sábado, 25 de novembro de 2023

A defesa da Ágora


    A má vontade de autoridades e mesmo de setores da sociedade com as redes sociais não é condizente com o fortalecimento da democracia. Em recente sessão do TSE, o ministro Alexandre de Moraes, ao negar a um advogado a sustentação oral em proveito de seu representado, ironizou, em tom desdenhoso, as críticas que poderiam lhe ser feitas numa plataforma digital por tomar tal decisão.

A OAB e outras entidades representativas da advocacia já se manifestaram em relação ao que pode ter sido um desrespeito às prerrogativas do advogado ou mesmo uma afronta ao princípio da ampla defesa.

Tratemos aqui então de outro aspecto relevante do episódio. Menosprezar críticas feitas pelas redes sociais no mundo de hoje equivale a desqualificar o próprio debate transparente que uma sociedade aberta exige. Seria como se um arconte tripudiasse da Ágora, o espaço democrático por excelência na Grécia clássica.

Algum incauto há de dizer: “mas nas redes sociais proliferam fake news e por isso devem ser combatidas”.

Nas praças públicas de sociedades democráticas sempre houve também quem dissesse inverdades ou cometesse abusos. Nem por isso, em democracias, os espaços de livre exercício do pensamento foram banidos ou atacados. Para usar um ditado popular, “notícia e boato nasceram juntos”.

As redes sociais são o espaço público do mundo contemporâneo, e dessa forma devem ser vistas. Os próprios meios de comunicação tradicionais estão sujeitos a cometer abusos no direito de informar, que é um desdobramento da liberdade expressão (informar e ser informado). Nem por isso, em democracias, permite-se combater a liberdade de imprensa, muito menos se tolera que um magistrado – mais que isso, um integrante do órgão de cúpula do Judiciário - zombe dos meios de comunicação, por insatisfeito com críticas que possam afetá-lo. Em passado recente, autoridade pública que seguiu este caminho pagou seu preço político.

Vale dizer que quem abusa do direito de opinião e de expressão (cometendo calúnia, injúria e difamação, entre outros) já está sujeito à responsabilização tanto civil quanto criminal. Não é preciso demonizar ou censurar (como muitos querem, empregando o eufemismo “regulação das mídias”) os meios de comunicação ou as redes sociais.

Em democracia, este tipo de atitude merece repúdio. Quem não gosta de crítica não deve exercer cargo público. Marx dizia que “a imprensa é o olhar onipresente do povo sobre seus governantes”. Em que pese a liberdade de expressão jamais ter sido levada muito a sério em regimes de orientação marxista, a frase é lapidar e oportuna. Entenda-se aqui o vocábulo “governante” no sentido amplo, de autoridade pública.

Goste-se ou não, as redes sociais são as substitutas das mídias tradicionais e exercem papel equivalente à Ágora da Antiguidade – a praça pública da livre manifestação das ideias, onde cada qual responde por eventuais abusos que vier a cometer, sem necessidade de controle ex ante. Desqualificá-las é inócuo, além de antidemocrático. (por Nilson Mello)

 

 

  

terça-feira, 24 de maio de 2022

Parecer sobre o BR do Mar

 

 

INSTITUTO DOS ADVOGADOS BRASILEIROS (IAB)

Comissão de Direito da Infraestrutura

 

 

 

Parecer sobre o PL nº 4.199/2020 e a Lei nº 14.301 de 2022 (BR do Mar)

 

 

Obs: Parecer atualizado e com adendo, em razão

da conversão do PL na Lei nº 14.301 de 2022.  

 

(Indicação nº 044 de 2021)

 

 

Autor do parecer: Nilson Vieira Ferreira de Mello Jr.

 

 

 

Nota de esclarecimento

            O parecer original sobre o PL nº 4.199/2020 foi apresentado e aprovado por unanimidade na Comissão de Direito da Infraestrutura do IAB em 31 de agosto de 2021. Porém, quando de seu agendamento apara apresentação em sessão plenária, em 04 de maio do presente ano, o referido projeto de lei já havia sido aprovado pelo Congresso e convertido na Lei nº 14.301/2022. Por decorrência, a sustentação do parecer em plenário incorporou, como adendo, comentários sobre o texto final da lei sancionada e promulgada em 07 de janeiro passado. Na sessão plenária, o parecer também recebeu aprovação unânime, e seu adendo passou a ser parte integrante do parecer final, conforme decisão da Mesa Diretora. O presente texto foi atualizado e, portanto, acrescenta ao parecer original os comentários atinentes à lei promulgada, indicados como “adendo” em sua parte final.

 

 

 

 

 

 

 

Resumo do Projeto de Lei: O PL 4.199/2020, também conhecido como “BR do Mar”, numa alusão às rodovias federais, institui o Programa de Estímulo ao Transporte por Cabotagem e, para tanto, altera as Leis nºs 5.474, de 18 de julho de 1968, 9.432, de 8 de janeiro de 1997, 10.233, de 5 de junho de 2001, 10.893, de 13 de julho de 2004, e 11.033, de 21 de dezembro de 2004, além de revogar uma série de outras normas, entre as quais o Decreto do Poder Legislativo nº 123, de 11 de novembro de 1892 e o Decreto-Lei nº 2.784, de 20 de novembro de 1940.

 

Palavras-chave

            Cabotagem, BR do Mar, navegação, transporte marítimo, integração intermodal, infraestrutura logística, concorrência, abertura de mercado, marítimos.

 

Introdução

            O Projeto de Lei 4.199 de 2020 institui o Programa de Estímulo ao Transporte por Cabotagem (“BR do Mar”), com o objetivo de melhorar a qualidade e incentivar a concorrência na prestação do serviço de transporte entre os portos nacionais. Subsidiariamente, pretendo ampliar a frota na navegação de cabotagem, bem como estimular o desenvolvimento da indústria naval, e ainda, conforme justificativa do Executivo, a quem coube a iniciativa da matéria, “incentivar a formação de marítimos nacionais, estimular os investimentos decorrentes de operações de cabotagem em instalações portuárias e otimizar o emprego dos recursos oriundos da arrecadação do Adicional ao Frete para a Renovação da Marinha Mercante (AFRMM)”.

            Após ter tramitado ao longo de 2020, em regime de urgência (art. 46 da CR), na Câmara dos Deputados, sob a relatoria do Deputado Gurgel (PSL/RJ), o PL seguiu em dezembro passado para o Senado, onde ficou sob a relatoria do senador Nelsinho Trad (PSD/MS). Em maio de 2021, perdeu a urgência e, em junho, o plenário da Casa aprovou a realização de debates temáticos sobre o projeto, nas Comissões de Agricultura e Reforma Agrária, Constituição, Justiça e Cidadania, Serviços de Infraestrutura e Assuntos Econômicos.

