sexta-feira, 22 de maio de 2020

Artigo


O agronegócio e os leilões dos portos



Obs: artigo publicado originariamente na Revista Portos e Navios https://www.portosenavios.com.br/artigos/artigos-de-opiniao/o-agronegocio-e-os-leiloes-dos-portos


            A crise desencadeada pela pandemia de Covid-19 tem comprovado uma virtude de nossa pauta comercial que, paradoxalmente, também está atrelada a uma desvantagem comparativa, em termos econômicos. A ênfase na exportação de commodities agrícolas, tendo em vista, por um lado, a eficiência de nosso agronegócio, e de outro, a perda de competitividade de nosso parque industrial, tem permitido ao país não apenas registrar superávits comerciais recorrentes, como minorar os impactos da pandemia sobre a economia em geral e sobre a atividade portuária, em particular. Produtos industrializados têm maior valor agregado, mas são menos demandados em momentos de crise.
Nunca se deixou de louvar o agronegócio brasileiro, reconhecendo o seu vigor, mas há anos lamentamos – e com razão – a defasagem e a perda de espaço competitivo de nosso parque industrial, processo que se agrava com a atual crise. O fato é que, neste momento, o perfil de nosso comércio exterior, ancorado no agronegócio, constitui uma proteção contra uma deterioração ainda maior da atividade econômica. Isso pela razão óbvia de que a demanda por alimentos, mesmo em momentos de forte retração global, como a que enfrentamos hoje, é menos elástica do que a de automóveis, eletroeletrônicos ou mesmo vestuário.
Graças às exportações do agronegócio, a crise tem tido um impacto menor sobre a cadeia logística portuária, ao contrário do que ocorre nos segmentos rodoviários e, principalmente, aeroportuário, no qual o movimento caiu mais de 90%, com previsão de recuperação plena somente a partir de 2022, de acordo com a IATA, a associação mundial do setor. Terminais portuários e retro portuários, assim como empresas de navegação, ainda têm conseguido manter elevado grau de atividade e ocupação. O Porto de Santos, maior do país e da América Latina, bateu recorde em sua movimentação mensal, com 13,4 milhões de toneladas em abril, 5% superior ao recorde mensal anterior, de outubro de 2019, e 26,8% acima do mesmo mês do ano passado. O complexo portuário de Itajaí (SC) também registrou crescimento de 10% no volume movimentado no mês passado, algo que tem se repetido em outros portos do país.
Em algum momento, esses movimentos sofrerão um reflexo maior da pandemia, mas ainda assim em grau menor do que outros segmentos. Ressalte-se que mais de 90% do comércio exterior brasileiro passam pelos portos. O diferencial da cadeia de exportação do agronegócio é tão significativo que o governo federal decidiu manter o calendário de leilão de terminais portuários (e também de aeroportuários e rodovias, por absoluta necessidade) previsto para este ano, embora tenha suspendido os de energia e de óleo e gás, esse último fortemente prejudicado pela vertiginosa queda das cotações de petróleo. Os leilões de portos e aeroportos deverão significar, numa estimativa conservadora, investimentos de R$ 24 bilhões nos próximos quatro anos.
Conta a favor desse programa de licitações a disposição dos investidores nacionais e estrangeiros em usar seus recursos em projetos de longo prazo, menos vulneráveis às oscilações conjunturais, numa crença, justificável, de que a globalização é irreversível e o mundo terá que voltar a crescer no day after da pandemia. Otimismo? Sim, mas não se paga nada por ele e, por outro lado, o pessimismo em nada ajudaria. Vale dizer que a inação governamental, neste momento, só agravaria nossos problemas.
Reforçam o olhar mais positivo para o horizonte a decisão de permitir maior participação de empresas financeiras nos leilões e a melhora na estabilidade de regras regulatórias atinentes aos portos. Insere-se nesse contexto, em especial, o recente reconhecimento, pelo Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade), da legitimidade da cobrança da taxa de movimentação dos contêineres dos terminais portuários para os retro portuários (a chamada SSE), em consonância com resolução anterior da agência reguladora (Antaq). A decisão, depois de muitos anos de disputas judiciais sobre a questão, certamente trará maior segurança jurídica para o setor, o que estimula os investimentos.
Os dados que ilustram o desempenho do comércio exterior e dos portos, referido de início, são consistentes. Nos quatro primeiros meses do ano, o superávit no comércio marítimo foi de US$ 19,7 bilhões, segundo a ATP – Associação dos Terminais Portuários Privados. O resultado foi 14,56% superior ao verificado no mesmo período do ano passado. O paulatino reaquecimento da economia chinesa, nosso maior importador, tem sido um grande aliado. Os dados seguem favoráveis em maio. Nas duas primeiras semanas do mês, o saldo da balança ficou positivo em US$ 3,676 bilhões, com exportações de US$ 9,674 bilhões e importações US$ 5,998 bilhões. É claro que, a queda das importações, dada a retração interna, e a alta do dólar também contribuem para o desempenho. No ano, as exportações totalizam US$ 77,035 bilhões e as importações, US$ 61,559 bilhões, com saldo positivo de US$ 15,477 bilhões.
Em meio à retração do comércio global, que poderá ser da ordem de 30% em 2020, de acordo com a Organização Mundial do Comércio (OMC), o agronegócio é uma âncora que impede que os impactos da pandemia sobre a economia brasileira sejam ainda piores. Sem exageros, é um dos fatores que permitirão a retomada do crescimento, juntamente com os segmentos de infraestrutura portuária e de transporte marítimo. O que se espera é que, dessa retomada, ressurja também um setor industrial mais eficiente, competitivo e dinâmico, que possa contribuir, juntamente com o agronegócio, para o fortalecimento do comércio exterior e o desenvolvimento brasileiro.

