quarta-feira, 23 de setembro de 2020

Eleições 2020

 

Sorte deles, azar o nosso

(Obs: este artigo foi publicado simultaneamente com o Correio da Manhã)

    A liberdade é o direito de fazer tudo o que as leis permitem; se um cidadão pudesse fazer tudo o que elas proíbem, não haveria mais liberdade, porque os outros também teriam tal poder. A sentença é de Montesquieu, em Do Espírito das Leis, obra iluminista de 1748, que, seguindo o racionalismo iniciado com Descartes no século anterior, procurou dar cientificidade às ciências sociais e, por extensão, ao direito e à política.

Contudo, mesmo atrelado a critérios científicos, ou seja, a provas e evidências, na melhor tradição cartesiana, as leis não poderão estar desprovidas de seu caráter axiológico, do seu valor moral, do contrário deturparão a realidade que, em prol da harmonia social, se destinam a regular. O título do livro por sinal expressa essa preocupação.

O que se pretende exatamente com as leis ou com uma lei em particular? Qual foi a vontade do legislador, representando a coletividade, e a que fim ela se destina? A racionalidade científica deve ser buscada no conteúdo de uma norma, não apenas na sua forma. E a razão não está apartada da moral. Na verdade, a moral é consequência da razão, e vice-versa.

Promulgada em junho de 2010, a Lei da Ficha Limpa (Lei Complementar no 135) resultou de um grande movimento popular que tinha como objetivo garantir idoneidade aos postulantes de cargos eletivos. Contou, para a sua tramitação e aprovação no Congresso, com a assinatura de mais de 1,6 milhão de eleitores, que traduziam o sentimento de repúdio da sociedade à corrupção no meio político.

A Ficha Limpa não impediu que, de lá para cá, houvesse outros casos de corrupção envolvendo candidatos, parlamentares e governantes. Mas o crivo legal dá ao menos ao eleitor a esperança de que um ambiente político ainda mais degenerado está sendo evitado, além da certeza de que o infrator estará fora do páreo por duas legislaturas - os oito anos de penalidade previstos pela norma para quem praticou atos ilícitos em campanha, como caixa dois ou abuso de poder econômico e político.

A regra de deixar o mau candidato de molho por duas legislaturas valeria para 2020, não fosse a decisão do Tribunal Superior Eleitoral do dia 1º de setembro.  Por cinco votos a dois, o TSE deu interpretação literal – e, portanto, podemos dizer, desprovida de racionalidade e moralidade – à Emenda Constitucional no 107, de julho passado, que adiou de 4 de outubro para 15 de novembro o primeiro turno das eleições deste ano, em função da pandemia de Covid-19. 

Na contramão do parecer do Ministério Público Eleitoral, que temia o “desprezo pela moralidade eleitoral”, cinco dos sete ministros entenderam que, como a lei estabeleceu oito anos de inelegibilidade a contar da data da eleição em que ocorreu o ato ilícito, e a EC 107 alterou a data do pleito, mas foi omissa quanto aos prazos da Ficha Limpa, os políticos enquadrados em 2012 (cujo primeiro turno se deu em 7 de outubro), estão livres para concorrer em 15 de novembro, o que não aconteceria se o escrutínio fosse mantido para o dia 04 do mês que vem. Cabe indagar se omissão dos parlamentares foi proposital. Pelo histórico de fisiologismo, provavelmente sim.

O MP Eleitoral propunha que a inelegibilidade também fosse estendida até 31 de dezembro, fazendo valer o “espírito” da Lei da Ficha Limpa. Agora, calcula-se que mais de 1,5 mil fichas-sujas que estariam impedidos de concorrer poderão participar da eleição. Por obra de uma interpretação literal, em detrimento de um entendimento axiológico, a Justiça Eleitoral lhes deu uma liberdade que afronta a liberdade de todos os brasileiros que querem candidaturas limpas. Ao sustentar o seu voto a favor dos fichas-sujas, neste caso, o ministro Alexandre de Moraes disse que “sorte é sorte”. Sorte deles, azar o nosso.

Por Nilson Mello

Um comentário: