A política
econômica deixou escapar a virtude da cautela
A afirmação
expressa no título é do economista e professor Luiz Otavio Figueiredo Façanha,
para quem o governo cometeu equívocos na condução macroeconômica ao buscar taxas
elevadas de investimento por meio de desonerações e estímulos ao crédito. Em
entrevista ao Blog Meta Mensagem, Otavio Façanha lembra que a
“indulgência (do governo) com a inflação não é sincera”.
Doutor pela
Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) - onde se formou, lecionou por
décadas e foi pró-reitor de Finanças e Patrimônio entre 1994 e 1998 - e pela
Universidade de Vanderbilt (USA), Façanha é um estudioso do setor industrial, da
criação e sobrevivência de firmas, e um atento observador das políticas
públicas, tema de sua tese de doutorado na UFRJ.
Na década de 1980,
trabalhou como pesquisador da Financiadora de Estudos e Projetos (Finep),
desenvolvendo pesquisas para a indústria brasileira e, posteriormente,
coordenando programa de avaliação de processo decisório e das atividades de
financiamento a empresas brasileiras, sob os auspícios do Bando Interamericano
de Desenvolvimento (BID).
No Instituto de
Economia da UFRJ, na década de 1990, lecionou história da Economia e teoria e
formação do sistema financeiro internacional, e ainda microeconomia, organização
industrial, teoria dos jogos e econometria. Neste período, consolidou seu
interesse pelo estudo de organizaçōes complexas, publicando um importante
trabalho sobre a Indústria Brasileira na Década de 70, em conjunto com a
professora Denise Rodrigues. Escreveu, ainda, entre outros, Brazilian federal
universities: relative efficiency evaluation and data envelopment analysis,
em conjunto com os professores Alexandre Marinho e Marcelo Resende.
Anos de docência,
profundos estudos e pesquisas não o livram da surpresa (nem sempre agradável)
com elucubrações econômicas que desafiam a lógica. Confessa sua perplexidade,
por exemplo, com o fato de os formuladores do governo terem preconizado como
motor básico do sistema econômico a ampliação do emprego e da renda. Alerta:
emprego e renda são, na verdade, mais os resultados do que os fatores
desencadeadores do processo de crescimento. No que toca a atuação do Banco
Central no controle da inflação, ressalta que “há um generalizado desconforto em
relação à política fiscal”. A seguir, a íntegra da entrevista.
Blog Meta Mensagem
- A indústria vem perdendo espaço no PIB, e eficiência em relação aos
competidores externos. Por quê?
Luis Otavio
Façanha - De fato, a indústria
brasileira vem perdendo espaço no PIB. Deixou os 58% de participação em 1985 e
os 41% em 1992 para trás, encontrando-se, agora, na faixa de 26%. E a ideia da
desintustrialização chegou a ser agrupada ao conjunto dos efeitos pecaminosos do
Plano Real, o mesmo que nos livrou da hiperinflação e recolocou o país em rota
de crescimento. Mas o fato notável a observar é que o declínio da participação
da indústria no PIB é semelhante ao de indústrias maduras nos respectivos PIBs.
Na China, a participação da produção industrial no PIB ainda é de cerca de 30%.
Nos EUA, a indústria empregava apenas 11% da força de trabalho em 2005, mas no
Brasil a indústria ainda emprega aproximadamente 20% da força de trabalho. Essas
mudanças, uma transformação e reconfiguração “estruturais” na economia, levaram
tempo para serem percebidas e melhor analisadas, e durante alguns anos a tese da
“desintustrialização” andou em voga. Programas de governo não fazem menção
direta ao tema, como mencionarei, e o fenômeno não resultou de decisões de
política econômica e de desenvolvimento. Hoje, o setor de serviços tem
participação aproximada de 60% do PIB brasileiro, como em vários outros países
com economias maduras. Passou incólume pela desaceleração até 2012 e, em 2013,
respondeu por 49% do saldo líquido de vagas, cifra quatro vezes superior ao do
total da indústria. Emprega mais de 16 milhōes de trabalhadores (e a indústria
cerca de 8 milhōes) e estive conosco nas passeatas de 2013, clamando, dentre
outras reivindicaçōes, por melhores condiçōes de mobilidade. O que viabilizou
tanta pujança? A oferta de mão de obra. Examinem, por favor, os quadros
apresentados pelo IBGE relativos à distribuição etária da população brasileira,
que eu sumarizo livremente, como segue.