domingo, 17 de maio de 2020

Artigo


A hidroxicloroquina, os Postos Ipiranga e os cenários políticos


         Sem futebol aos domingos na TV e com bares fechados, por força do distanciamento social, o brasileiro trocou os debates sobre a escalação de seu time e da Seleção pelas discussões virtuais acerca do uso ou não da hidroxicloroquina no combate à Covid-19. Abandonamos a função de técnicos de futebol, na qual nos reconhecíamos reciprocamente diplomados e capacitados, para nos aventurarmos como experts em epidemiologia, infectologia, clínica geral, biomedicina, farmacologia...  
         Não se paga nada por dar palpites, e a manifestação do pensamento é garantia constitucional. Porém, como o assunto requer alto grau de especialização, anos de estudo e muita pesquisa científica, o bom senso recomendaria ouvir mais e “prescrever” menos, deixando o verdadeiro debate e qualquer decisão, em termos de política pública de combate à pandemia, com os “Postos Ipiranga” da Saúde.
         A hidroxicloroquina foi arrastada para os “botequins virtuais” como tema acessório da política, na medida em que o presidente da República insistiu (e insiste) em sua adoção em pacientes leves, ainda na fase inicial da doença, enquanto o Ministério da Saúde resiste (ao menos até aqui) em estabelecer protocolo para o seu uso amplo, uma vez que não há comprovação científica de sua eficácia.
Com efeito, importantes revistas médicas, como a New England Journal of Medicine, o Journal of American Medical Association e o British Medical Journal publicaram estudos no decorrer do mês de abril (ver o Estado de S. Paulo de 16/05) apontando que a medicação é pouco ou nada efetiva para tratar a doença e que, portanto, não há elementos para a expansão de seu uso, ou nem mesmo para o seu uso corriqueiro. É o que a maior parte dos cientistas brasileiros também tem dito, e não por outra razão é essa, até aqui, a orientação do Ministério da Saúde.
A busca de uma arma eficaz no combate à Covid-19 deve ser uma preocupação geral, não apenas porque essa medicação permitiria um retorno à normalidade, reduzindo os efeitos da pandemia sobre a economia, a esta altura já bastante combalida, mas, sobretudo, porque impediria o crescimento de casos graves e, por consequência, de óbitos. Assim, é compreensível a pressa do presidente, o que não é razoável é que imponha ao seu ministro da Saúde ou ao corpo técnico do ministério qual deve ser essa medicação e como deve ser seu emprego, menosprezando critérios e parâmetros científicos.
A relação do presidente com a área econômica deveria servir de paralelo para a Saúde. O presidente deveria confiar no “Posto Ipiranga” da Saúde não porque o nomeado faz o que ele, presidente, manda, mas porque tem competência para gerir a pasta. Por enquanto, fez o oposto. A possível efetivação do general Eduardo Pazuello – o número dois da pasta, no momento ministro interino –, é desaconselhável pelas dúvidas que tal escolha suscitaria quanto a se as medidas adotadas estariam realmente seguindo critérios médico-científicos ou apenas correspondendo ao voluntarismo do chefe.
A opção Pazuello, mal vista até pela ala militar do Planalto, representaria mais um fator de desgaste político para o governo, num momento em que o país precisa de estabilidade para enfrentar a pandemia e a grave crise econômica que dela resultou. Por sinal, a troca sucessiva de ministros em tão pouco tempo – onze, em menos de um ano e meio de mandato – reforça a sensação de insegurança e é por si só um sintoma de disfunção gerencial. Chama a atenção, sobretudo, se considerarmos que, de início, a excelência do corpo ministerial era apresentada como um dos diferenciais do novo governo.
