terça-feira, 29 de dezembro de 2020

Estamentos

 

Manobra espúria


(Obs; este artigo foi publicado concomitantemente com o Correio da Manhã)

            Tudo o que é do Estado é aproveitado pelos detentores do Poder. O conceito de patrimonialismo, expresso na desconcertante sentença, foi desenvolvido pelo jurista e sociólogo alemão Max Weber no século XIX. O objeto do estudo, então, eram as nações absolutistas que já haviam vivido o seu apogeu e davam lugar, na Europa, por meio de reformas ou rupturas violentas, às monarquias constitucionais e às democracias liberais.

            Em “Os donos do Poder”, o brasileiro Raymundo Faro, outro jurista com pendor para a sociologia, destrincha as razões históricas do clientelismo no Brasil e, a partir daí, apresenta o diagnóstico do atraso do país. Desde os tempos de colônia, somos reféns de práticas patrimonialistas que obstam o nosso desenvolvimento social.

            A referência a Weber e a Faoro é oportuna porque nos deparamos por esses dias com clara tentativa de captura da esfera pública pelo interesse privado. Foi o que aconteceu quando o Supremo Tribunal Federal, o Superior Tribunal de Justiça e o Tribunal Superior do Trabalho fizeram gestões para obter de forma privilegiada – e indevida – para seus ministros, servidores e familiares desses a vacina contra a Covid-19.

            A manobra dos “detentores do Poder” foi rechaçada pela Fiocruz, que avisou: todas as doses do imunizante serão encaminhadas ao Ministério da Saúde, para distribuição à população de acordo com critérios médicos. É triste ver órgãos do Judiciário, a quem cabe a defesa do Estado de Direito, agir contrariamente à sociedade.

No vácuo de liderança deixado pelo Executivo, declaradamente contrário à prioridade da imunização (enquanto 40 países já estão em processo de vacinação), os “estamentos” resolveram salvar a própria pele. A imagem do Titanic indo a pique após colidir com o iceberg, com escaleres apenas para a primeira classe, serve como metáfora. 

Não fosse uma notinha em coluna de jornal o episódio sequer teria sido notado pela opinião pública – comprovando que, em países livres e democráticos, a imprensa é mesmo o “olhar onipresente do povo” sobre os seus governantes. Ainda assim, as manifestações de indignação foram rarefeitas, o que revela o quão habituados estamos às práticas espúrias que distorceram a razão de ser do Estado.

A Constituição de 1988, fruto da redemocratização, fracassou na sua maior tarefa, a de modernização do Estado brasileiro. Na contramão, engendrou uma máquina administrativa dispendiosa que tem exaurido o setor produtivo. De quebra, potencializou as desigualdades que prometia combater, uma vez que consolidou uma casta de servidores com privilégios inatingíveis para a grande maioria dos trabalhadores. É preciso reverter essa lógica perversa. O Estado existe para servir à sociedade, e não para servir-se dela.

A reforma administrativa reprogramada para o ano que se inicia pode não ser a condição suficiente (até porque o patrimonialismo é também cultural), mas é uma condição necessária para que o Brasil retome o rumo da modernização e do desenvolvimento econômico e social. Que não percamos mais esta oportunidade.

Por Nilson Mello

                       

terça-feira, 22 de dezembro de 2020

Privatizações e portos

                                                          A mesma bússola



(Obs.: este artigo foi publicado simultaneamente com a revista Portos & Navios)

Na sexta-feira 18 de dezembro, o governo federal conseguiu licitar, no último leilão do ano, três terminais, sendo um no Porto de Paranaguá, no Paraná, um em Aratu, na Bahia, e o terceiro na capital alagoana. Nessas três licitações, os investimentos privados estimados são de R$ 400 milhões. Para uma semana - e ainda por cima, praticamente, a última semana útil do ano - foi um desempenho auspicioso, que reforça as expectativas em relação a 2021, porém, não suficiente para que se possa fazer um balanço plenamente positivo sobre as privatizações portuárias em 2020.

         Na dobrada do semestre, o Ministério da Infraestrutura previa que conseguiria licitar cerca 18 terminais em Portos Públicos até o término do ano da pandemia. No balanço final, foram cinco áreas privatizadas, as três mencionadas acima e mais duas no Porto de Santos. Não que isso seja suficiente para dar como negativo o ano para o setor portuário. Longe disso. Com tantas dúvidas em relação aos desdobramentos econômicos da Covid-19, pode-se dizer que o ano não foi perdido.

