racionalidade
e moralidade – à Emenda Constitucional no
107, de julho passado, que adiou de 4 de outubro para 15 de novembro
o primeiro turno das eleições deste ano, em função da pandemia de
Covid-19.
Na
contramão do parecer do Ministério Público Eleitoral, que temia o “desprezo
pela moralidade eleitoral”, cinco dos sete ministros entenderam que, como a lei
estabeleceu oito anos de inelegibilidade a contar da data da eleição em que
ocorreu o ato ilícito, e a EC 107 alterou a data do pleito, mas foi omissa
quanto aos prazos da Ficha Limpa, os políticos enquadrados em 2012 (cujo
primeiro turno se deu em 7 de outubro), estão livres para concorrer em 15 de
novembro, o que não aconteceria se o escrutínio fosse mantido para o dia 04 do
mês que vem. Cabe indagar se omissão dos parlamentares foi proposital. Pelo
histórico de fisiologismo, provavelmente sim.
O MP
Eleitoral propunha que a inelegibilidade também fosse estendida até 31 de
dezembro, fazendo valer o “espírito”
da Lei da Ficha Limpa. Agora, calcula-se que mais de 1,5 mil fichas-sujas que
estariam impedidos de concorrer poderão participar da eleição. Por obra de uma
interpretação literal, em detrimento de um entendimento axiológico, a Justiça
Eleitoral lhes deu uma liberdade que afronta a liberdade de todos os
brasileiros que querem candidaturas limpas. Ao sustentar o seu voto a favor dos
fichas-sujas, neste caso, o ministro Alexandre de Moraes disse que “sorte é
sorte”. Sorte deles, azar o nosso.
Por Nilson Mello
Tem como dar os nomes daqui do Rio de Janeiro? seria e é grande serviço.
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