De nada adianta se vangloriar de ter montado uma equipe técnica se é o desrespeito às decisões técnicas que tem levado auxiliares importantes a abandonar o barco. Nenhum outro presidente, à exceção de Dilma (com 16 alterações no mesmo período), que não é referência em termos administrativos, mudou tanto o ministério em tão pouco tempo. O ambiente de intranquilidade cria mais incertezas em relação às possibilidades de recuperação econômica. Os números que começam a se consolidar sobre o desempenho da economia brasileira nos primeiros meses do ano nos colocam diante de um horizonte sombrio. A atividade econômica caiu 5,9% em março e algumas consultorias já projetam a pior queda anual do PIB brasileiro em toda a história, de 6,2%.
O ministro Paulo Guedes procura fazer a sua parte ao trabalhar com hipótese mais otimista, de uma queda de 4% do PIB este ano, seguida de uma rápida recuperação em “V”, ou seja, acentuada, que começaria já no quarto trimestre deste ano. Trabalhar com expectativas mais otimistas é uma forma de gerar um círculo virtuoso, estimulando a atividade econômica. A torcida continua.  Mas, aliado a isso, os incentivos e estímulos dados à economia precisam começar a surtir efeito. De grande ajuda nesse processo seria a promoção de um ambiente político mais estável.
Para tanto, o presidente da República teria que reduzir as suas áreas de atrito, algo improvável tendo em vista o próprio perfil, de permanente disposição para o confronto. Foi, por sinal, esse ímpeto, de “destruição de pontes”, de aposta na polarização, que o levou ao isolamento político (assunto tratado no ensaio da semana passada aqui neste espaço) e à inevitável articulação com o grupo denominado “Centrão” – o derradeiro recurso a fim de não perder de vez a governabilidade. Até aqui, foi esse o resultado da reiterada aposta nos limites.
As incertezas, incluindo dúvidas quanto à real capacidade do governo de gerenciar o combate à pandemia e a recuperação econômica, em meio a trocas ministeriais e embates contraproducentes com outros Poderes, nos autorizam a considerar, entre os cenários possíveis, o do impeachment. Três dezenas de pedidos de abertura de processo neste sentido já foram protocoladas na Câmara, o que garante ao presidente da Casa, Rodrigo Maia, um forte poder de barganha. É verdade que, enquanto houver apoio nas ruas, esses processos têm poucas chances de prosperar. Mas esse apoio também tem diminuído, conforme demonstram as pesquisas. E o desdém com que o presidente trata os assuntos relacionados à pandemia, certamente, não ajudará a recuperá-lo. 
O inquérito aberto no Supremo para apurar possíveis crimes (entre os quais, falsidade ideológica, coação no curso do processo, advocacia administrativa, prevaricação, corrupção passiva, obstrução da Justiça...) no episódio de demissão de Sergio Moro, sob relatoria do ministro Celso de Mello, contribui para aumentar o desgaste, ainda que, juridicamente, possa não haver elementos suficientes para a abertura de processo e apresentação de denúncia. Lembre-se que o próprio Sergio Moro afirmou que o presidente não cometeu qualquer crime. Aliás, ainda é incerto se o ex-ministro colherá dividendos políticos com sua saída do governo, se é que de fato alimenta ambições eleitorais em relação a 2022.
Tudo considerado, o cenário menos provável é o de que este governo possa chegar ao fim do mandato entregando resultados significativos, tendo em vista a importante agenda prometida. Como a renúncia é igualmente improvável (novamente aqui fala mais alto o perfil), mais improvável até que o impeachment, é razoável esperar que “ande de lado” até o último dia. Com embates permanentes e polarização crescente. Quem ganha, quem perde? É claro que quem perde é o Brasil. E ganha a parcela da oposição sem compromisso com os interesses nacionais, pois nem em sonho imaginaria melhor cabo eleitoral.