BMM - A media de
crescimento econômico tem sido baixa nos últimos. Há consenso de que o Brasil
precisa aumentar as taxas de investimento para voltar a crescer. E também há
consenso de que precisa aumentar a oferta de bens e serviços, bem como a
eficiência do setor produtivo, para reduzir as pressōes inflacionárias.
Políticas de desoneraçōes teriam eficácia nesse contexto? Além de restriçōes
orçamentárias, que limitam o investimento público, o setor privado não se sente
seguro para investir? Há aí um impasse? Quais seriam outros fatores da falta de
competitividade e como resolvê-los?
Luis Otavio
Façanha - Houve declínio de
investimentos, sem dúvida. É sabido que, depois de ótimos desempenhos no governo
Lula, quando o PIB cresceu em média cerca de 4%, recentemente (com o PIB
crescendo menos) a taxa de investimento (relação Innvestimento/PIB) caiu muito
acentuadamente no segundo trimestre de 2014 em relação ao correspondente de
2013. Mas a indústria de bens de capital (a indústria que atende à demanda dos
bens de investimento) cresceu muito entre 2013 e 2014. Caindo muito
acentuadamente em 2014, cerca de 9%! Vou complementar esses comentários com
alguns gráficos, a meu ver, ilustrativos. Os dois primeiros gráficos tratam da
indústria de bens de capital.
Os dois gráficos
que se seguem referem-se à produção industrial, especificamente à variação do
índice, em relação ao mês imediatamente anterior, no primeiro caso e em relação
a igual período, no segundo.
O primeiro dos
diagramas mostra o índice da produção de bens de capital. A base (=100) é
janeiro de 2012, o que nos leva a verificar que, entre 2012 e 2014 a produção
desses bens de investimento chega a dobrar em relação à base. Já em termos de
variação o cenário configure-se menos róseo, devido às fortes oscilaçōes. O
agregado da produção industrial oscilou muito menos, ficando praticamente
estacionário na faixa de 1% ao longo do período, vindo a oscilar fortemente nos
meses finais de 2013 e em 2014, como se pode notar no gráfico que se
segue.
Alguns
especialistas já assinalaram que essas oscilaçōes podem resultar em percepçōes
macroeconômicas voláteis, que se acumulam a incertezas microeconômicas nada
favoráveis a investimentos. A esse respeito, uma ilustração pode ser útil. No
trabalho que mencionei sobre sobrevivência de firmas, examinamos mais de 20.000
empresas longitudinalmente, de 1996 a 2005. Nesse último ano, apenas cerca de 7
mil empresas ainda estavam em operação, o que indica elevada taxa de
mortalidade, como em economias maduras, enfatize-se, mas sem o ambiente de
negócios que facilite a criação de novas firmas. Em suma, a competição,
benéfica, é acirrada, e entraves burocráticos, um componente do “custo Brasil”
já de conhecimento público, são mais a regra do que exceção.
Mas, o problema da
indústria e o declínio dos investimentos estariam então associados a restriçōes
de recursos? Não creio. Em 2005, pudemos verificar, o BNDES dirigiu cerca de US$
10 bilhōes para médias e pequenas empresas.
BMM - Mas, afinal,
o que não funcionou em sua opinião?
Eu diria que
seriam necessários ajustes macroeconômicos no lugar, por exemplo, de (onerosas e
discricionárias) desoneraçōes fiscais. No lugar disso, o crédito foi expandido
e, em 2012 o crédito privado já dava sinais de esgotamento. De 2007 a 2014 as
dívidas de pessoas físicas teriam superado a marca de R$ 1 trilhão (R$ 250
bilhōes em 2007). Minha percepção é que a política econômica deixou escapar a
virtude da cautela, buscando taxas elevadas de investimento e crescimento (e
incorrendo em outras desvirtudes). O comportamento da produção de bens de
capital volta a ser ilustrativo do meu argumento. Afinal, previsibilidade é
precondição para se alcançar competitividade internacional. Há uma gigantesca
literatura sobre inovaçōes nas indústrias que apontam nessa direção, a de
horizontes bem definidos de crescimento e do indispensável arejo informacional e
tecnológico (que políticas de estímulo à produção local costumam contrariar) Em
entrevista ao Globo de 04.10.2014, o economista Otaviano Canuto afirma: “Hoje, o
produtor brasileiro tem a sua competitividade prejudicada por não ter acesso ao
que há de melhor lá fora”.