O projeto estava previsto para ser deliberado na sessão de 31 de agosto de 2021 da Comissão de Assuntos Econômicos (CAE) do Senado, mas foi retirado de pauta, a pedido do relator, que solicitou mais tempo para conciliar as muitas emendas, bem como as visões ainda dissonantes dos Ministérios da Economia e da Infraestrutura acerca de algumas alterações. A nova data para apreciação e deliberação pela CAE é 14 de setembro. Cabe ressaltar que o PL 4.199 foi idealizado pela pasta da Infraestrutura, como forma de reduzir a dependência do Brasil em relação ao modal rodoviário.

            Considerado polêmico inclusive pelo seu relator no Senado, e tendo suscitado muitas controversas durante o seu trâmite, não merecendo a unanimidade nem de entidades empresarias representativas de classe do segmento de transporte marítimo, o referido projeto recebeu nada menos que 61 destaques e emendas aglutinadoras na Câmara, onde passou por seis Comissões (Constituição, Justiça e Cidadania; Desenvolvimento Econômico, Indústria, Comércio e Serviços; Finanças e Tributação; Minas e Energia; Trabalho, Administração e Serviço Público; Viação e Transportes), e outras 43 emendas no Senado.

Conceitos e precedentes

            De certa forma, o Projeto de Lei foi amenizado na Câmara, na medida em que o parecer final do relator (Deputado Gurgel) ampliou o prazo de adaptação às novas regras ao aumentar de três para quatro anos o tempo de transição para o afretamento de embarcações estrangeiras. Assim, conforme o texto do relator na Câmara, após um ano de vigência da nova lei, as empresas poderiam afretar dois navios; no segundo ano, três; e, no terceiro, quatro, e a partir daí, não haveria mais limites para o afretamento, “observadas condições de segurança definidas em regulamento”. Mas as mudanças em curso no Senado foram significativas.

O entendimento da questão requer o domínio de alguns conceitos básicos acerca do transporte marítimo e da navegação.  De antemão, é preciso lembrar que o transporte de cabotagem, ou seja, a navegação entre portos nacionais é realizada, em quase todo o mundo, e mesmo nos Estados Unidos (teoricamente, país onde há mais abertura de mercado a produtos e serviços estrangeiros, em consonância com a doutrina liberal), por empresas, navios e tripulações nacionais. O PL 4.199 promove, na verdade, uma abertura do setor sem precedentes no mundo, ao menos para países em que a navegação tem alguma relevância em função de sua extensão territorial e litorânea e/ou de seu porte econômico.

Outro aspecto relevante a se ter em mente no exame da matéria é que embarcações mercantes estrangeiras, ao redor do mundo (e são mais de 30 mil delas), devem usar a bandeira do país de origem. Isso porque é o pavilhão do país que vincula os navios e suas empresas a uma série de obrigações legais, desde comerciais, fiscais e tributárias até trabalhistas e ambientais. Se o vínculo é relevante no transporte marítimo de longo curso, passa a ser ainda mais significativo quando se abre o mercado doméstico de cabotagem às empresas estrangeiras. Regras específicas devem disciplinar essa abertura.

Num paralelo que embute uma hipótese improvável, mas é válido para se ter ideia do que foi colocado em jogo, imagine-se a abertura do transporte rodoviário brasileiro, sem restrições significativas, a transportadoras americanas e europeias. O impacto, não apenas em termos legais, mas principalmente em termos estratégicos e econômicos seria gigantesco, com óbvias implicações no que toca o princípio da soberania. Outro parâmetro de comparação é a aviação. A legislação pátria determina que piloto, copiloto, mecânico de voo e comissários de bordo são funções privativas de brasileiros natos ou naturalizados. No caso de rotas internacionais de empresas brasileiras, abre-se exceção e permite-se o emprego de 1/3 de estrangeiros entre os comissários embarcados.

Com o teor que foi aprovado na Câmara, o texto do PL 4.199 prevê que, em qualquer situação de afretamento, os contratos de trabalho dos tripulantes de embarcação estrangeira afretada seguirão as normas do país à qual pertence à bandeira usada pela embarcação (art. 12 do PL).  Da mesma forma, prevalecem as regras internacionais relativas ao transporte marítimo e à Organização Internacional do Trabalho (OIT), bem como direitos trabalhistas constitucionalmente garantidos, tais como 13º salário, adicional de um terço de férias, Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS) e licença-maternidade (incisos do art.9º ).

O texto do relator na Câmara torna obrigatória a abertura de vagas de estágio nas embarcações brasileiras e estrangeiras afretadas para brasileiros que fizeram cursos do sistema de ensino profissional marítimo. Os navios afretados deverão manter tripulação brasileira equivalente a dois terços do total em cada nível técnico do oficialato, incluídos os graduados ou subalternos, e em cada ramo de atividade (art. 9º, incisos II). Note-se que a regra dos dois terços da tripulação para brasileiros segue o que já previa a Lei 9.432/1997, que dispõe sobre o transporte aquaviário, bem como a Resolução Normativa 72/2006, do Conselho Nacional de Imigração, e sua sucedânea, a RN 06/2017.

O comandante, o mestre de cabotagem, o chefe de máquinas e o condutor de máquinas deverão ser brasileiros (inciso 3º do mesmo artigo). Se não houver tripulantes brasileiros suficientes para atingir o mínimo exigido, a empresa habilitada poderá solicitar ao órgão regulador (Antaq) autorização para operar a embarcação específica com tripulação estrangeira por até 90 dias ou por uma viagem, se a duração for maior que esse prazo.

Contexto econômico e mercadológico

De acordo com o Ministério da Infraestrutura (Minfra), com base em dados de 2018, o transporte entre os portos nacionais (cabotagem) movimenta cerca de 163 milhões de toneladas anuais, em 84 embarcações que, somadas, têm 4,3 milhões de toneladas de porte bruto. Em contêineres, o modal responde pelo transporte de 1,35 milhão de unidades/ano, o equivalente a 10% da tonelagem total, com 17 navios especializados (porta-contêineres) em operação. 

A maior parte do transporte de cabotagem é de graneis líquidos (petróleo e derivados) e sólidos (63% e 23%, respectivamente). Ao apresentar o “BR do Mar”, o Minfra projetava um aumento do transporte de carga em contêiner da ordem de 100 %, para 2,7 milhões de unidades até dezembro de 2022, a partir do aumento de 40% da frota dedicada ao segmento de cabotagem. A possibilidade de a meta ser cumprida como resultado do BR do Mar será analisada, de forma mais precisa, nos tópicos seguintes.

