O
que a cabotagem realmente precisa
O
Projeto de Lei 4.199 de 2020, também conhecido como BR do Mar, é dessas
iniciativas cercadas de boas intenções que, contudo, não deve surtir o efeito
esperado, uma vez que parte de diagnósticos equivocados. Encaminhado ao
Congresso no início de agosto, o PL tem como objetivo estimular o crescimento do
transporte de cabotagem, isto é, entre os portos nacionais, e, para tanto,
considera que o principal entrave ao setor é a pequena disponibilidade de
navios. Pressupõe, também, que o modal está estagnado, registrando baixo
crescimento. Com trâmite de urgência pedido pelo Planalto, o PL passaria a
trancar a pauta na Câmara no dia 28, mas a matéria não pôde ser apreciada em
face do encerramento da ordem do dia**.
Ambas
as premissas do projeto são falsas, mas, teoricamente, com base nelas, o PL estabelece
medidas para que empresas estrangeiras possam ampliar a operação na cabotagem,
como se essa participação hoje fosse reduzida, o que também não é verdadeiro,
pois 95% do transporte de cabotagem já são feitos por empresas sob controle
estrangeiro. Para completar, o PL abre indiretamente a possibilidade de
financiamento a estaleiros estrangeiros, para a produção de embarcações no
exterior, em detrimento da indústria naval nacional (ver Nota de
Esclarecimento ao término do artigo). Em vez de atrairmos mais
financiamentos para o Brasil, estaríamos, na prática, disponibilizando recursos
para garantir o emprego de operários chineses, coreanos e japoneses.
Na
grande maioria dos países do mundo, mesmo nas economias mais abertas, como os
Estados Unidos, o transporte de cabotagem é reservado a empresas nacionais, com
tripulações nacionais e, de preferência, operando navios produzidos no próprio
país. E isso se deve a questões estratégicas atinentes à soberania, à segurança
e à economia, que guardam estreita relação entre si. Por sua vez, a vinculação
da indústria naval ao modal é feita como forma de estímulo à produção e à
geração de empregos. São setores que, por razões óbvias, devem integrar uma
mesma cadeia econômica, com crescimento recíproco, retroalimentado, a exemplo
do que o agronegócio representa para a indústria de implementos agrícolas, e
vice-versa.
A
cabotagem é um dos modais que mais crescem no Brasil, e hoje representa 11% de
nossa matriz de transportes. Na década passada, cresceu em média 10% ao ano, de
acordo com dados da Agência Nacional de Transportes Aquaviários (Antaq) e da
Confederação Nacional dos Transportes (CNT).
De 2010 a 2018, o crescimento do modal foi de 28%, saltando de 127
milhões de toneladas transportadas para algo próximo aos 164 milhões de
toneladas. De 2017 para 2018, o crescimento no volume transportado foi de 16,7%.
Em
2019, em particular no primeiro semestre daquele ano, comparado ao mesmo
período de 2018, quando houve a greve dos caminhoneiros, o crescimento do modal
foi ainda mais robusto, de 24,7%. Os “donos” da carga perceberam que não
poderiam ficar reféns das contingências (políticas e estruturais) das rodovias
– ou do transporte rodoviário. O transporte marítimo pelos mais de 8 mil km de
costa brasileira é mais seguro e muito menos poluente do que o transporte
rodoviário. Por essa razão, é razoável que o governo pretenda dar maior
estímulo ao seu desenvolvimento – embora, como demonstram os números acima –
esse crescimento esteja sendo sustentável ao longo do tempo.
Contudo,
não será ofertando um número maior de navios que se dará novo impulso ao modal.
Muito menos com navios fabricados no exterior, à custa do desmonte de nossa
indústria naval. Isso vai contra os interesses nacionais. Os verdadeiros
entraves do setor não estão relacionados à falta de embarcações. Vale dizer que
a taxa de ocupação média da frota que opera na cabotagem está em torno de 75%
(25% de ociosidade). O gargalo, portanto, não está aí.
Os
grandes óbices à cabotagem são o excesso de burocracia nos portos - onde há uma
dezena de órgãos intervenientes, sem a devida uniformidade de atuação -, as
elevadas taxas portuárias, a obrigatoriedade dos serviços de praticagem
(pilotos específicos para cada porto), os elevados encargos trabalhistas das
tripulações brasileiras e o alto preço do bunker
(combustível naval), sobre o qual incide o ICMS, ao contrário do diesel
rodoviário, subsidiado. Nenhum desses entraves é enfrentado pelo BR do Mar, que
prefere apostar numa maior entrada em serviço de navios estrangeiros,
fabricados no exterior, com financiamento indireto brasileiro. O que deve então
ser feito em prol da cabotagem?
