quarta-feira, 22 de outubro de 2014

Entrevista

A política econômica deixou escapar a virtude da cautela
                                          Luis Otavio F. Façanha

    A afirmação expressa no título é do economista e professor Luiz Otavio Figueiredo Façanha, para quem o governo cometeu equívocos na condução macroeconômica ao buscar taxas elevadas de investimento por meio de desonerações e estímulos ao crédito. Em entrevista ao Blog Meta Mensagem, Otavio Façanha lembra que a “indulgência (do governo) com a inflação não é sincera”.
Doutor pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) - onde se formou, lecionou por décadas e foi pró-reitor de Finanças e Patrimônio entre 1994 e 1998 - e pela Universidade de Vanderbilt (USA), Façanha é um estudioso do setor industrial, da criação e sobrevivência de firmas, e um atento observador das políticas públicas, tema de sua tese de doutorado na UFRJ.
Na década de 1980, trabalhou como pesquisador da Financiadora de Estudos e Projetos (Finep), desenvolvendo pesquisas para a indústria brasileira e, posteriormente, coordenando programa de avaliação de processo decisório e das atividades de financiamento a empresas brasileiras, sob os auspícios do Bando Interamericano de Desenvolvimento (BID).
No Instituto de Economia da UFRJ, na década de 1990, lecionou história da Economia e teoria e formação do sistema financeiro internacional, e ainda microeconomia, organização industrial, teoria dos jogos e econometria. Neste período, consolidou seu interesse pelo estudo de organizaçōes complexas, publicando um importante trabalho sobre a Indústria Brasileira na Década de 70, em conjunto com a professora Denise Rodrigues. Escreveu, ainda, entre outros, Brazilian federal universities: relative efficiency evaluation and data envelopment analysis, em conjunto com os professores Alexandre Marinho e Marcelo Resende.
Anos de docência, profundos estudos e pesquisas não o livram da surpresa (nem sempre agradável) com elucubrações econômicas que desafiam a lógica. Confessa sua perplexidade, por exemplo, com o fato de os formuladores do governo terem preconizado como motor básico do sistema econômico a ampliação do emprego e da renda. Alerta: emprego e renda são, na verdade, mais os resultados do que os fatores desencadeadores do processo de crescimento. No que toca a atuação do Banco Central no controle da inflação, ressalta que “há um generalizado desconforto em relação à política fiscal”. A seguir, a íntegra da entrevista.

Blog Meta Mensagem - A indústria vem perdendo espaço no PIB, e eficiência em relação aos competidores externos. Por quê?


Luis Otavio Façanha - De fato, a indústria brasileira vem perdendo espaço no PIB. Deixou os 58% de participação em 1985 e os 41% em 1992 para trás, encontrando-se, agora, na faixa de 26%. E a ideia da desintustrialização chegou a ser agrupada ao conjunto dos efeitos pecaminosos do Plano Real, o mesmo que nos livrou da hiperinflação e recolocou o país em rota de crescimento. Mas o fato notável a observar é que o declínio da participação da indústria no PIB é semelhante ao de indústrias maduras nos respectivos PIBs. Na China, a participação da produção industrial no PIB ainda é de cerca de 30%. Nos EUA, a indústria empregava apenas 11% da força de trabalho em 2005, mas no Brasil a indústria ainda emprega aproximadamente 20% da força de trabalho. Essas mudanças, uma transformação e reconfiguração “estruturais” na economia, levaram tempo para serem percebidas e melhor analisadas, e durante alguns anos a tese da “desintustrialização” andou em voga. Programas de governo não fazem menção direta ao tema, como mencionarei, e o fenômeno não resultou de decisões de política econômica e de desenvolvimento.  Hoje, o setor de serviços tem participação aproximada de 60% do PIB brasileiro, como em vários outros países com economias maduras. Passou incólume pela desaceleração até 2012 e, em 2013, respondeu por 49% do saldo líquido de vagas, cifra quatro vezes superior ao do total da indústria.  Emprega mais de 16 milhōes de trabalhadores (e a indústria cerca de 8 milhōes) e estive conosco nas passeatas de 2013, clamando, dentre outras reivindicaçōes, por melhores condiçōes de mobilidade. O que viabilizou tanta pujança? A oferta de mão de obra. Examinem, por favor, os quadros apresentados pelo IBGE relativos à distribuição etária da população brasileira, que eu sumarizo livremente, como segue.