BMM - Baixo
crescimento, inflação em alta. O que exatamente deu errado na política econômica
do atual governo?
Luis Otavio
Façanha - Num dos últimos fins de
semana, li um artigo do professor Ricardo Bielschowsky, intitulado O modelo
de desenvolvimento proposto por Lula e Dilma (Brasil Debate), cujo objetivo
primordial foi o de divulgar indicadores de conquistas sociais dos últimos 10
anos. No artigo, é citado o Programa de Governo 2002, reproduzido como se segue:
“… o motor básico do sistema é a ampliação do emprego e da renda per capita e,
consequentemente, da massa salarial que conformará o assim chamado mercado
interno de massas. O crescimento sustentado a médio e longo prazos resultará da
ampliação dos investimentos na infraestrutura econômica e social …”. Confesso
que me surpreende ler a afirmação de que “o motor básico” de um sistema
econômico possa ser constituído por “ampliação do emprego e renda”, mais
resultante do que desencadeador de expansōes, mas não se deve descartar a
possibilidade dos formuladores do plano estarem diante da atraente distribuição
etária de 2000. Mas, voltando ao artigo mencionado, ao “olhar para o futuro”, o
texto propōe, no campo social, “ampliar em quantidade e qualidade (grifo
meu) os investimentos e gastos sociais …”, tendo antes mencionado que seria
necessário “recuperar o crescimento e expandir o investimento publico”,
quantitativamente e em qualidade, “porquanto o investimento industrial se dá
principalmente em função da expansão do mercado interno”. O artigo praticamente
silencia no que diz respeito à inflação, mencionando estar a mesma estável (e
não tolerada) e na amplitude da meta. Como se inexistissem controles de preços
para tentar conter a inflação. Deixa de mencionar, também, quaisquer medidas de
normalização das políticas macroeconômicas, privilegiando a retomada dos
investimentos públicos (para a posterior retomada dos investimentos privados).
Segundo o autor, a Dívida Líquida na faixa de 33,8% do PIB, deixaria o futuro
governo em situação confortável para atingir aqueles objetivos (ver também
artigo do professor Marcio Pochman, na Folha de S. Paulo, 27/09/2014).
Como se, por exemplo, não pairassem generalizados desconfortos em relação à
transparência da política fiscal. A título de esclarecimento, a dívida bruta,
segundo o Banco Central, está na faixa de 60% do PIB, e os jornais de hoje, dia
01/10/2014, estampam notícias alarmantes a respeito do superavit primário
Para meu espanto, fiquei sabendo que o câmbio estaria em regime de flutuação
livre, e que a magnitude das reservas internacionais adicionariam graus de
liberdade à política econômica. Com relação a esses e outros temas pertinentes,
convido o leitor a recorrer a vários artigos publicados pelo professor Samuel
Pessoa na Folha de S. Paulo dominical. Como ele propõe, desfeita a lista
(de 10 itens) da “matriz macroeconômica” do governo atual, poderíamos voltar a
crescer a taxas de 3% ao ano. Nada a ver, portanto, com “ajustes ortodoxos” que,
segundo o professor Pochman (e outros respeitáveis economistas), tiveram efeitos
tão deletérios (quanto discutíveis) para as economias europeias. Para os nossos
propósitos, talvez seja mais esclarecedor mencionar uma linha de pesquisa que
associa ciclos políticos (mais precisamente, political booms) a crises
financeiras (cf. H.Herrera, G. Ordoñez, C. Trebech, CESifo Working Paper 4935,
ago 2014), fenômenos frequentes em economias emergentes. A pergunta central do texto
merece reprodução: ”Why do policy makers not take more steps to reduce excessive
leverage and control credit growth during a (political) boom?”. No nosso caso, o
risco de crise financeira encontra-se aprisionado nos bancos públicos. Mas a
inflação alcançou o maior índice mensal desde 2002 em dezembro de 2013.
BMM - Qual tem
sido a influência da política fiscal no desempenho da
economia?
Venho falando da
política fiscal, de modo implícito, mas ela está presente em tudo que
discutimos. Por exemplo, na resposta à pergunta anterior eu mencionei uma
estatística que é de agrado de economistas mais alinhados com as políticas do
atual governo (e a mim também, afinal, porque é positiva): o patamar de 43% para
a Dívida Líquida - DL. Grosso modo, a DL resulta do total da Dívida Bruta
– DB, descontados os créditos do governo. Acontece que o agregado que reflete a
política de gastos e investimentos governamentais é a DB, que será financiada
pelos impostos, pela rolagem de títulos e pela emissão de novos títulos, dentre
outros mecanismos. Ou seja, é sobre a DB que incidem os juros. Vou ilustrar.