De
forma prática, acabar com a incidência de ICMS sobre o bunker, tornando a competição com o modal rodoviário justa; eliminar
a obrigatoriedade do serviço de praticagem para os navios que operam
regularmente na cabotagem; permitir o livre trânsito de carga entre os portos
nacionais, sem burocracia; e reduzir os encargos trabalhistas sobre as
tripulações brasileiras, bem como equiparar o número de tripulantes a níveis
internacionais, o que hoje não ocorre, isso enquanto não se têm uma efetiva
reforma trabalhista que desonere de vez o emprego no Brasil.
Complementarmente,
como concessão às empresas internacionais que operam no Mercosul, determinar a
abertura do mercado entre Brasil. Argentina e Uruguai. Paralelamente, conceder
às embarcações produzidas no Brasil prioridade na renovação de contratos de
transporte de afretamento marítimo de longo prazo, nos afretamentos por viagem.
Por fim, conceder às Empresas Brasileiras de Investimentos Navais (EBIN) isenção
de Imposto de Renda, a exemplo do que está sendo feito com os fundos de infraestrutura,
quando o investimento for realizado em construção de navios no Brasil. Esse
roteiro é desafiador, mas muito mais realista.
*Nelson L. Carlini é engenheiro
naval e Nilson Mello, advogado e jornalista.
** O pedido de urgência
deverá ser retirado pelo Executivo.
Nota de esclarecimento dos autores sobre o
financiamento:
Em
nosso artigo “O BR do Mar e o que a cabotagem realmente precisa”, publicado
pela Agência iNFRA em 25/09, dissemos que o “PL abre a possibilidade de
financiamento a estaleiros estrangeiros, via Fundo da Marinha Mercante (FMM),
para a produção de embarcações no exterior, em detrimento da indústria naval
nacional”, o que suscitou dúvidas por parte de entidades ligadas ao setor de
navegação.
De
fato, o Projeto de Lei nº 4.199 não estabelece
expressamente essa alternativa. Contudo, na prática é o que indiretamente
aconteceria, na medida em que a essas empresas com sede no Brasil, mas controladas
por matriz no exterior, seria dado acesso ao Adicional
de Frete para Renovação da Marinha Mercante (AFRMM).
O PL
autoriza a importação sem restrições (isenção) de um navio, mas a matriz poderá
criar quantas subsidiárias considerar convenientes para transferir para o
Brasil a quantidade de navios que entender necessária à sua operação na
cabotagem. Ao mesmo tempo, a matriz no exterior poderá construir embarcações em
outros países, uma vez que tem colocação assegurada para as suas embarcações
usadas: o mercado brasileiro de cabotagem.
Na
prática, como essa “triangulação” poderá acontecer? De acordo com os incisos I
e II do artigo 11 do PL nº 4.199 (BR do MAR), essas subsidiárias passam a
fazer jus aos recursos do AFRMM, tributo pago por importadores e que é destinado
à quitação do financiamento do Fundo da Marinha Mercante (FMM), teoricamente,
usado na construção de embarcações em estaleiros brasileiros.
No caso do segmento de contêineres, por exemplo, esses
recursos seriam suficientes para a matriz amortizar ou quitar o financiamento
usado para pagar navios produzidos em outros países. Na prática, é o que
ocorrerá, razão pela qual dissemos que o “PL abre a possibilidade de
financiamento a estaleiros estrangeiros, via Fundo da Marinha Mercante (FMM),
para a produção de embarcações no exterior, em detrimento da indústria naval
nacional”.
Um
aspecto ainda mais controverso é que, no caso de origem ou destino Norte e
Nordeste, o AFRMM não é pago à empresa de navegação pelo dono da carga
(embarcador), mas na forma de ressarcimento do Fundo de Marinha Mercante (FMM).
Isto
significa que o navio afretado, construído no exterior, fará jus ao recebimento
de recursos originalmente destinados a pagamento de financiamentos para
construção no Brasil. Com esta possibilidade
aberta pelo artigo 11 do nº 4.199 esses recursos do FMM estariam
liberados à EBN para amortizar a compra de navios, mesmo na China, Japão,
Cingapura e Coréia, entre outros. (NLC e NM)
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