BMM - A media de crescimento econômico tem sido baixa nos últimos. Há consenso de que o Brasil precisa aumentar as taxas de investimento para voltar a crescer. E também há consenso de que precisa aumentar a oferta de bens e serviços, bem como a eficiência do setor produtivo, para reduzir as pressōes inflacionárias. Políticas de desoneraçōes teriam eficácia nesse contexto? Além de restriçōes orçamentárias, que limitam o investimento público, o setor privado não se sente seguro para investir? Há aí um impasse? Quais seriam outros fatores da falta de competitividade e como resolvê-los?


Luis Otavio Façanha - Houve declínio de investimentos, sem dúvida. É sabido que, depois de ótimos desempenhos no governo Lula, quando o PIB cresceu em média cerca de 4%, recentemente (com o PIB crescendo menos) a taxa de investimento (relação Innvestimento/PIB) caiu muito acentuadamente no segundo trimestre de 2014 em relação ao correspondente de 2013. Mas a indústria de bens de capital (a indústria que atende à demanda dos bens de investimento) cresceu muito entre 2013 e 2014. Caindo muito acentuadamente em 2014, cerca de 9%! Vou complementar esses comentários com alguns gráficos, a meu ver, ilustrativos. Os dois primeiros gráficos tratam da indústria de bens de capital.


Os dois gráficos que se seguem referem-se à produção industrial, especificamente à variação do índice, em relação ao mês imediatamente anterior, no primeiro caso e em relação a igual período, no segundo.



O primeiro dos diagramas mostra o índice da produção de bens de capital. A base (=100) é janeiro de 2012, o que nos leva a verificar que, entre 2012 e 2014 a produção desses bens de investimento chega a dobrar em relação à base. Já em termos de variação o cenário configure-se menos róseo, devido às fortes oscilaçōes. O agregado da produção industrial oscilou muito menos, ficando praticamente estacionário na faixa de 1% ao longo do período, vindo a oscilar fortemente nos meses finais de 2013 e em 2014, como se pode notar no gráfico que se segue.


Alguns especialistas já assinalaram que essas oscilaçōes podem resultar em percepçōes macroeconômicas voláteis, que se acumulam a incertezas microeconômicas nada favoráveis a investimentos. A esse respeito, uma ilustração pode ser útil. No trabalho que mencionei sobre sobrevivência de firmas, examinamos mais de 20.000 empresas longitudinalmente, de 1996 a 2005. Nesse último ano, apenas cerca de 7 mil empresas ainda estavam em operação, o que indica elevada taxa de mortalidade, como em economias maduras, enfatize-se, mas sem o ambiente de negócios que facilite a criação de novas firmas. Em suma, a competição, benéfica, é acirrada, e entraves burocráticos, um componente do “custo Brasil” já de conhecimento público, são mais a regra do que exceção.

Mas, o problema da indústria e o declínio dos investimentos estariam então associados a restriçōes de recursos? Não creio. Em 2005, pudemos verificar, o BNDES dirigiu cerca de US$ 10 bilhōes para médias e pequenas empresas.

BMM - Mas, afinal, o que não funcionou em sua opinião?
Eu diria que seriam necessários ajustes macroeconômicos no lugar, por exemplo, de (onerosas e discricionárias) desoneraçōes fiscais. No lugar disso, o crédito foi expandido e, em 2012 o crédito privado já dava sinais de esgotamento. De 2007 a 2014 as dívidas de pessoas físicas teriam superado a marca de R$ 1 trilhão (R$ 250 bilhōes em 2007). Minha percepção é que a política econômica deixou escapar a virtude da cautela, buscando taxas elevadas de investimento e crescimento (e incorrendo em outras desvirtudes). O comportamento da produção de bens de capital volta a ser ilustrativo do meu argumento. Afinal, previsibilidade é precondição para se alcançar competitividade internacional. Há uma gigantesca literatura sobre inovaçōes nas indústrias que apontam nessa direção, a de horizontes bem definidos de crescimento e do indispensável arejo informacional e tecnológico (que políticas de estímulo à produção local costumam contrariar) Em entrevista ao Globo de 04.10.2014, o economista Otaviano Canuto afirma: “Hoje, o produtor brasileiro tem a sua competitividade prejudicada por não ter acesso ao que há de melhor lá fora”. 