O setor de cabotagem tem crescido de forma sustentável nos últimos anos. De 2010 a 2018, o crescimento do modal foi de 28%, saltando de 127 milhões de toneladas transportadas para algo próximo aos 164 milhões de toneladas. De acordo com a Associação Brasileira dos Armadores de Cabotagem (ABAC), entidade de classe setorial, o crescimento tem sido, em média, de 12,92% ao ano, desempenho bastante significativo. Em 2019, em particular no primeiro semestre daquele ano, comparado ao mesmo período de 2018, quando houve a greve dos caminhoneiros, o crescimento do modal foi ainda mais robusto, de 24,7%. Os “donos” da carga perceberam que não poderiam ficar reféns das contingências (políticas e estruturais) das rodovias – ou do transporte rodoviário.

Hoje, a cabotagem responde por aproximadamente 11% do transporte de carga no Brasil, atendendo a mais de 2 mil empresas usuárias. Ainda segundo a ABAC, os investimentos têm sido significativos. Nos últimos anos, 20 novas embarcações entraram em operação no segmento, o que representou investimentos da ordem de R$ 5 bilhões.

As maiores empresas que operam na cabotagem no Brasil hoje já têm capital ou controle estrangeiro. São grandes grupos de transporte marítimo de atuação global com participação ou controle em uma das 43 Empresas Brasileiras de Navegação (EBN). Com efeito, três empresas brasileiras de navegação detêm, juntas, o transporte de contêineres na cabotagem. Duas dessas empresas (Aliança Navegação e Logística e a Mercosul Line Navegação) movimentam mais de 70% dos contêineres na costa brasileira e são controladas, respectivamente, por dois grandes conglomerados da navegação sediados na Europa e integrantes, por sua vez, de duas das maiores alianças internacionais do transporte marítimo, a 2M Alliance e a Ocean Alliance.

O Brasil já operou uma das maiores frotas do mundo, não apenas na cabotagem, como no longo curso. As razões para a drástica redução de participação brasileira no transporte marítimo, com frota própria, de empresas brasileiras com capital predominantemente nacional e navios produzidos no país, devem ser procuradas no nosso próprio arcabouço legal e nas nossas peculiaridades estruturais.

A logística brasileira tem custos operacionais significativamente mais altos do que os países que tradicionalmente operam frotas marítimas. Esses custos estão relacionados à alta tributação e a uma legislação trabalhista mais estrita (“protetiva”) do que as da maioria daqueles países. Um ambiente ainda pouco atrativo para os investimentos, com elevada insegurança jurídica, também contribuiu para a redução do espaço das empresas brasileiras, que enfrentam desvantagens adicionais pela falta de escala global. É preciso ressaltar que a operação marítima requer pesados investimentos e previsibilidade de regras, com estabilidade regulatória.

Na verdade, as grandes empresas estrangeiras que operam no país acabam por prestar um relevante serviço, uma vez que, por questões estruturais e legais locais, empresas nacionais não estão sendo capazes de oferecer o serviço na medida necessária. A questão é saber se o BR do Mar contribui para resolver o problema, abrindo mais espaço a empresas brasileiras, ou vai no sentido oposto, concentrando ainda mais o mercado.

Aspectos críticos do BR do Mar

O Projeto de Lei nº 4.199 de 2020 é dessas iniciativas cercadas de boas intenções que, contudo, corre o risco de não surtir o efeito esperado, uma vez que parte de alguns diagnósticos equivocados. Dessa forma, também acaba por estabelecer regras lesivas ao interesse nacional. De forma implícita, o PL considera que o principal entrave ao setor é uma pequena disponibilidade de navios. Pressupõe, também, que o modal está estagnado, registrando baixo crescimento, dentro da matriz de transportes do Brasil – algo que, como vimos acima, não espelha a realidade.

Ambas as premissas são falsas, mas, teoricamente, com base nelas, o PL estabelece medidas para que empresas estrangeiras possam ampliar a operação na cabotagem, como se essa participação hoje fosse reduzida, o que também não é verdadeiro, pois 95% do transporte de cabotagem já são feitos por empresas sob controle estrangeiro. O texto original do projeto ainda abre indiretamente a possibilidade de financiamento a estaleiros estrangeiros, para a produção de embarcações no exterior, em detrimento da indústria naval nacional, na medida em que às empresas estrangeiras com sede no Brasil seria dado acesso ao Adicional ao Frete para Renovação da Marinha Mercante (AFRMM).

O PL autoriza a importação sem restrições (isenção) de um navio, mas a matriz poderá criar quantas subsidiárias considerar convenientes para transferir para o Brasil a quantidade de navios que entender necessária à sua operação na cabotagem. Ao mesmo tempo, a coligada no exterior poderá construir embarcações em outros países, uma vez que, em tese, teria colocação assegurada para as suas embarcações usadas: o mercado brasileiro de cabotagem. De acordo com os incisos I e III do artigo 11 do texto original do projeto, essas empresas passam a fazer jus aos recursos do AFRMM, tributo pago por importadores e que é destinado à quitação do financiamento do Fundo da Marinha Mercante (FMM), teoricamente, usado na construção de embarcações em estaleiros brasileiros.

Conforme artigo de minha autoria em conjunto com o engenheiro naval Nelson L. Carlini, publicado em veículos especializados em 2020 e este ano[1], isso pode significar que o navio afretado, construído no exterior, fará jus ao recebimento de recursos originalmente destinados a pagamento de financiamentos para construção no Brasil. Com essa possibilidade aberta pelos incisos I e III do artigo 11 do PL  4.199 esses recursos do FMM estariam liberados à EBN para amortizar a compra de navios, mesmo na China, Japão, Cingapura e Coréia, entre outros países com tradição na construção naval. Em tese, é o que poderia acontecer. Nesse caso, em vez de atrairmos mais financiamentos para o Brasil, estaríamos, na prática, disponibilizando recursos para garantir o emprego de operários chineses, coreanos e japoneses.

Na grande maioria dos países, mesmo nas economias mais abertas, como os Estados Unidos[2], o transporte de cabotagem é reservado a empresas nacionais, com tripulações nacionais e, de preferência, operando navios produzidos no próprio país. E isso se deve a questões estratégicas atinentes à soberania, à segurança e à economia, que guardam estreita relação entre si. Por sua vez, a vinculação da indústria naval ao modal é feita como forma de estímulo à produção e à geração de empregos. São setores que, por razões óbvias, devem integrar uma mesma cadeia econômica, com crescimento recíproco, retroalimentado, a exemplo do que o agronegócio representa para a indústria de implementos agrícolas, e vice-versa.