Segundo os Boletins do Banco Central, de 2009 a 2013 o País pagou cerca de R$
1,06 trilhão com juros, R$ 249 bilhōes em 2013. O percentual dos juros com
relação ao PIB chega a mais de 5%, cifra que preocupa os especialistas, uma vez
que à luz de comparaçōes internacionais reflete tomada de recursos onerosa. Mais
preocupante, ainda, é a operação de repasses de recursos ao BNDES, que montaram
a cerca de R$ 500 bilhōes. Esses recursos foram obtidos a juros altos, a Selic,
e com prazos comprimidos, e foram (parcialmente) emprestados a juros subsidiados
em operaçōes de longo prazo. A DL leva em conta o pagamento dos empréstimos, que
serão recebidos ao longo dos anos. À luz desses comentários (e de uma pergunta
que eu deliberadamente omiti), o mínimo que se pode dizer é que o debate em
torno da independência do Banco Central deveria ser protelado. Política fiscal
com pouca nitidez aprisiona as políticas do Banco Central. Que sinal estarão
recebendo os agentes econômicos quando observam uma política fiscal
expansionista ser acompanhada por um aumento de juros?
BMM - O governo
também afirma que um combate mais efetivo à inflação geraria desemprego, dando a
entender que deixou a inflação fugir da meta para evitar efeitos sociais
indesejáveis. Isso procede? Como o Sr. analisa a trajetória dos gastos públicos
no Brasil?
Em novembro de
2013, o IBGE informava que a taxa de desemprego no país fora causada pela
migração de indivíduos para a inatividade, vale dizer, para situação em que o
indivíduo não estuda, não trabalha e tampouco procura emprego. Estima-se que o
desemprego entre jovens de 18 a 24 anos seja de 23%, e entre adultos de 25 a 29
anos alcance 29%. E esses números não pressionam as estatísticas oficiais. Ainda
assim, o desemprego vem aumentando persistentemente. E a indulgência com a
inflação não é sincera, tal como você mencionou, e eu também. O artigo que
mencionei na resposta à pergunta anterior, declara estar a mesma
“obedientemente” dentro da amplitude da meta, a ponto da Petrobras conviver com
preços administrados! Mas o objetivo maior daquele artigo foi o de divulgar
indicadores de ganhos sociais alcançados nas duas últimas décadas, eu diria. E
que resultam da extraordinária expansão do setor serviços (o IBGE cobre 650 mil
empresas, nas atividades de alojamento e alimentação, transporte e atividades
auxiliaries, correios e telecomunicaçōes, atividades imobiliárias, de
informática, serviços prestados a empresas e outras). Mas, isso não implica
deixar de crescer, o que é possível, respeitando a lógica de decisão dos agentes
que se pretendem sejam incentivados (mais do que abrigando setores específicos
com renúncias de receita de impostos de resultados no mínimo duvidosos) e
aprimorando a qualidade dos investimentos públicos, que são direta e
indiretamente indispensáveis a qualquer proposta de desenvolvimento econômico.
Adicionando alguns temas, a serem melhor avaliados e que configuram (padrōes de
comparação) e custos de oportunidade dos gastos públicos: o conteúdo de
inovação tecnológica dos investimentos realizados com o financiamento do BNDES e
da FINEP; a opção rodoviária no contexto da mobilidade urbana; as intervençōes
no setor de energia, e o recurso emergencial à energia termoelétrica; a produção
de etanol; a energia eólica; a infraestrutura de saneamento; a educação
pré-escolar que sempre supus estritamente complementar aos objetivos do programa
bolsa-família, que, por sua vez, nasceu como bolsa-escola. Temas que, assim eu
espero, voltem ao debate público com menos partidarismos e mais bem informados.
Deixo-os, temporariamente, com o professor Samuel Pessoa, (que nos propôs há
pouco voltar a crescer a 3% a.a) para quem “… (O) contrato social da
redemocratização produz constrangimentos ao nosso crescimento, pois resulta em
baixa taxa de poupança e investimento”. O que não implica deixar de
crescer!
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