         Em primeiro lugar, conforme amplamente noticiado, os portos brasileiros conseguiram demonstrar dinamismo em meio à crise, reflexo que são, é claro, do vigor do agronegócio com o seu viés exportador. Assim, mesmo que tenha havido perdas em movimentação aqui e acolá, os terminais portuários enfrentaram com resiliência a maré desfavorável, se consolidando como um baluarte para a retomada do crescimento econômico que - todos nós esperamos - em breve virá.

         Em segundo lugar, e talvez mais significativo, porque um importante passo no que diz respeito a um novo modelo de privatização do setor foi dado também no curso de dezembro. Trata-se do projeto de desestatização da Companhia Docas do Espírito Santo (Codesa) e, consequentemente, dos portos de Vitória e Barra do Riacho. Neste caso, não se trata de arrendar à iniciativa privada um ou mais terminais na área do chamado “Porto organizado” (público), mas de uma privatização plena de toda estrutura e da operação em si.

         Em 17 de dezembro, a Diretoria Colegiada da Agência Nacional de Transportes Aquaviários (Antaq) aprovou a abertura de consultoria pública para os estudos visando ao estabelecimento do novo modelo que, na prática, vai além do anterior, de Land Lord Port. Largamente adotado no mundo, o modelo de Land Lord Port prevê que a infratestrutura e o controle permanecem nas mãos do Estado enquanto a iniciativa privada se encarrega da superestrutura e da operação.

         No Brasil, desde a década de 1990, com a primeira Lei dos Portos (Lei nº 8.630/93), prevalece o Land Lord Port, mas de forma mista com a o modelo eminentemente privado, ou seja, terminais implantados e operados pela iniciativa privada (os chamados TUPs), fora das áreas públicas. Assim, a venda da Codesa, para a qual o governo espera arrecadar R$ 1 bilhão, será, a rigor, a primeira desestatização plena de portos públicos no Brasil – um projeto piloto, que norteará outras investidas neste sentido. É um projeto arrojado, que merece toda a atenção.

         Em todo caso, é forçoso reconhecer que as privatizações este ano não deslancharam, e não apenas no setor portuário, mas de forma geral. Eram 64 projetos e 47 ficaram para 2021 e 2022, talvez até um adiamento acertado, visando a obter maior interesse e investimentos mais robustos. Entre outros, ficaram para o ano que vem a licitação da banda larga de Internet 5G, assim como (num inventário geral, sem grandes detalhamentos) a de 22 aeroportos, seis rodovias e de projetos ferroviários importantes, além da venda de 17 empresas estatais.

         Retomando o foco nos portos, avanços importantes também foram obtidos neste último mês do ano, com a participação de outras esferas de Poder e de iniciativas conjuntas do Poder Público e do setor privado. No que toca o Judiciário, foram relevantes as decisões do Tribunal de Justiça de São Paulo, em duas causas distintas, reconhecendo que não há incidência de ICMS na prestação de serviços multimodais prestados por armadores brasileiros entre portos nacionais.

         Esse tipo de decisão tem mais peso na estabilização de regras e até mesmo no estímulo à navegação de cabotagem do que qualquer novo projeto (ou puxadinho jurídico) que o governo federal possa vir a urdir. Estabilidade de regras e a segurança jurídica que dela advém são o melhor atrativo para novos investimentos nos setores portuário e de transporte marítimo.

Por parte da iniciativa privada neste fim de ano, há de se louvar o novo portêiner instalado pelo terminal MultiRio no Porto do Rio e a nova linha de cabotagem estabelecida pela Norsul entre o Sudeste e o Porto de Pecém, no Ceará, conforme noticiado na semana passada. Vale dizer, no caso da linha da Norsul, trata-se da expansão da navegação de cabotagem, independentemente da aprovação do contestado BR do Mar (Projeto de Lei número 4.199/2020), sobre o transporte marítimo entre portos brasileiros, aprovado na Câmara e agora em curso no Senado. Pontos para a Norsul.