Por Nilson Mello

           

domingo, 10 de maio de 2020

Ensaio



Entre marchas e Covid-19, a insensatez

(Texto editado nesta segunda-feira dia 11, em função da atualização do noticiário)

            “A renúncia ao uso da violência para conquistar e exercer o poder é uma característica do método democrático, cujas regras constitutivas prescrevem vários procedimentos para a tomada de decisões coletivas por meio do livre debate, que pode dar origem ou a uma decisão acordada ou a uma decisão tomada pela maioria. Prova disso é que, num sistema democrático, a alternância entre governos de direita e esquerda é possível e legítima”.
            As lições acima são do filósofo, jurista e cientista político italiano Norberto Bobbio[1], um dos maiores pensadores da segunda metade do século XX, ao lado de Karl Popper[2], a quem, invariavelmente, recorria para lembrar que as “sociedades abertas” só são possíveis no interior das estruturas institucionais dos regimes democráticos.
A referência a Bobbio – e também a Popper - é mais que oportuna no momento em que assistimos no Brasil ao que podemos chamar, recorrendo novamente à literatura política, a uma “marcha da insensatez”[3], representada pela reiterada disposição para o confronto e, consequentemente, a escalada das tensões entre os integrantes dos Poderes da República, em meio a uma pandemia de efeitos dramáticos pelo que representa em vidas perdidas e em retrocesso econômico. O entendimento deveria ser a palavra de ordem, mas o que se vê é justamente o oposto.  
Mesmo imperfeita, a democracia é o melhor entre os regimes, como teria ressalvado o então primeiro-ministro britânico Winston Churchill (em livre adaptação das lições dos clássicos), justamente porque permite a convivência de opostos de forma pacífica. Essa convivência implica o respeito à diferença e aos direitos das minorias, ainda que prevalecendo as políticas e os programas de governos escolhidos, nas urnas, pela maioria dos votantes.
Bobbio pontificou e se destacou como formulador na Itália e na Europa do pós-guerra, época em que não só os conflitos partidários entre direita e esquerda eram acirrados, como a guerra entre potências nucleares, iminente. Foi ele o responsável por estender uma ponte para o entendimento, contribuindo para que a democracia italiana caminhasse para a maturidade, livre do terrorismo.
Repassando as lições do filósofo de Turim, não restam dúvidas de que a falta de diálogo construtivo tem sido o fator determinante dos solavancos da democracia brasileira neste ano de 2020. O fato de termos um presidente que se dedica, desde o primeiro dia de mandato, a confrontar aqueles que estão em campo político e ideológico oposto, ao invés de se concentrar em governar, tem sido decisivo para esse processo de desgaste. A isso se soma a intransigência daqueles que não compreendem que a alternância de Poder implica o reconhecimento de uma visão de mundo distinta da sua, e de um programa de governo consoante a essa outra visão. Caímos na armadilha do círculo vicioso.
A responsabilidade maior está com aquele que exerce o principal mandato eletivo. É em relação ao presidente da República que deve recair a maior cobrança. A busca da estabilidade institucional e da sustentabilidade de seu governo recomendaria a renúncia ao que podemos chamar de “violência verbal”. A opção deve ser pelo “lançamento de pontes”, e não pela sua demolição em cadeia.
Com pronunciamentos e atitudes irresponsáveis, como a de participar, em plena quarentena, de uma passeata em que se pede o fechamento do Congresso e a volta do AI-5, ou a de desprezar as recomendações do Ministério da Saúde, no sentido de manter o distanciamento social, o presidente se transformou numa fonte permanente de insegurança institucional. Mais do que isso, testa os limites da democracia.
As suas declarações de deboche em relação à pandemia são um insulto à nação, uma afronta às vítimas, àqueles que perderam seus entes para a doença e aos profissionais de saúde que se arriscam na linha de frente de combate à Covid-19. Na semana passada, em tom de desdém, chegou a anunciar um churrasco de confraternização, depois abortado. Era uma piada, uma pegadinha?
Por prudência, presidentes não participam de atos públicos. O que Bolsonaro pretende com estratégia tão arriscada? Ser novamente o candidato da direita contra a esquerda em 2022, a partir do acirramento da polarização? Por enquanto, o que conseguiu foi potencializar os riscos para o seu governo e colocar em dúvida a própria permanência no cargo. Nesta semana que se inicia, a Procuradoria Geral da República decide se o denuncia por corrupção passiva, obstrução da Justiça e advocatícia administrativa, tendo em vista as suspeitas surgidas no episódio da demissão de Sergio Moro.
 Portanto, são os seus oponentes que têm ganhado terreno. São eles que estão sendo diariamente municiados pelos erros que comete. Nesse processo, em pouco mais de um ano e cinco meses de mandato, Bolsonaro afastou antigos apoiadores e eleitores, dilapidou seu capital político e vai se isolando como um presidente de “nicho”, que fala para uma parcela cada vez menor de seguidores irredutíveis.
No momento em que o país mais precisa de união e estabilidade, gera insegurança e compromete a importante agenda de reformas para a qual foi legitimamente eleito. Diante dos obstáculos que cria, em breve já não será exagero falar em estelionato eleitoral. Governar pode ser “construir estradas”, como disse Washington Luís, mas é, antes de tudo, conquistar aliados.
Na relação conturbada com o Legislativo, restou-lhe agora o abraço do “Centrão”, afeito a fisiologismos e corporativismos que invariavelmente estão na contramão dos interesses da sociedade. Quanto terá que ceder, para manter esse apoio? Sintomaticamente, as queixas dos presidentes da Câmara e do Senado ao Planalto cessaram nas últimas semanas.