BMM - Baixo crescimento, inflação em alta. O que exatamente deu errado na política econômica do atual governo?

Luis Otavio Façanha - Num dos últimos fins de semana, li um artigo do professor Ricardo Bielschowsky, intitulado O modelo de desenvolvimento proposto por Lula e Dilma (Brasil Debate), cujo objetivo primordial foi o de divulgar indicadores de conquistas sociais dos últimos 10 anos. No artigo, é citado o Programa de Governo 2002, reproduzido como se segue: “… o motor básico do sistema é a ampliação do emprego e da renda per capita e, consequentemente, da massa salarial que conformará o assim chamado mercado interno de massas. O crescimento sustentado a médio e longo prazos resultará da ampliação dos investimentos na infraestrutura econômica e social …”. Confesso que me surpreende ler a afirmação de que “o motor básico” de um sistema econômico possa ser constituído por “ampliação do emprego e renda”, mais resultante do que desencadeador de expansōes, mas não se deve descartar a possibilidade dos formuladores do plano estarem diante da atraente distribuição etária de 2000. Mas, voltando ao artigo mencionado, ao “olhar para o futuro”, o texto propōe, no campo social, “ampliar em quantidade e qualidade (grifo meu) os investimentos e gastos sociais …”, tendo antes mencionado que seria necessário  “recuperar o crescimento e expandir o investimento publico”, quantitativamente e em qualidade,  “porquanto o investimento industrial se dá principalmente em função da expansão do mercado interno”. O artigo praticamente silencia no que diz respeito à inflação, mencionando estar a mesma estável (e não tolerada) e na amplitude da meta. Como se inexistissem controles de preços para tentar conter a inflação. Deixa de mencionar, também, quaisquer medidas de normalização das políticas macroeconômicas, privilegiando a retomada dos investimentos públicos (para a posterior retomada dos investimentos privados). Segundo o autor, a Dívida Líquida na faixa de 33,8% do PIB, deixaria o futuro governo em situação confortável para atingir aqueles objetivos (ver também artigo do professor Marcio Pochman, na Folha de S. Paulo, 27/09/2014). Como se, por exemplo, não pairassem generalizados desconfortos em relação à transparência da política fiscal. A título de esclarecimento, a dívida bruta, segundo o Banco Central, está na faixa de 60% do PIB, e os jornais de hoje, dia 01/10/2014, estampam notícias alarmantes a respeito do superavit primário Para meu espanto, fiquei sabendo que o câmbio estaria em regime de flutuação livre, e que a magnitude das reservas internacionais adicionariam graus de liberdade à política econômica. Com relação a esses e outros temas pertinentes, convido o leitor a recorrer a vários artigos publicados pelo professor Samuel Pessoa na Folha de S. Paulo dominical. Como ele propõe, desfeita a lista (de 10 itens) da “matriz macroeconômica” do governo atual, poderíamos voltar a crescer a taxas de 3% ao ano. Nada a ver, portanto, com “ajustes ortodoxos” que, segundo o professor Pochman (e outros respeitáveis economistas), tiveram efeitos tão deletérios (quanto discutíveis) para as economias europeias. Para os nossos propósitos, talvez seja mais esclarecedor mencionar uma linha de pesquisa que associa ciclos políticos (mais precisamente, political booms) a crises financeiras (cf. H.Herrera, G. Ordoñez, C. Trebech, CESifo Working Paper 4935, ago 2014), fenômenos frequentes em economias emergentes. A pergunta central do texto merece reprodução: ”Why do policy makers not take more steps to reduce excessive leverage and control credit growth during a (political) boom?”. No nosso caso, o risco de crise financeira encontra-se aprisionado nos bancos públicos. Mas a inflação alcançou o maior índice mensal desde 2002 em dezembro de 2013.

BMM - Qual tem sido a influência da política fiscal no desempenho da economia?