Ficamos por aqui? Não. Importante iniciativa dos terminais ICTSI Rio, Triunfo Log e MultiRio, em conjunto com a Companhia Docas do Rio de Janeiro e a Marinha do Brasil, permitiram, em dezembro, a consolidação das operações noturnas de acesso de grandes embarcações ao Porto do Rio. Desde abril, as operações noturnas já vinham sendo realizadas com embarcações menores, mas a partir deste mês, com a entrada no porto do Ever Lifting, com 335 metros, de bandeira holandesa, a operação ganhou um novo patamar de excelência.

Prova de que quando setores público e privado usam a mesma bússola e o mesmo sextante (ou devemos dizer GPS?), a saber, idênticos critérios e propósitos, a navegação é mais segura, com ganhos para todos.

Por Nilson Mello.

segunda-feira, 14 de dezembro de 2020

Bolsonaro pelo Datafolha

Vida longa ou impeachment?

 


Ao longo deste ano fui me tornando um crítico deste governo. O fato de considerar que houve administrações piores, em especial no aspecto moral, porque nada é mais nefasto do que o assalto à máquina pública, não é suficiente para relevar os muitos erros da atual. A rigor, já haveria razões formais (legais) suficientes para um impeachment, a começar pelo uso da máquina pública em função de interesses privados, em diferentes episódios (não cansarei o leitor fazendo o inventário porque os fatos já foram mais do que noticiados).

Não é por outra razão que umas quatro dezenas de pedidos de impedimento do presidente da República dormitam nos escaninhos do Congresso, aguardando as condições políticas favoráveis como gatilho do processo de afastamento.

Essas condições políticas, contudo, parecem distantes neste momento. Não se trata aqui de advogar a favor do impeachment de Bolsonaro, mas apenas entender os cenários que se apresentam. Pesquisa da Datafolha divulgada nesta segunda-feira dia 14/12 dá 66% de aprovação para Bolsonaro (37% de bom e ótimo, mais 29% de regular), o mesmo índice de agosto, e o maior desde o início de seu mandato.

O patamar não é excepcional. Ao contrário, está abaixo de seus antecessores em seus primeiros mandatos: Dilma (logo quem!) chegou a ter 92% de aprovação (62% de ótimo e bom, mais 30% de regular); Lula, 85%; FHC, idem.

Temer teve baixa aprovação (29%, com apenas 6% de ótimo/bom), mas assumiu a Presidência com a defenestração da titular, o que por si só gera desgaste, além de ter herdado uma das maiores recessões econômicas que o país já enfrentara, o que contamina o “humor” da opinião pública. Além disso, sua imagem era indissociável dos governos do PT, sob forte rejeição.

Contrariando a maioria, arrisco dizer que, para o contexto, Temer foi um bom presidente, garantindo governabilidade ao país num momento muito difícil e adotando medidas econômicas importantes (algumas impopulares) que permitiriam uma administração mais equilibrada ao sucessor.

Aliás, um argumento que não deve ser usado para contestar o mecanismo de impeachment, previsto na Constituição e regulamentado em Lei, é justamente o desempenho dos vices que assumiram em lugar dos afastados. Ao menos no período pós-1988 (nova Constituição), o saldo é positivo.

Se Temer garantiu governabilidade e foi responsável na gestão econômica, Itamar Franco foi o “pai” do Plano Real, certamente o maior avanço que o país alcançou depois da redemocratização. O impeachment não é golpe, mas, sim, um mecanismo de depuração da própria democracia. A sociedade brasileira entende isso de forma bem clara, tanto que confirmou nas urnas (em 2016, 2018 e 2020) aquilo que o último processo de impedimento determinara: o fim dos governos do PT.

Que não se queira com isso pretender que o instrumento deva ser usado de forma recorrentemente. É traumático, tem um alto custo político e econômico, e por essa razão deve ser sempre a última instância, o derradeiro “remédio” a ser aplicado.

Onde estávamos?

Ah, sim, não há condições políticas para um impeachment do atual governo, em que pese os seus muitos erros – e podemos citar o desleixo na questão ambiental, a conturbada relação com outras nações, em especial as potências globais, as trapalhadas no enfrentamento da pandemia de Covid-19, a falta de compostura diante de temas relevantes e, o mais grave, a confusão entre o interesse público e o interesse privado subalterno.