O Quarto Poder

Entre os alvos prioritários do presidente esteve sempre a imprensa - sem qualquer exagero, uma das bases da democracia, ou o “Quarto Poder”, para usar novamente os ensinamentos de Bobbio. Na semana que passou Bolsonaro mandou um “cala a boca” para um repórter que, cumprindo seu trabalho, lhe dirigiu uma pergunta. Ora, a obrigação da imprensa é fazer perguntas, sobretudo as desconfortáveis e constrangedoras, pois essa é a forma de trazer ao “tribunal da opinião pública”, conforme salientava Thomas Cooley[4], os atos dos governantes. Esses, por sua vez, têm a obrigação de tentar respondê-las, civilizadamente.
Jornalistas não podem tudo, estão sujeitos a ações cíveis e penais por seus erros - e o Brasil está entre os países que mais processam jornalistas. Até porque liberdade de expressão não é um valor absoluto, acima de todos os outros previstos na Constituição. Porém, jornalistas podem e devem fazer perguntas, é o que se espera deles.
Na verdade, o que deve nos preocupar na conduta dos meios de comunicação é a postura dócil e cordata, não a crítica, inerente à sua função. É compreensível e mesmo desejável, por exemplo, que a imprensa questione a nomeação de um diretor da Polícia Federal, dada a sua proximidade com a família presidencial, e levante suspeitas tendo em vista essa relação. Ainda que a escolha seja prerrogativa do presidente da República, o sensato seria não nomear, a não ser que acima da moralidade esteja mesmo o interesse de acobertar possíveis desvios dos filhos, não importando mais salvar as aparências.
 As preocupações em relação ao equilíbrio institucional e a estabilidade política tornam-se ainda maiores, quando se percebe que a “marcha da insensatez” alcança o outro lado da Praça dos Três Poderes, não se restringindo ao Planalto. É o que se conclui da cassação sumária e atípica, sem julgamento, por um ministro do Supremo, de ato formalmente legal do presidente da República (leia o artigo “Crise política não justifica um “Judicialismo” anômalo”, mais abaixo, aqui neste Blog). Provavelmente, o ministro Alexandre de Moraes não teria deferido a liminar contra o ato presidencial, se não percebesse o enfraquecimento político do chefe do Executivo. E o responsável por esse enfraquecimento, como vimos, foi o próprio presidente.
 Ministros do Supremo são guardiões da Constituição e, por consequência, das instituições. Não podem invadir o espaço de competência de outros poderes, tampouco insultar ou ameaçar seus integrantes. Atitudes como essas não servem à democracia. Por essa razão, também causou surpresa a afronta gratuita aos militares e às Forças Armadas, manifestada no emprego da expressão “debaixo de vara”, em despacho do ministro Celso de Mello que convocou três ministros generais para depor no inquérito que apura as revelações feitas por Sergio Moro.
Se a aposta de ambos os ministros era a escalada das tensões políticas, com mais insegurança institucional, conseguiram o seu intuito, ao menos durante alguns dias. A exemplo de Bolsonaro, testaram os limites da democracia com as suas decisões e, de certa forma, contribuíram para a “marcha da insensatez”.   Justamente de onde se esperava mais segurança, vieram incertezas. A propósito, não é de hoje que o STF, adotando o conceito de “mutação constitucional”, vem invadindo a competência de outros poderes, em especial a do Legislativo.
Em defesa das Forças Armadas, cabe dizer que têm sido elas e seus integrantes os maiores guardiões da Constituição e das instituições, desde a redemocratização há mais de três décadas. Compromisso que foi reiterado na semana passada, em nota oficial do ministro da Defesa, o que fez com que os termos da convocação do ministro parecessem ainda mais injustificáveis.
De volta ao primeiro parágrafo, para finalizar este texto que já está por demais longo, há espaço na democracia tanto para a direita quanto para a esquerda, desde que se respeite a Constituição - e não se cometam loucuras. O exemplo deve vir do presidente da República e de suas excelências, os ministros do Supremo. Aliás, todas as respostas estão na Carta, inclusive o impeachment, este mecanismo de autodefesa e depuração dos regimes democráticos, caso o presidente insista na insensatez.
 Por Nilson Mello