 

Indústria Naval

 

            Um dos argumentos do governo para o encaminhamento do BR do Mar é a defesa da concorrência, com a possibilidade de entrada no setor de novos operadores. Para tanto, estabelece o amplo afretamento de embarcações no exterior, conforme dispõem os artigos 5º e 6º do PL. Contudo, pelas condições dadas, somente grandes empresas de atuação global terão capacidade e recursos suficientes para atuar no setor. O projeto não cria condições estruturantes para a ampliação da cabotagem com empresas nacionais, apenas aprofunda a ênfase na operação por empresas estrangeiras. Como agravante, ainda enseja regras que colocam “em xeque” a indústria naval nacional.

Em Nota Técnica encaminhada em abril ao Senado, a Sociedade Brasileira de Engenharia Naval – SOBENA, entidade técnica, sem fins lucrativos, e de utilidade pública municipal (Lei 3.037/2000, Rio de Janeiro) advertiu que, com o Projeto de Lei 4.199/2020, “a Indústria de Construção Naval Brasileira deverá sofrer a perda um dos seus últimos mercados capazes de gerar seu soerguimento, com o risco do fechamento definitivo de diversos Estaleiros, sejam estes recém-construídos ou tradicionais”. Asseverou, ainda, que, “com o afretamento indiscriminado por qualquer empresa, se abre uma porta para a evasão de divisas e sonegação fiscal, já que os valores de afretamento podem ser livremente fixados por estas empresas no exterior, resultando em lucro zero para a Empresa Brasileira de Navegação (EBN) [criada com este propósito específico] e, consequentemente, zero de recolhimento de Imposto de Renda por tais empresas”.

Na referida NT, a entidade salientou que “nenhum outro país do porte do Brasil, tais como China, Índia, Rússia, Indonésia e Estados Unidos, propicia a amplitude da abertura que está sendo concedida aqui pela BR do Mar”. Para evitar prejuízo maior à indústria nacional, a SOBENA propôs emenda que confere a prioridade no afretamento para embarcações construídas no Brasil, desde que apresentem as mesmas condições das embarcações estrangeiras, um dispositivo que, além de resguardar os interesses da indústria nacional, não compromete a busca da eficiência e competitividade, estando ainda em consonância com os parâmetros concorrenciais em prática no setor no restante do mundo.

A proposta foi acolhida pelo senador Carlos Portinho (PL/RJ), que a transformou em emenda, a de número 43 do texto em trâmite no Senado. Com a alteração, o art. 5º do PL nº 4.199/2020 passaria a ter a seguinte redação:

“A empresa habilitada no BR do Mar poderá afretar por tempo, respeitada a prioridade de afretamento de embarcações construídas no Brasil [grifo nosso] nas mesmas condições e de posse de EBN [Empresa Brasileira de Navegação] ou EBIN [Empresa Brasileira de Investimento em Navegação], embarcações de sua subsidiária integral estrangeira, para operar a navegação de cabotagem (...)”.

 

Conclusões

A mudança embutida na Emenda nº 43 do Senado, de fato, poderia abrir o mercado para novos investidores no Brasil, tanto em estaleiros quanto em Empresas Brasileiras de Investimento em Navegação (EBINs), bem como em Fundos de Investimento em Infraestrutura. Paralelamente, poderia propiciar condições mínimas para uma retomada de polos de produção de insumos para estaleiros. Contudo outros aspectos do projeto geram controvérsias e precisariam ser eliminados.

O texto não deve permitir, ainda que indiretamente, que o Fundo de Marinha Mercante (FMM) seja utilizado para financiamento de construção de navios no exterior. Para tanto, seria preciso alterar os incisos I e III do art. 11, de forma a vedar essa possibilidade e explicitando que os recursos do referido fundo devem ser empregados para financiar a construção de embarcações no Brasil, por Empresas Brasileiras de Navegação ou Empresas Brasileiras de Investimento em Navegação, em estaleiros nacionais, de preferência voltados para a exportação.

Por fim, é preciso salientar que os grandes óbices à cabotagem são estruturais, representados pelo excesso de burocracia nos portos - onde há uma dezena de órgãos intervenientes, sem a devida uniformidade de atuação -, pelas elevadas taxas portuárias, pela obrigatoriedade dos serviços de praticagem (pilotos específicos para cada porto), e pelo alto preço do bunker (combustível naval), sobre o qual incide o ICMS, em comparação ao diesel rodoviário, subsidiado.

Tais entraves, estruturais, precisariam ser enfrentados de forma mais decisiva, caso o intuito seja mesmo o de estimular o transporte de cabotagem. Contudo, o BR do Mar, na contramão deste entendimento, condiciona preferencialmente o aumento da participação da cabotagem na matriz de transportes a uma maior entrada em serviço de navios estrangeiros. Se as referidas condições estruturais não forem alteradas, a cabotagem não sofrerá o impulso pretendido, não importando uma maior oferta de embarcação ao preço do desmonte final da indústria naval nacional. Cabe salientar que não há falta de navios no modal: a taxa de ocupação média da frota que opera na cabotagem está em torno de 75% (25% de ociosidade).

Com essas considerações, entendemos que o Projeto de Lei nº 4.199/2020 introduz mudanças drásticas no segmento de transporte entre os portos nacionais, com efeitos negativos para a indústria nacional, sem que consiga garantir a realização do objetivo proposto, que é o estimulo ao desenvolvimento do setor, com defesa da concorrência. Assim sendo, sentimo-nos autorizados a recomendar ao Senado que proceda a ajustes no texto de forma a prevenir lesão aos interesses nacionais. Entre esses ajustes, em particular, introduzir a prioridade de afretamento para os navios produzidos no Brasil e eliminar qualquer possibilidade de o Fundo de Marinha Mercante (FMM) ser utilizado – ainda que de forma indireta – para a construção de embarcações no exterior.

Respeitosamente, salvo melhor juízo, é este, prezados presidente e integrantes da Comissão de Infraestrutura do IAB, o meu parecer.

 

Rio de Janeiro, em 31 de agosto de 2021.

Nilson Vieira Ferreira de Mello Jr.