Os problemas são evidentes. Apesar de tudo, após um período de muita vulnerabilidade no início do ano, o Planalto se entendeu com o Centrão e se articula para ter como aliados os novos presidentes da Câmara e do Senado. A blindagem no Legislativo vai-se consolidando.

Por outro lado, uma trégua com o Supremo Tribunal Federal foi estabelecida. O conflito com o órgão de cúpula do Judiciário era, até o primeiro semestre, uma fonte permanente de tensões e desgaste institucional, em prejuízo dos interesses do país.

Tudo considerado, podemos prever que este governo termine o mandato. Nessa hipótese (menos traumática, como dito acima), espera-se apenas que o determinismo ideológico – um traço que tanto criticávamos nas gestões do PT – dê cada vez mais lugar à racionalidade e aos critérios técnicos no embasamento das decisões. Na questão da pandemia, isso definitivamente não ocorreu.

Por fim, espera-se também – levando em conta o fisiologismo e os interesses nem sempre elevados que pautam o chamado Centrão – que o preço a ser cobrado pela blindagem no Congresso não seja de tal ordem que inviabilize importantes diretrizes com as quais este governo se comprometeu antes mesmo da posse, a começar pelo combate à corrupção. Do contrário, estaremos diante do maior estelionato eleitoral da história. A conferir.  

Por Nilson Mello

sábado, 12 de dezembro de 2020

Coronavírus

                                                       A vacina e os militares

            Todo o esforço no sentido de acelerar a distribuição no Brasil de uma das vacinas contra a Covid-19 é bem-vindo, desde que normas de saúde não sejam atropeladas, e a palavra final fique a cargo de quem tem competência para decidir a questão – a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). Para que essa condição seja cumprida, e tendo em vista a responsabilidade envolvida, é imperativo que a agência comporte-se também dentro do estrito critério técnico, livre de qualquer interferência política.

A imagem de isenção e equidistância depende em grande medida da transparência e, por consequência, de uma comunicação eficiente, algo que definitivamente não tem acontecido. Quando o diretor-presidente da agência, Antônio Barra Torres, passa informações de forma seletiva a um apresentador de programa de TV, mas afirma que não vai dar entrevista, “para não polemizar”, como ocorreu nesta quinta-feira, tudo o que está fazendo é contribuir para as polêmicas e as suspeitas de politização da questão.

Eis aí um caso típico em que o uso dos meios de comunicação por organismos governamentais deve ser reiterado e o mais transparente e plural possível, visando a esclarecer à sociedade. É função de seus dirigentes assumirem o papel de porta-vozes, sempre que solicitados, falando para todos, e não de forma reservada. Não tem sido a regra. Até se pode compreender a reticência do diretor-presidente da Anvisa em explicar pessoalmente e de forma clara à população em que pé estão os processos de homologação das diferentes vacinas em desenvolvimento.

Afinal, estamos no terceiro ministro da Saúde em ano de grave pandemia justamente porque os antecessores do atual – que já disse que está lá para cumprir ordens – adotaram posições técnicas diferentes daquela determinada pelo presidente da República. Como se diz na caserna (já que Barra Torres é militar), explica-se, mas não se justifica. Com 180 mil mortes, maior média móvel do mundo em dois meses, e 6,7 milhões de contaminados pelo novo coronavírus, o interesse público deve falar mais alto.

Seria justamente dos militares – tendo em vista a sua disciplina, a formação rigorosa e o inequívoco compromisso com a nação – que se esperaria excelência na organização e planejamento no momento de crise. Nem é preciso lembrar que o dever é com o Estado, não com um governo. Daí surge a incontornável pergunta: onde está o plano federal de vacinação?

O ministro Eduardo Pazuello apresentou há cerca de um mês um “plano preliminar” que, de acordo com nota técnica do Observatório Covid-19 BR, entidade que congrega 80 cientistas das mais respeitadas instituições de pesquisa do país, é um documento rudimentar, na verdade, “um esboço com tantas lacunas que dificilmente poderá ser seguido”. Para uma das integrantes do grupo, falta um “documento consubstanciado, bem detalhado e construído com racionalidade”.

Está mais do que na hora de os militares espalhados pelos gabinetes de Brasília mostrar a que de fato vieram. Ou imprimem competência ao governo no enfrentamento da Covid-19, ou é melhor que peçam para sair. Se não conseguem influenciar positivamente o Planalto, que não se deixem contaminar pelas recorrentes trapalhadas. Governos passam, Forças Armadas ficam.