[1] Em “Direita e Esquerda  - razões e significados de uma distinção política”, pág. 35, Editora Unesp.
[2] Filósofo austro-britânico, também considerado um expoente do pensamento democrático do Século XX, com seu conceito de “sociedade aberta”.
[3] A historiadora Bárbara Tuchman, em “A marcha da insensatez”  (Editora José Olímpio, 7ª Edição, 2005), examina uma série de decisões equivocadas que levaram à ruína de governantes e nações.

[4] Constitucionalista americano do século XX, defensor da liberdade de expressão e crítico contundente da escravidão nos EUA.

sábado, 9 de maio de 2020

Artigo


Reconfiguração que pode ajudar os portos


(Este artigo foi publicado simultaneamente com o portal PortoGente)

As crises econômicas, como a que enfrentamos neste momento, decorrente da pandemia de Covid-19, costumam ser um celeiro de ideias, mas não necessariamente de boas ideias. Isso porque emergência e urgência são potenciais inimigas do planejamento. E nesses momentos surgem sempre os oportunistas, com suas ideias inconsistentes. O alerta torna-se relevante, a fim de que, ao tentarmos resolver obstáculos relacionados ao novo coronavírus, não criemos outros desafios.
A nossa longa tradição de dirigismo estatal, pródigo em puxadinhos legais”, que solucionam questões pontuais, de caráter conjuntural, mas deixam, como efeito colateral, uma nova leva de problemas estruturais (às vezes sem sequer equacionar os anteriores), nos autoriza a fazer o alerta. Contudo, feita a ressalva, podemos dizer que as medidas em gestação no Ministério da Infraestrutura visando a atrair investidores para as concessões, a serem realizadas ainda este ano, parecem, em princípio, oportunas.  
Entre as medidas, duas se destacam: a de permitir uma maior participação de “players” financeiros nos leilões, ainda não detalhada, e a de autorizar o uso de debêntures no financiamento de obras de infraestrutura. Como sabemos, debêntures são títulos representativos de uma dívida, e como tal garantem a seus detentores o direito de crédito contra a empresa emissora, com a vantagem de poderem ser convertidas em ações. A reconfiguração exige mudança no marco regulatório, via deliberação e aprovação de projeto no Congresso, algo que começou a ser negociado esta semana.
Com efeito, debêntures são um instrumento eficaz de financiamento dos projetos de expansão do setor produtivo (e não por acaso, largamente utilizado durante a Revolução Industrial na Inglaterra do século XVIII), com as vantagens de ter custo bem mais baixo que as linhas de crédito do sistema financeiro e de contribuir, no caso de conversão em ações, para a democratização e desenvolvimento do mercado de capitais.
Na verdade, dadas as vantagens do financiamento via debêntures, sem que grandes desvantagens possam ser apontadas, custa-se a crer que o modelo ainda não estivesse sendo adotado para as concessões há mais tempo, o que também nos permite dizer que as crises, em que pese as adversidades, ensejam avanços. Com os problemas de caixa enfrentados pelas empresas e as limitações orçamentárias do Tesouro, ainda mais sobrecarregado pelas medidas emergenciais em função da pandemia, o instrumento ganha importância ainda maior, ao lado da participação de empresas financeiras nas licitações.
Um cuidado especial seria recomendável no que toca a adoção, dentro do modelo, das debêntures “incentivadas”, aquelas que permitem isenção tributária (IR e IOF, por exemplo), a fim de não se agravar ainda mais a situação fiscal. Aliás, incentivos fiscais estão entre aqueles “puxadinhos” que criaram mais problemas que soluções na história recente do país. Portanto, é fundamental que o novo modelo fique bem “desenhado”, apesar da urgência que se tem em sua reconfiguração.
Do correto “desenho”, com regras claras e transparentes, dependerá a efetiva participação de investidores. As expectativas do governo em relação às concessões são arrojadas: esperam-se investimentos da ordem de R$ 250 bilhões em infraestrutura até 2022.  Para que este objetivo se confirme, quanto mais rápida for feita a nova configuração do modelo, melhor, lembrando que a velocidade não pode comprometer a clareza.
Quanto ao que toca especificamente os portos, 15 leilões de concessão já estão programados até dezembro, sendo seis com editais previstos ainda para este mês. Para aumentar a sua chance de sucesso, o ideal seria que esses leilões do setor portuário também permitissem a maior participação de empresas financeiras e o uso do “instrumento” debêntures, o que ainda não será possível neste início.
Com nova previsão de retração no PIB brasileiro este ano, agora de 3,76% (algumas consultorias apostam em 7% de queda!), de acordo com o último boletim Focus, do Banco Central, é preciso esforço para encontrar razões para otimismo. As concessões são uma delas, assim como as notícias que, apesar de tudo, chegam do setor portuário. Após uma disputa judicial de sete meses, as novas obras de dragagem em Santos foram finalmente autorizadas, devendo ter início em 15 dias, ao custo de R$ 274,7 milhões.
O porto paulista, por sinal, apresentou o melhor quadrimestre de sua história, segundo sua direção, o que significa que os efeitos da crise só devem ser percebidos a partir de abril.  Aguardemos, torcendo para que os números não sejam tão ruins e mantendo o foco no trabalho e nas medidas que nos ajudem a superar a crise.