Venho falando da política fiscal, de modo implícito, mas ela está presente em tudo que discutimos. Por exemplo, na resposta à pergunta anterior eu mencionei uma estatística que é de agrado de economistas mais alinhados com as políticas do atual governo (e a mim também, afinal, porque é positiva): o patamar de 43% para a Dívida Líquida - DL. Grosso modo, a DL resulta do total da Dívida Bruta – DB, descontados os créditos do governo. Acontece que o agregado que reflete a política de gastos e investimentos governamentais é a DB, que será financiada pelos impostos, pela rolagem de títulos e pela emissão de novos títulos, dentre outros mecanismos. Ou seja, é sobre a DB que incidem os juros. Vou ilustrar. Segundo os Boletins do Banco Central, de 2009 a 2013 o País pagou cerca de R$ 1,06 trilhão com juros, R$ 249 bilhōes em 2013. O percentual dos juros com relação ao PIB chega a mais de 5%, cifra que preocupa os especialistas, uma vez que à luz de comparaçōes internacionais reflete tomada de recursos onerosa. Mais preocupante, ainda, é a operação de repasses de recursos ao BNDES, que montaram a cerca de R$ 500 bilhōes. Esses recursos foram obtidos a juros altos, a Selic, e com prazos comprimidos, e foram (parcialmente) emprestados a juros subsidiados em operaçōes de longo prazo. A DL leva em conta o pagamento dos empréstimos, que serão recebidos ao longo dos anos. À luz desses comentários (e de uma pergunta que eu deliberadamente omiti), o mínimo que se pode dizer é que o debate em torno da independência do Banco Central deveria ser protelado. Política fiscal com pouca nitidez aprisiona as políticas do Banco Central. Que sinal estarão recebendo os agentes econômicos quando observam uma política fiscal expansionista ser acompanhada por um aumento de juros?

BMM - O governo também afirma que um combate mais efetivo à inflação geraria desemprego, dando a entender que deixou a inflação fugir da meta para evitar efeitos sociais indesejáveis. Isso procede?  Como o Sr. analisa a trajetória dos gastos públicos no Brasil?

Em novembro de 2013, o IBGE informava que a taxa de desemprego no país fora causada pela migração de indivíduos para a inatividade, vale dizer, para situação em que o indivíduo não estuda, não trabalha e tampouco procura emprego. Estima-se que o desemprego entre jovens de 18 a 24 anos seja de 23%, e entre adultos de 25 a 29 anos alcance 29%. E esses números não pressionam as estatísticas oficiais. Ainda assim, o desemprego vem aumentando persistentemente. E a indulgência com a inflação não é sincera, tal como você mencionou, e eu também. O artigo que mencionei na resposta à pergunta anterior, declara estar a mesma “obedientemente” dentro da amplitude da meta, a ponto da Petrobras conviver com preços administrados!  Mas o objetivo maior daquele artigo foi o de divulgar indicadores de ganhos sociais alcançados nas duas últimas décadas, eu diria. E que resultam da extraordinária expansão do setor serviços (o IBGE cobre 650 mil empresas, nas atividades de alojamento e alimentação, transporte e atividades auxiliaries, correios e telecomunicaçōes, atividades imobiliárias, de informática, serviços prestados a empresas e outras). Mas, isso não implica deixar de crescer, o que é possível, respeitando a lógica de decisão dos agentes que se pretendem sejam incentivados (mais do que abrigando setores específicos com renúncias de receita de impostos de resultados no mínimo duvidosos) e aprimorando a qualidade dos investimentos públicos, que são direta e indiretamente indispensáveis a qualquer proposta de desenvolvimento econômico. Adicionando alguns temas, a serem melhor avaliados e que configuram (padrōes de comparação) e custos  de oportunidade dos gastos públicos: o conteúdo de inovação tecnológica dos investimentos realizados com o financiamento do BNDES e da FINEP; a opção rodoviária no contexto da mobilidade urbana; as intervençōes no setor de energia, e o recurso emergencial à energia termoelétrica; a produção de etanol; a energia eólica; a infraestrutura de saneamento; a educação pré-escolar que sempre supus estritamente complementar aos objetivos do programa bolsa-família,  que, por sua vez, nasceu como bolsa-escola. Temas que, assim eu espero, voltem ao debate público com menos partidarismos e mais bem informados. Deixo-os, temporariamente, com o professor Samuel Pessoa, (que nos propôs há pouco voltar a crescer a 3% a.a) para quem “… (O) contrato social da redemocratização produz constrangimentos ao nosso crescimento, pois resulta em baixa taxa de poupança e investimento”. O que não implica deixar de crescer!



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