(Nota de eslcarecimento: este artigo foi finalizado antes da divulgação da entrega, na sexta-feira, pelo governo ao Supremo, do que seria o plano federal de vacinação definitivo. O documento, de 94 páginas, contudo, gera controvérsias, porque não indica possível data de início da imunização e é contestado por três dezenas de especialistas,  consultores do governo que figuram como signatários do texto, mas que não deram aval para a sua versão final)

Por Nilson Mello

sexta-feira, 4 de dezembro de 2020

Logística

 As ferrovias brasileiras precisam se "falar"


(Obs: este artigo foi publicado concomitantemente com a agência Agência iNFRA)

Um dos maiores desafios logísticos do país é a diferença de bitolas (distância entre os trilhos) de suas linhas férreas, um conjunto de reduzida interconexão que, se fôssemos ser bastante rigorosos, considerando essa característica, não poderia ser chamado de malha. São, na verdade, sistemas que operam quase sempre de forma isolada, atendendo a uma demanda específica de transporte, resultado de um interesse (histórico) regional ou corporativo, e que precisariam ser interligados visando a dar maior eficiência ao transporte de carga no interior do país e, por extensão, à cadeia produtiva nacional.

O tema faz parte de um dos painéis do seminário virtual (webinar) Logística e Desenvolvimento no Estado do Rio de Janeiro – LogD RJ, a ser realizado no dia 8 de dezembro (Link https://youtu.be/m-RWBzfj-nA) reunindo alguns dos maiores especialistas brasileiros em transportes e logística e contando com a participação de autoridades e parlamentares com atuação no setor.

Especialista em transporte ferroviário, Paulo Roberto Filomeno lista em diferentes artigos técnicos ao menos cinco bitolas férreas no Brasil. Enquanto os Estados Unidos e os principais países europeus consolidaram no século XIX as suas malhas de forma uniformizada com a bitola de 4,7 pés (1,435 metros), o que corresponderia, segundo o folclore do setor, ao eixo da biga romana, o Brasil foi no sentido contrário ao da padronização, implantando, de forma quase aleatória, desde a bitola de 0,6 metro (Cantareira) e de 0,76 metros (Viação Férrea São João Del Rey - Tiradentes/MG), até a bitola de 1,6 metro, predominante, sobretudo, na região Sudeste.

Dessas diferentes bitolas, as significativas para o sistema ferroviário brasileiro, em quilômetros e principais centros atendidos, são as de 1,6 metro e a de 1,0 metro (a “bitola métrica”), sendo nelas, portanto, que devem ser concentrados os esforços de conexão. É preciso dizer também que, se falta ao Brasil uma “malha”, na melhor acepção do termo, faltam também ferrovias em número compatível com as dimensões de um país continental. De acordo com a ANTT (Agência Nacional de Transportes Terrestres), o país conta hoje com 27 mil Km de trilhos, praticamente a mesma extensão de vias férreas existente no século XIX, embora essas linhas não sejam mais as mesmas.

Para se ter ideia do déficit ferroviário nacional, basta dizer que temos cerca de 220 mil km de rodovias pavimentadas (e 1,72 milhão de Km contando as não pavimentadas). A erradicação desenfreada e inconsequente de ferrovias a partir dos anos 1950 até bem recentemente talvez seja um dos maiores crimes cometidos por diferentes governos na trajetória republicana – embora não de forma combinada e por razões diversas – contra o patrimônio nacional. O estado do Rio de Janeiro é hoje talvez o mais triste exemplo dessa erradicação ferroviária.      Até quase a metade do século passado, os trilhos que saíam da capital fluminense alcançavam toda a Região Serrana (Petrópolis e adjacências), o Vale do Café (Miguel Pereira, Conservatória, Rio das Flores etc.) e a Região dos Lagos, incluindo Cabo Frio. Essas antigas vias férreas ou não existem mais e suas antigas estações foram transfiguradas em escolas, “mini shoppings” e “centros culturais”,  ou ainda existem, mas estão inoperantes.