Por Nilson Mello

segunda-feira, 4 de maio de 2020

Artigo


Crise política não justifica um “Judicialismo” anômalo


            A tensão política gerada na semana passada pela suspensão da nomeação do diretor da Polícia Federal pelo presidente da República foi em parte superada nesta segunda-feira (04/05), com a substituição do indicado, conforme publicado no Diário Oficial. Porém, a discussão jurídica em torno da questão não se esgotou, tendo em vista a forma como se deu a suspensão e o instrumento utilizado.
O mandado de segurança é um “remédio” constitucional destinado a garantir direito líquido e certo violado, ou sob clara ameaça de violação, por ato de autoridade pública. Isso significa que, para a sua concessão, tanto o direito quanto a ameaça devem se apresentar de forma inequívoca, sem incertezas.
Do contrário, ou seja, não sendo fato incontroverso, a defesa desse bem que se pretende proteger deve ser feita por meio de ação própria, de caráter não sumário, em que se permita, assim, a apresentação de conteúdo probatório suficiente para estabelecer a materialidade do fato e a sua autoria, bem como permitir, à autoridade acusada da ilegalidade, o contraditório e a ampla defesa.
A concessão de liminar em mandado de segurança é admissível sempre que esteja presente o risco de dano irreparável ou de difícil reparação, o que significa que os fundamentos elencados no pedido devem ser relevantes e as consequências do ato impugnado, efetivamente demonstradas.
Disposto no inciso LXIX do artigo 5º da Constituição e regulamentado pela Lei 12.016 de 2009, o mandado de segurança pode ter caráter repressivo ou preventivo, porém, pela sua característica intrínseca (fatos incontroversos), não pode ser impetrado – e muito menos concedido – por mera suposição de que, por trás de um ato formalmente legítimo, emanado de uma autoridade pública, esconde-se um intuito supostamente subalterno que, em determinado momento, poderá causar dano a algum bem ou direito. Ilações ou deduções não justificam um mandado de segurança.
 As acusações feitas pelo ex-ministro Sergio Moro ao presidente da República, de tentativa de intervenção na Polícia Federal, por ocasião de seu discurso de despedida do governo na semana passada, são graves, merecendo apuração rigorosa e imediata. Contudo, tais acusações não autorizam um ministro do Supremo a invadir a competência do Executivo, para suspender ato do presidente da República que encontra respaldo em lei e na Constituição.
Ao suspender liminarmente a então nomeação do diretor da Polícia Federal pelo presidente da República, em mandado de segurança impetrado pelo PDT, o ministro Alexandre de Moraes agiu como censor dos atos presidenciais, algo inadmissível à luz da própria Constituição que, com alegado zelo, procura defender. A nomeação do diretor geral da Polícia Federal é prerrogativa do chefe de governo (Constituição Federal, artigo 84, inciso XIV) e, no caso em questão, o nomeado, delegado de carreira do órgão, preenche os requisitos para o cargo (artigo 2c, da Lei 9.266 de 1996).
A defesa da moralidade e da impessoalidade, alegada no mandado de segurança do PDT e reconhecida como fundamento para a concessão da ordem cautelar se sobrepôs a outros princípios constitucionais, em particular, o da soberania do voto popular e o da separação dos Poderes. Ao agir por suposição, sem examinar provas (que ainda não foram apresentadas) e, dessa forma, sem firmar qualquer certeza quanto a danos, o ministro Alexandre de Moraes impôs uma espécie de “censura prévia” aos atos presidenciais, mecanismo estranho ao sistema presidencialista, ao Estado de Direito e à nossa ordem constitucional.
