terça-feira, 29 de dezembro de 2020

Estamentos

 

Manobra espúria


(Obs; este artigo foi publicado concomitantemente com o Correio da Manhã)

            Tudo o que é do Estado é aproveitado pelos detentores do Poder. O conceito de patrimonialismo, expresso na desconcertante sentença, foi desenvolvido pelo jurista e sociólogo alemão Max Weber no século XIX. O objeto do estudo, então, eram as nações absolutistas que já haviam vivido o seu apogeu e davam lugar, na Europa, por meio de reformas ou rupturas violentas, às monarquias constitucionais e às democracias liberais.

            Em “Os donos do Poder”, o brasileiro Raymundo Faro, outro jurista com pendor para a sociologia, destrincha as razões históricas do clientelismo no Brasil e, a partir daí, apresenta o diagnóstico do atraso do país. Desde os tempos de colônia, somos reféns de práticas patrimonialistas que obstam o nosso desenvolvimento social.

            A referência a Weber e a Faoro é oportuna porque nos deparamos por esses dias com clara tentativa de captura da esfera pública pelo interesse privado. Foi o que aconteceu quando o Supremo Tribunal Federal, o Superior Tribunal de Justiça e o Tribunal Superior do Trabalho fizeram gestões para obter de forma privilegiada – e indevida – para seus ministros, servidores e familiares desses a vacina contra a Covid-19.

            A manobra dos “detentores do Poder” foi rechaçada pela Fiocruz, que avisou: todas as doses do imunizante serão encaminhadas ao Ministério da Saúde, para distribuição à população de acordo com critérios médicos. É triste ver órgãos do Judiciário, a quem cabe a defesa do Estado de Direito, agir contrariamente à sociedade.

No vácuo de liderança deixado pelo Executivo, declaradamente contrário à prioridade da imunização (enquanto 40 países já estão em processo de vacinação), os “estamentos” resolveram salvar a própria pele. A imagem do Titanic indo a pique após colidir com o iceberg, com escaleres apenas para a primeira classe, serve como metáfora. 

Não fosse uma notinha em coluna de jornal o episódio sequer teria sido notado pela opinião pública – comprovando que, em países livres e democráticos, a imprensa é mesmo o “olhar onipresente do povo” sobre os seus governantes. Ainda assim, as manifestações de indignação foram rarefeitas, o que revela o quão habituados estamos às práticas espúrias que distorceram a razão de ser do Estado.

A Constituição de 1988, fruto da redemocratização, fracassou na sua maior tarefa, a de modernização do Estado brasileiro. Na contramão, engendrou uma máquina administrativa dispendiosa que tem exaurido o setor produtivo. De quebra, potencializou as desigualdades que prometia combater, uma vez que consolidou uma casta de servidores com privilégios inatingíveis para a grande maioria dos trabalhadores. É preciso reverter essa lógica perversa. O Estado existe para servir à sociedade, e não para servir-se dela.

A reforma administrativa reprogramada para o ano que se inicia pode não ser a condição suficiente (até porque o patrimonialismo é também cultural), mas é uma condição necessária para que o Brasil retome o rumo da modernização e do desenvolvimento econômico e social. Que não percamos mais esta oportunidade.

Por Nilson Mello

                       

Nenhum comentário:

Postar um comentário