 

ADENDO

Comentários adicionais apresentados

na sessão plenária de 04 de maio de 2022

(Power Point da apresentação em anexo)

 

            Como consta do parecer original sobre o PL 4.199/2020, o alegado intuito da Lei 14.301/2022 (ou BR do Mar, programa de estímulo ao transporte de cabotagem) é o de aumentar a qualidade e incentivar a concorrência na prestação do serviço de transporte entre os portos nacionais. Isso implica, de acordo com a exposição de motivos do Ministério da Infraestrutura, ampliar a frota na navegação neste segmento, o que garantiria maior participação do modal na matriz nacional de transportes.

Subsidiariamente, visaria ainda, segundo o governo, apoiar o desenvolvimento da indústria naval, “incentivar a formação de marítimos nacionais, estimular os investimentos decorrentes de operações de cabotagem em instalações portuárias e otimizar o emprego dos recursos oriundos da arrecadação do Adicional ao Frete para a Renovação da Marinha Mercante (AFRMM)”.

Para cumprir tais metas, o programa BR do Mar foi concebido em quatro grandes eixos: 1. Maior facilidade para afretamentos; 2. Utilização dos recursos oriundos do Fundo de Marinha Mercante para obras de reparos e modernização de embarcações em estaleiros nacionais; 3. Redução de custos portuários, por meio de propostas de combate à burocracia; 4. Propostas para contratos temporários para movimentação de cargas em terminais dedicados à cabotagem.

Entendemos que os primeiros dois eixos constituem a maior ênfase da nova lei, enquanto o terceiro e o quarto foram relegados a medidas complementares. Neste sentido, cabe ressaltar que grande parte das disposições previstas na Lei 14.301/2022 ainda deverá ser objeto de regulamentação por meio de atos e decretos emanados do próprio Executivo, senão diretamente via Ministério da Infraestrutura, por meio de resoluções normativas baixadas pela Agência Nacional de Transportes Aquaviários (Antaq).

Considerando o impacto normativo da nova lei, nos parece que tal circunstância tende a prolongar as dúvidas acerca da efetividade do novo marco legal setorial, além de gerar futuros questionamentos judiciais, em especial eventuais arguições de inconstitucionalidade de algumas dessas medidas complementares. Sobre o impacto normativo, vale lembrar que a Lei 14.301/2022 alterou as Leis nºs 5.474, de 18 de julho de 1968, 9.432, de 8 de janeiro de 1997, 10.233, de 5 de junho de 2001, 10.893, de 13 de julho de 2004, e 11.033, de 21 de dezembro de 2004, além de revogar uma série de outras normas, entre as quais o Decreto do Poder Legislativo nº 123, de 11 de novembro de 1892 e o Decreto-Lei nº 2.784, de 20 de novembro de 1940. Convém esclarecer que a Lei nº 9.432, de 8 de janeiro de 1997, que dispõe sobre a ordenação do transporte aquaviário, continua em vigor, tendo tido apenas parte de seus dispositivos alterados, mormente aqueles relativos ao afretamento de embarcações.

No que tange o contexto em que se insere a Lei nº 14.301/2022, cabe acrescentar ao que foi dito no parecer original sobre o PL 4.199/2020 que, pelas características do Brasil, é razoável que o Poder Público pretenda estimular o transporte de cabotagem. O país tem cerca de 8 mil km de litoral, ao longo dos quais existem mais de 30 Portos Organizados (portos públicos). Além disso, os maiores mercados produtores e consumidores (bem como a maioria das grandes metrópoles) situam-se numa faixa de 200 km do litoral. Em todo o mundo, o conceito que prevalece é o de que os modais rodoviário e marítimo, sobretudo em nações com grande extensão territorial, devam ser complementares.

Dados do BNDEs indicam que o custo do transporte rodoviário chega ser 4,5 vezes maior do que o marítimo, além de ser mais poluente. Apenas um navio porta-contêiner pode levar 4,5 mil contêineres, enquanto uma carreta rodoviária leva apenas uma dessas unidades ou no máximo duas ou três. Desta forma, mecanismos que façam com que a matriz de transportes (hoje, 65% do transporte interno é rodoviário, contra 11% da cabotagem) passe a ter maior participação do modal marítimo são bem-vindos.

Assim sendo, o maior questionamento em relação à nova lei é se uma abertura sem precedentes para os afretamentos de embarcações no exterior de fato propiciará o aumento pretendido de participação da cabotagem na matriz de transportes, uma vez que os óbices estruturais, como burocracia entre os portos nacionais, custo do combustível de navegação (menos competitivo do que o diesel rodoviário, subsidiado), custo dos serviços de praticagem e das tripulações nacionais, entre outros, não foram diretamente enfrentados, ou dependerão de medidas complementares, conforme referido no parecer original sobre o PL. 4.199/2020.

 

As principais alterações com a nova Lei 14.301/2022

 

            Conforme mencionado, o cerne do novo diploma legal é a maior facilidade para afretar navios no exterior. Pela regra anterior, era possível trazer navios de fora do país, no caso de não haver embarcação brasileira disponível para fazer o serviço. Neste sentido, procedia-se à “circularização”, ou seja, consulta ao Sistema de Afretamento de Navegação Marítima e de Apoio (Sama/Antaq). Outra possibilidade prevista na Lei 9.432 de 1997 era quando houvesse “interesse público” reconhecidamente envolvido na questão, algo raro de acontecer – ou de se comprovar. Havia ainda a possibilidade de afretamento no exterior em substituição a embarcação já em construção no Brasil.

            A lei previa ainda hipóteses em que era possível fazer o afretamento no exterior sem necessidade expressa de autorização da Antaq e “circularização”. Isso se dava quando a embarcação a ser afretada já fosse brasileira. Ou ainda quando a embarcação era estrangeira, mas estava sendo afretada a “caso nu”, ou seja, para ser tripulada por brasileiros e equipada (mantimentos, provisionamentos etc) no Brasil.

Com as mudanças introduzidas pela Lei 14.301 de 2022, o armador passa a poder fazer o afretamento de embarcação a “casco nu” no exterior, independentemente se tiver embarcação em operação no Brasil. De acordo com o art. 5º da nova lei, a empresa habilitada no BR do Mar também poderá afretar por tempo embarcações de sua subsidiária integral estrangeira ou de subsidiária integral estrangeira de outra empresa brasileira de navegação para operar a navegação de cabotagem, desde que essas embarcações estejam em sua propriedade ou em sua posse, uso e controle, sob contrato de afretamento a “casco nu”.