Em face da Constituição, que deve ser sempre examinada de forma sistêmica, nenhum princípio tem valor absoluto, devendo ser sopesado em relação aos demais, a fim de se definir qual tem maior relevância, no caso concreto. Também é entendimento pacífico da doutrina e da jurisprudência que todos os atos administrativos estão sujeitos à revisão pelo Judiciário, se houver violação à lei ou a preceitos constitucionais.  Contudo, tal controle, inerente ao sistema de freios e contrapesos próprio do funcionamento de um Estado democrático, não pode ser vago e abstrato.
Ora, uma suposição de ofensa a preceitos não pode justificar uma dupla ofensa concreta. Em outras palavras, para colocar a salvo a moralidade e a impessoalidade diante de uma suposta ameaça, em relação a qual ainda não há qualquer substância, o juiz não pode, por antecipação, atropelar a soberania do voto popular e a separação de poderes.
Não é demais salientar que, embora não exista hierarquia ou prevalência em abstrato de um determinado princípio sobre o outro, como referido nos parágrafos anteriores, o nosso constituinte expressou de forma clara a partir de que bases deverá ser estruturado o Estado brasileiro, ao inscrever, logo de início, no parágrafo único do artigo 1º da Carta, o princípio da soberania popular e, no artigo 2º, o da separação dos Poderes. A soberania popular é exercida, entre outros eleitos, pelo presidente da República, chefe do Executivo, Poder independente.
A ordem de disposição desses princípios no corpo do texto constitucional por si só é razão suficiente para que as prerrogativas presidenciais não sejam afastadas sumariamente, sem que um tribunal aprecie os fatos no curso de um processo devidamente instaurado, com amplo e profundo exame das provas.  Por maior que seja o receio de que os atos discricionários do chefe do Executivo possam vir a incorrer em desvio de finalidade, o Judiciário não pode, por precaução, tolher a sua autonomia e independência.
O ativismo judicial tem sido uma tendência crescente no Brasil. O Supremo Tribunal Federal, adotando o conceito de “mutação constitucional”, em diferentes ocasiões nos últimos anos, baixou atos normativos em clara invasão da competência do Congresso. A crise de representatividade política em alguma medida retroalimentou essa tendência. No caso do Executivo, a disposição do Presidente da República para o confronto e a sua indisfarçável aposta na polarização, com a demonização da Justiça e da classe política, contribuem para que essa judicialização se acentue.
Porém, se o que se pretende é a estabilidade institucional – e acredito que esse seja um anseio da maioria dos brasileiros -, o primeiro passo é a segurança jurídica, o que depende do respeito à Constituição. No que a Constituição estiver defasada, tendo em vista as demandas da sociedade, sobretudo nos campos econômico e dos costumes, há sempre a possibilidade de reformas, por meio do regular processo legislativo. O que não se pode é, por prevenção, criar atalhos ilegítimos, transformando o nosso Presidencialismo em um Judicialismo anômalo, de imprevisíveis consequências. Nem crises políticas podem servir de desculpa para essa nova modalidade de mutação.

Por Nilson Mello