Dados de 2018 da própria ANTT indicam que 30,6% (8,6 mil km) das linhas férreas do país estão abandonados, sendo que 6,5 mil Km não têm qualquer condição de operação. Para uma melhor compreensão dos desafios ferroviários que devemos enfrentar, cabe lembrar que, para cada 1 mil Km de extensão territorial, temos no Brasil 3,6 km de ferrovias, enquanto que essa proporção nos Estados Unidos é de 32 Km para 1 mil Km de território.

Importantes investimentos em ferrovias estão em curso (ou com projetos prestes a sair do papel) no país neste momento, entre eles a complementação do trecho final da Ferrovia Norte-Sul, entre Goiás e São Paulo, a Fiol (Ferrovia de Integração Oeste-Leste), da Bahia ao Tocantins, a Fico (Ferrovia de Integração do Centro-Oeste), conectando Rondônia à Norte-Sul, em Goiás (parte integrante da Ferrovia Transoceânica, que ligará portos brasileiros aos do Pacífico, no Peru), e o próprio Ferroanel, que circundará a cidade de São Paulo, agilizando o tráfego ferroviário de carga no maior centro produtor do país.

Esses importantes projetos, de grande vulto, não devem obscurecer o relevo de projetos complementares, alinhados com o objetivo de integrar a “malha”, estabelecendo a conexão de ferrovias já existentes de bitolas distintas, uma vez que tais iniciativas pontuais, em geral de custo menor, podem ter um gigantesco impacto na melhoria da eficiência logística e na redução dos custos para a cadeia produtiva. Um exemplo de projeto de integração de baixo custo seria a interconexão da malha do Sul de Minas (de bitola estreita), operada pela Ferrovia Centro-Atlântica, com a malha predominante no estado do Rio de Janeiro (de bitola larga, de 1,6 metro), operada pela MRS Logística.

O chamado projeto do “Terceiro Trilho” – há muito discutido, mas inexplicavelmente negligenciado por vários governos nas diferentes esferas – permitiria que a produção do sul de Minas, importante polo do agronegócio, grande produtor de café, milho, cana-de-açúcar e algodão, seguisse um itinerário mais curto para o mercado externo ou mesmo para outras regiões do país, via Porto do Rio. Isso seria possível com a implantação da bitola mista num trecho de ferrovia de menos de 100 Km entre Barra Mansa, no Vale do Paraíba, até a capital fluminense. Há cerca de 15 anos esse projeto chegou a ser estimado em US$ 10 milhões pela Faciarj (Federação das Associações Comerciais, Industriais e Agropastoris do Estado do Rio de Janeiro), cifra irrisória face aos grandiosos projetos ferroviários mencionados acima.

As vantagens dessa interconexão são indiscutíveis. Hoje, a produção do sul mineiro e de parte do Centro-Oeste segue um percurso mais longo e oneroso para o mercado externo, seja pela rodovia Fernão Dias até São Paulo, e de lá ao Porto de Santos, seja por ferrovia, num percurso muito maior, até o Porto de Vitória. Com a interligação das duas malhas e o escoamento pelo Porto do Rio, haveria, portanto, redução dos custos com transporte. Vale dizer que o transporte ferroviário é mais seguro – o que significaria também menos gastos com apólices e outros serviços – e menos poluente, ampliando os benefícios do projeto para toda a sociedade. Ao projeto original do “Terceiro Trilho” de bitola estreita no trecho mencionado, surgiram alternativas técnicas que poderiam ser igualmente avaliadas, como a de uma estação de transbordo ferroviário em Barra Mansa ou a implantação de quatro trilhos, prevenindo o maior desgaste que a via férrea está sujeita no longo prazo  quando adotado o sistema de três trilhos.

Muitas lendas cercam o setor ferroviário, como a do padrão “biga romana” referido de início. Aliás, essa bitola, utilizada nos Estados Unidos e na Europa, é a empregada na Argentina e no Uruguai, o que dificulta a integração comercial regional. Consta que adotamos bitolas diferenciadas no Sul do país paradificultar as operações militares dos vizinhos, em caso de guerra. Será? Bem, o Rio de Janeiro nunca esteve em guerra com Minas e eis que suas malhas ferroviárias não se “falam”. Para o bem da cadeia produtiva e do comércio exterior, as ferrovias brasileiras precisam começar a se “falar”. O projeto do“Terceiro Trilho”, entre Barra Mansa e o Porto do Rio, já seria um bom início.

Por Nilson Mello