Manobra espúria
Em “Os donos
do Poder”, o brasileiro Raymundo Faro, outro jurista com pendor para a
sociologia, destrincha as razões históricas do clientelismo no Brasil e, a
partir daí, apresenta o diagnóstico do atraso do país. Desde os tempos de
colônia, somos reféns de práticas patrimonialistas que obstam o nosso
desenvolvimento social.
A referência
a Weber e a Faoro é oportuna porque nos deparamos por esses dias com clara
tentativa de captura da esfera pública pelo interesse privado. Foi o que
aconteceu quando o Supremo Tribunal Federal, o Superior Tribunal de Justiça e o
Tribunal Superior do Trabalho fizeram gestões para obter de forma privilegiada
– e indevida – para seus ministros, servidores e familiares desses a vacina
contra a Covid-19.
A manobra
dos “detentores do Poder” foi rechaçada pela Fiocruz, que avisou: todas as
doses do imunizante serão encaminhadas ao Ministério da Saúde, para
distribuição à população de acordo com critérios médicos. É triste ver órgãos
do Judiciário, a quem cabe a defesa do Estado de Direito, agir contrariamente à
sociedade.
No vácuo de liderança deixado pelo
Executivo, declaradamente contrário à prioridade da imunização (enquanto 40
países já estão em processo de vacinação), os “estamentos” resolveram salvar a
própria pele. A imagem do Titanic indo a pique após colidir com o iceberg, com
escaleres apenas para a primeira classe, serve como metáfora.
Não fosse uma notinha em coluna de
jornal o episódio sequer teria sido notado pela opinião pública – comprovando que,
em países livres e democráticos, a imprensa é mesmo o “olhar onipresente do
povo” sobre os seus governantes. Ainda assim, as manifestações de indignação foram
rarefeitas, o que revela o quão habituados estamos às práticas espúrias que
distorceram a razão de ser do Estado.
A Constituição de 1988, fruto da
redemocratização, fracassou na sua maior tarefa, a de modernização do Estado
brasileiro. Na contramão, engendrou uma máquina administrativa dispendiosa que
tem exaurido o setor produtivo. De quebra, potencializou as desigualdades que
prometia combater, uma vez que consolidou uma casta de servidores com
privilégios inatingíveis para a grande maioria dos trabalhadores. É preciso
reverter essa lógica perversa. O Estado existe para servir à sociedade, e não
para servir-se dela.
A reforma administrativa reprogramada
para o ano que se inicia pode não ser a condição suficiente (até porque o
patrimonialismo é também cultural), mas é uma condição necessária para que o
Brasil retome o rumo da modernização e do desenvolvimento econômico e social.
Que não percamos mais esta oportunidade.
Por Nilson Mello
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