Esse afretamento poderá ser realizado na hipótese de ampliação da tonelagem de porte bruto das embarcações próprias efetivamente operantes, registradas em nome do “grupo econômico” a que pertença a empresa afretadora, de acordo com a proporção a ser definida em ato do Poder Executivo federal. Ou ainda em substituição de embarcação de tipo semelhante em construção no país, na proporção de até 200% (duzentos por cento) da tonelagem de porte bruto da embarcação em construção, pelo prazo de seis meses, prorrogável por igual período, até o limite de trinta e seis meses.

Também poderá fazer o afretamento em substituição de embarcação de tipo semelhante em construção no exterior, na proporção de até 100% da tonelagem de porte bruto da embarcação em construção, pelo prazo de seis meses, prorrogável por igual período, até o limite de 36 meses. E ainda no atendimento exclusivo de contratos de transporte de longo prazo, nos termos dispostos em ato do Poder Executivo federal, bem como na prestação exclusiva de operações especiais de cabotagem, pelo prazo de 36 meses, prorrogável por até 12 meses, nos termos dispostos em ato do Poder Executivo federal.

Como se percebe da leitura das hipóteses, a lei deixa larga margem para definição posterior por meio de normas a serem fixadas pelo próprio governo, inclusive no que toca o conceito de “grupo econômico”. Mas está claro que cai a exigência de só se permitir contrato “por tempo” quando não houver embarcação de bandeira brasileira disponível no sistema Sama/Antaq. Os afretamentos a tempo, para substituir embarcações em reparo ou construção, estão autorizados. Estão ainda permitidos os afretamentos para substituir navios em reparos ou construção e para operações que ainda não existam ou para cumprir exclusivamente contratos de longo prazo.

                Conforme mencionado, a nova lei estabelece uma flexibilidade maior no caso do afretamento na modalidade “casco nu” com suspensão de bandeira (ou seja, adoção temporária de registro brasileiro), não sendo mais necessário comprovar navio existente na frota ou em construção. Nessa modalidade, foi estabelecida uma regra progressiva. Imediatamente (2022), o armador poderá fazer o afretamento de uma embarcação; em 2023, de duas; em 2024, de três; em 2025, de quatro; e, a partir de 2026, de quantas quiser, o que configura uma abertura sem precedentes.

            A empresa habilitada na BR do Mar passa a estar automaticamente autorizada a afretar navios no exterior de sua subsidiária integral estrangeira, ou de uma subsidiária estrangeira de outra companhia brasileira. Para estar habilitado no programa, o armador precisa estar registrado como Empresa Brasileira de Navegação (EBN) no segmento de cargas de cabotagem, estar com situação tributária regular, e apresentar plano periódico acerca de sua operação, conforme regulamentação específica ainda a ser editada (Antaq). Esses navios poderão ser de propriedade dessas subsidiárias ou estar em sua posse ou controle simplesmente, sob contrato de “casco nu”.

A nova lei cria a figura da Empresa Brasileira de Investimento em Navegação (EBN-i), destinada a constituir frotas e afretar embarcações para as EBNs operarem. As EBN-is têm navios, mas não os operam. De acordo com o Ministério da Infraestrutura, a existência dessas empresas garantirá agilidade aos afretamentos, pois dispensa as EBNs de adquirirem frotas próprias, com todos os investimentos e riscos interesses, mas as mantêm responsáveis pelas operações de cabotagem.

As inovações introduzidas pela nova Lei 14.301/2022 têm alguns desdobramentos tributários e fiscais. As embarcações afretadas serão imediatamente submetidas ao regime aduaneiro especial de admissão temporária sem necessidade de registro de declaração de importação e com suspensão total de incidência tributária nos casos de Imposto de Importação (II), Imposto sobre Produtos Industrializados na Importação (IPI-Import), das contribuições de PIS e Cofins na Importação e da Cide-Combustível. Adota-se, assim, o Regime de Admissão Temporário Automático previsto na lei, e não apenas os previstos no art. 5º da Instrução Normativa 1600/2015 da Receita Federal do Brasil.

A nova lei também prorrogou por dois anos o Reporto – o Regime Aduaneiro Especial para Incentivo e Ampliação da Infraestrutura Portuária e Ferroviária, que suspende o recolhimento de tributos na importação de máquinas e equipamentos para investimentos em portos e ferrovias. Instituído em 2004 pela Lei 11.033, o Reporto vinha sendo regularmente prorrogado, mas havia expirado em 2020. Sua manutenção no texto final da Lei 14.301 se deu por meio de derrubada pelo Legislativo do veto presidencial.

O Planalto impôs o veto ao texto original porque considerava que não havia previsão de receitas que pudessem compensar a renúncia fiscal decorrente da prorrogação do regime, e temia violação da lei de Responsabilidade Fiscal. Com a derrubada do veto pelo Congresso, os riscos para o Executivo deixaram de existir. Num momento em que se promovem grandes investimentos em terminais portuários e ferrovias, por meio de privatizações nesses dois setores, a prorrogação do Reporto tem indiscutível relevância.

A nova lei também prorrogou até 2027 a isenção do Adicional ao Frete para a Renovação da Marinha Mercante (AFRMM) no segmento de cabotagem que tenha como destino e origem o Norte e o Nordeste, com o intuito de estimular este tipo de transporte nessas regiões. No longo curso, o adicional foi reduzido de 25% para 8%; na cabotagem para as demais regiões do país, de 10% para 8%. A nova lei possibilitou ainda a geração de crédito do AFRMM na operação de embarcações estrangeiras afretadas por tempo no regime do BR do Mar. Pela regra anterior, a operação de navios estrangeiros não dava direito a esse crédito.

A norma ainda ampliou de forma significativa a utilização dos recursos oriundos do Fundo da Marinha Mercante (FMM), que agora podem ser empregados em obras de dragagem e instalações retroportuárias (áreas secundárias dos portos), além de manutenção, modernização, “jumborização” (aumento da tonelagem) de navios, desde que em estaleiros nacionais. Permite ainda usar os créditos do FMM como garantia à construção de embarcações, pagamento de afretamento e reembolso de prêmio de seguro.

No que tange a legislação trabalhista, a regra de 2/3 de tripulantes brasileiros nos navios afretados, conforme demanda de entidades sindicais, não prosperou no texto final da Lei 14.301. Prevalece, portanto, a Resolução Normativa (RN) 06 do Conselho Nacional de Imigração. Pela norma, a partir de 90 dias de operação no Brasil, o navio deve ter 1/5 de sua tripulação composto por marítimos brasileiros e, a partir de 180 dias, o percentual passa a ser de um terço. Além disso, o comandante, o chefe de cabotagem, o chefe de máquinas e o condutor de máquinas têm que ser brasileiros (art.9º, III, da Lei).

Pelo artigo 12, aos contratos de trabalho de tripulantes que operam embarcação estrangeira afretada na forma da nova lei devem ser aplicadas as regras internacionais estabelecidas por organismos internacionais devidamente reconhecidos, referentes à proteção das condições de trabalho, à segurança e ao meio ambiente a bordo de embarcações, e a Constituição Federal. Não será necessário visto para tripulantes estrangeiros. Entendemos que as disposições no campo das relações de trabalho geram dúvidas e potencializam demandas judiciais.

 

 

 

 

 

Observações finais

  

A Lei partiu dos pressupostos de que o modal está estagnado e de que não há disponibilidade de embarcações na cabotagem, o que não é totalmente verdadeiro à luz das estatísticas apresentadas de início. Contudo, a partir desses pressupostos, promoveu uma abertura do setor, por meio da liberação dos afretamentos, sem precedentes no mundo para nações com a relevância econômica e as características geográficas (extenso litoral) do Brasil. Por outro lado, os grandes óbices à expansão do modal – tanto os de caráter estrutural como os de caráter regulatório - ainda não foram decididamente removidos, ou dependerão de medidas complementares, e isso nos leva a concluir que o pretendido objetivo de aumentar a participação da cabotagem na matriz de transportes pode não ser alcançado, ao menos não nos ambiciosos prazos e percentuais esperados pelo governo.

Quais seriam, então, esses óbices ou entraves? Como já mencionado, um deles é a burocracia representada, entre outros, pelo excesso de documentação exigida de uma embarcação que opera na cabotagem. De acordo com a Associação Brasileira dos Armadores de Cabotagem (ABAC), um navio chega a emitir 30 documentos para navegar entre os portos nacionais. A burocracia gera demora e imprevisibilidade, o que faz muitas vezes com que os “donos da carga” optem pelo modal rodoviário, mesmo para grandes distâncias. 

            Por outro lado, os custos trabalhistas na navegação, comparativamente mais altos do que no exterior, em parte também afetam a competitividade do setor, ainda que um navio consiga ganhos de escala devido à sua grande capacidade de transporte. O combustível de navegação (bunker) mais caro do que o diesel rodoviário (subsidiado), devido à incidência do ICMS, representa igualmente uma desvantagem do modal. Por fim, vale mencionar que a deficiência nos acessos aos portos, com reduzida integração intermodal, e a prevalência do transporte rodoviário em relação ao ferroviário, são fatores que comprometem a eficiência do transporte marítimo de forma geral. Essas deficiências de acesso se verificam igualmente nos canais de navegação, cujas obras de dragagem nem sempre são realizadas com a regularidade e a agilidade necessárias.

No nosso entendimento, a remoção desses entraves poderia contribuir de forma mais decisiva para o aumento da participação da cabotagem na matriz de transportes do que ampla liberação de afretamentos promovida pela nova lei. Devemos reconhecer, contudo, que parte desses óbices (como custos trabalhistas e redução de ICMS sobre o bunker) é de difícil solução política, enquanto que as questões relativas à melhoria da infraestrutura de acesso e a integração intermodal exigem investimentos e tempo.

No que toca especificamente o apoio à indústria naval, a despeito das grandes possibilidades de uso dos recursos do Fundo da Marinha Mercante (FMM) em obras em estaleiros nacionais, entendemos que o setor poderia ter recebido um impulso mais significativo, se a emenda 43 tivesse sido totalmente acolhida no texto final. Neste sentido, o BR do Mar talvez tenha perdido uma grande chance de promover o soerguimento da indústria naval brasileira, que já foi uma das maiores do mundo.

São essas, portanto, respeitosamente, minhas considerações adicionais.

               

 

             

Rio de Janeiro, em 04 de maio de 2022.

NILSON VIEIRA FERREIRA DE MELLO JR.



[1] Agência iNFRA, PortoGente e Monitor Mercantil.

[2] Nos EUA, o Jons Act, lei federal de 1920, regulamenta o transporte marítimo e reserva a cabotagem a navios nacionais, de empresas genuinamente nacionais, com tripulações nacionais.

sexta-feira, 1 de abril de 2022

Perspectivas e infraesrutura

 

Da conjuntura ao novo modelo

de privatização dos portos

 

(Obs: este artigo foi publicado originalmente na Revista Portos & Navios)

Nilson Mello*

            O temor no início do ano de que o Brasil pudesse enfrentar uma fuga de investidores em decorrência das incertezas globais, que levam os agentes econômicos a se proteger do risco, se dissipou no decorrer de março, como efeito colateral – e paradoxal – da guerra da Ucrânia e a consequente valorização das commodities agrícolas e minerais.  O receio era reforçado pelo aumento dos juros pelo FED (Banco Central americano), como forma de combater a inflação, que chegou a 7,5% ao ano nos EUA, a maior taxa no país desde 1982, época do segundo choque do petróleo.

As incertezas persistem, porém, o aumento dos juros nos EUA, atraindo capitais para uma remuneração segura, encontrou um paralelo no Brasil, e pelas mesmas razões: aumento da Selic pelo BC a fim de reverter expectativas inflacionárias. Como resultado, houve significativo aumento da entrada de dólares no país, razão pela qual o real se tornou uma das moedas que mais se valorizaram em 2022.  

A valorização das commodities, por outro lado, fez com que a Bolsa de Valores brasileira (B3) se tornasse um dos destinos preferidos do mercado de capitais global. Nos três primeiros meses do ano, o saldo entre entradas e retiradas na B3 foi de R$ 93 bilhões, muito perto do valor total de 2021 (R$ 104 bilhões), com ingresso médio diário de R$ 1,3 bilhão, de acordo com reportagem do Estado de S. Paulo.

Em meio a essa importante dinâmica financeira, que melhora as perspectivas para o ano, o governo promoveu na quarta-feira (30/03) a mais arrojada rodada de leilões de privatização portuária da era republicana, desde a “primeira” Lei dos Portos (Lei 8.630/1993), não exatamente pelos valores envolvidos – que por si só não são desprezíveis –, mas pela mudança de paradigma, com a inauguração de uma nova modelagem jurídica para o setor.

Nos leilões, realizados em sessão na B3, foram concedidos à iniciativa privada a Companhia Docas do Espírito Santo (Codesa), englobando os Portos de Vitória e Barra do Riacho, e mais três terminais: um de grãos no Porto de Santos (Terminal STS 11); um de carga geral no Porto de Suape (Terminal SUA 07), em Pernambuco; e um de granel no Porto de Paranaguá (Terminal PAR 32), no Paraná. Essas concessões totalizam mais de R$ 170 milhões em outorgas (pagamentos ao Tesouro), além de contribuições variáveis sobre as receitas ao longo de 25 anos de contrato, prorrogáveis por mais cinco.

Os investimentos em modernização e ampliação contratados são da ordem de R$ 1 bilhão, ao longo do prazo de concessão, somando projetos no âmbito da Codesa e nos outros três terminais leiloados. Entre os novos controladores, há investidores nacionais e estrangeiros, caso do grupo chinês Cofco, que arrematou o terminal santista sem concorrentes. No caso da disputa pela Codesa, vencida pela Quadra Capital, por meio de um Fundo de Investimento e Participações (FIP), superando o consórcio formado por Vinci Partners e Serveng, os aportes serão bem mais significativos.

Além da outorga de R$ 106 milhões, a Quadra Capital desembolsará R$ 327 milhões pelas ações da Codesa, arcará com R$ 520 milhões em custo de manutenção e investirá R$ 335 milhões em obras no decorrer da concessão. Mais do que pelas cifras, o leilão foi emblemático pela mudança da modelagem jurídica. A transferência da Codesa à iniciativa privada inaugura no Brasil um terceiro e inédito modelo de administração portuária, denominado Full Privatize Port, pelo qual o grupo adquirente se responsabiliza tanto pela infraestrutura quanto pela superestrutura do Porto Organizado (público), sem qualquer participação ou interferência do ente público, salvo indiretamente pelas normas regulatórias.

O Full Privatize Port a rigor significa a desestatização da própria “Autoridade Portuária”. O modelo é pouco utilizado no Mundo, tendo em vista a importância dada pelos Estados ao controle de entrada e saída de mercadorias em seu território. Mas é também visto por muitos especialistas como o instrumento mais eficaz de se promover uma célere modernização de grandes estruturas portuárias. Deverá ser o modelo das privatizações da Companhia Docas do Estado de São Paulo (Codesp), responsável pelo Porto de Santos, e da Companhia Docas de São Sebastião (CDSS), em leilões previstos para serem realizados ainda este ano.

Nas concessões de terminais em portos públicos no Brasil, prevalecia até hoje o conceito de Landlord Port, a exemplo do que ocorre na maior parte dos países. Por esse modelo, o governo permanece responsável pela infraestrutura (as áreas comuns do chamado Porto Organizado público), cabendo ao setor privado a administração da superestrutura, abrangendo máquinas e equipamentos, bem como o gerenciamento de pessoal e o controle da operação propriamente dita. Esse é o caso dos terminais sob concessão nos Portos Organizados (públicos) brasileiros, inclusive nos de Santos, Rio de Janeiro, Paranaguá e Salvador, entre outros.

Introduzido pela primeira Lei dos Portos (Lei 8.630/1993), o Landlord Port propiciou a modernização e a ampliação da infraestrutura portuária do país, graças aos pesados investimentos feitos nas últimas três décadas por diferentes concessionários em dezenas de terminais nos nossos principais portos.  Representou um grande salto em relação a um modelo arcaico, o Service Port, em que o governo se responsabiliza pela infraestrutura e operação, e é pouco utilizado no mundo, ou mesmo o Tool Port, pelo qual o Poder Público mantém o controle delegando apenas parte da operação à iniciativa privada.

Porém, no Brasil, a rigor, o arcabouço que regulamenta a atividade portuária é híbrido, uma vez que, paralelamente aos terminais sob concessão em portos públicos, existem os terminais eminentemente privados, os chamados Terminais de Uso Privado (TUPs). Essas estruturas, disciplinadas pela “nova” Lei dos Portos (Lei 12.815 de 2013), decorrem da implantação de terminais em terrenos de propriedade privada, fora dos Portos Organizados, e que passam a operar em regime de autorização, sob condições estabelecidas pela agência reguladora.

Com a introdução do modelo Full Privatize Port no leilão da Codesa, a questão é saber se o aprofundamento do hibridismo jurídico trará os resultados esperados, ou seja, uma aceleração na modernização do setor. Um grande desafio será o de compatibilizar a “convivência” dos dois modelos nos Portos Organizados a serem inteiramente passados à iniciativa privada e onde já existem terminais sob concessão, sobretudo tendo em vista os interesses potencialmente conflitantes entre os atuais concessionários, com direitos adquiridos, e o novo controlador de toda a infraestrutura. Esse será o caso da Codesp, responsável pelo Porto de Santos, onde operam, sob concessão, alguns dos maiores terminais da América Latina.

Uma coisa é certa: a partir dessa nova “arquitetura” jurídica para a desestatização, não se poderá culpar o governo pela falta de ousadia – o que não lhe garante isenção por um eventual aumento da judicialização do setor. De qualquer forma, a manutenção dos investimentos nos portos ganhou uma garantia a mais com a renovação do Reporto – o Regime Tributário de Incentivo à Modernização e à Ampliação da Estrutura Portuária. Isso foi possível graças à derrubada pelo Congresso, no último dia 25 de março, do veto presidencial à prorrogação do regime especial.

O Reporto foi instituído em 2004 e vinha sendo renovado a cada cinco anos, até dezembro de 2020, quando expirou e não teve mais prorrogação. Inserido no PL 4.199 de 2020, de estímulo à cabotagem (conhecido como BR do Mar, convertido na Lei 14.301/2022), sua prorrogação é fundamental para que os vultosos investimentos do setor, projetos financeiramente complexos, se concretizem. O regime suspende a cobrança do Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI), do Imposto de Importação (II), de PIS e Confins, além de dar outros benefícios tributários na compra de equipamentos para investimentos em portos e ferrovias.

No caso do Imposto de Importação, a suspensão é dada quando não houver similar nacional. Sem o regime, os investimentos no setor portuário tornam-se até 30% mais caros, segundo entidades do setor, comprometendo todo o planejamento de longo prazo. Vários projetos ficaram paralisados no último ano à espera de uma definição. O veto presidencial à sua prorrogação dentro do BR do Mar teve como justificativa o risco de inconstitucionalidade em função de uma renúncia fiscal com forte impacto orçamentário e sem previsão de receita compensatória.

Com a derrubada do veto pelo Congresso, o risco de inconstitucionalidade deixou de ser um problema do Executivo. Do ponto de vista prático, a prorrogação é sem dúvida um fator de desenvolvimento dos portos. Na verdade, o sucesso das desestatizações nos portos em grande medida depende de um regime especial de incentivos como o Reporto.