quarta-feira, 1 de dezembro de 2021

Pandemia e desenvolvimento

Das novas cepas aos investimentos



O surgimento da variante Ômicron, condicionando a volta de medidas restritivas em vários países, em especial na Europa, gerou na última semana incertezas quanto a uma recuperação sustentável da economia global nos próximos meses. As dúvidas aumentam em função da desaceleração da atividade na China, locomotiva do comércio internacional, nosso grande demandador de commodities. Ainda é difícil estabelecer o alcance e a duração das novas diretrizes sanitárias e, consequentemente, prever o real impacto sobre a atividade econômica no Brasil e no Mundo.

A Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), contudo, assumindo que a recuperação mundial perderá ímpeto, reviu a previsão de crescimento do PIB do Brasil em 2021, de 5,2% para 5%, assim como o fez em relação a outras economias. A OCDE já errou antes e a torcida é para que esteja novamente equivocada neste momento em que os dados do fluxo comercial revelam recuperação.

O comércio global deve atingir a marca de US$ 28 trilhões este ano, um aumento de 11% em relação aos níveis verificados antes da pandemia, de acordo com previsão da Agência das Nações Unidas para o Comércio e o Desenvolvimento (Uncatad). Em relação ao depressivo ano de 2020, o aumento foi de 23%, ou de US$ 5,2 trilhões em valor. Com pequena inserção internacional, se considerado o tamanho de sua economia, o Brasil também deverá alcançar um crescimento de 11% em suas trocas internacionais (exportações e importações) este ano em relação a 2019, aponta a agência.  

Em paralelo aos números e à luz da Teoria da Evolução, o que a Ciência pode nos dizer em relação à Covid-19 é que novas cepas tendem a ser mais contagiosas, porém, menos letais (o que vale para qualquer virose), tendo em vista a própria necessidade de sobrevivência do vírus invasor, cujo sucesso depende da sobrevivência do hospedeiro.

Convém lembrar que o desenvolvimento de vacinas - algo indispensável e prioritário - em meio a uma pandemia acaba potencializando variantes mais resistentes, razão pela qual cientistas salientam a importância de manutenção de ações preventivas (distanciamento, máscaras etc), bem como a adoção de outras estratégias de combate à doença, em especial o desenvolvimento de antivirais para o tratamento dos casos menos graves, gerados pelas novas cepas.

Por outro lado, se a vacinação foi decisiva na contenção da pandemia, a imunização desigual entre países e continentes propiciou, igualmente, o desenvolvimento de variantes. Na África, como um todo, apenas 10% das pessoas estão vacinadas, sendo que, em algumas regiões, menos de 1% da população foi imunizada, estatísticas que escancaram não apenas as disparidades econômicas e sociais, como o fracasso das nações ricas (e da própria OMS/ONU) em estabelecer uma estratégia global e solidária para o enfrentamento da Covid-19.

O Brasil, onde 80% da população receberam ao menos uma dose e mais de 60% estão plenamente vacinados, registrou esta semana dois casos da Ômicron, com outros seis sob suspeita. A nova cepa chega em meio a dados relativamente mais positivos sobre o emprego e o déficit público. A boa notícia sobre o emprego é que há mais gente trabalhando no país, justamente como resultado da melhoria dos indicadores da pandemia, em função do avanço da vacinação. 

De acordo com o IBGE (PNAD/Contínua), a taxa de desemprego recuou de 14,2% para 12,6% no segundo trimestre, com nítida melhora das vagas formais, embora ainda haja 13,5 milhões de desempregados e 30 milhões de trabalhadores subutilizados. A recuperação foi relativamente rápida, sobretudo se considerado que os dados pré-pandemia, relativos e emprego, já não eram bons. Mesmo com o aumento das vagas, contudo, a renda mínima do brasileiro sofreu queda de 11,1%, como consequência da estagnação econômica e do aumento da inflação. Há mais gente trabalhando, mas sem melhora da massa salarial.

Nunca é demais ressaltar que, em relação ao mercado de trabalho, o Brasil enfrenta, a par de questões conjunturais (exemplo: pandemia), obstáculos de ordem estrutural, representados pelo ainda alto custo emprego (os altos encargos) e o excesso de burocracia, apesar de reformas paliativas e pontuais recentes, bem como pela baixa capacitação profissional, decorrente de um sistema de ensino deficiente e distante dos desafios econômicos. Esses fatores ajudam a explicar uma alta taxa de informalidade, de 40% da massa de trabalhadores (IBGE).

A análise deve ainda considerar que o Brasil teve, entre 2011 e 2020, a pior década para a economia em 120 anos (FGV), crescendo apenas 0,3% no período. No ano passado, por força da pandemia, o PIB brasileiro sofreu queda de 4,1%. Um recuo forte, mas ainda assim menor do que o anteriormente esperado e, nominalmente, desempenho melhor do que a maioria dos países com relevância econômica, entre os quais Espanha (-11%), Reino Unido (-9,9%), Itália (-8,8%), França (-8,1%), Alemanha (-5,3%), Japão (-4,8%).

Os dados relativos às contas públicas refletem igualmente o impacto da pandemia no ano passado e uma melhora este ano, apesar das incertezas em relação a uma efetiva ancoragem fiscal no orçamento de 2022, submetido a intenso debate no Congresso. O Banco Central informou esta semana que o setor público em conjunto, que inclui governo federal, estados, municípios e estatais, obteve superávit primário (resultado desconsiderando o pagamento de juros) de R$ 35,39 bilhões em outubro, contra R$ 2,9 bilhões no mesmo mês no ano passado.

Esse foi o melhor resultado para outubro desde 2016, graças à maior arrecadação tributária registrada em cinco anos para o período – o que também revela melhora da atividade econômica. Nos 12 meses contados até outubro, porém, o resultado continua amplamente negativo, com déficit nominal de R$ 398,7 bilhões, correspondendo a 4,72% do PIB, lembrando que no auge da pandemia, o déficit chegou a ser de R$ 703 bilhões (BC).

A exemplo dos Estados Unidos e da Zona do Euro, o Brasil enfrenta um “surto” inflacionário, o que pode determinar a manutenção de taxas de juros mais altas, dificultando não apenas a retomada da economia e como agravando a situação das consta públicas. Essa conjuntura, aliada às incertezas quanto à possibilidade de novas ondas de Covid-19, contribui para turvar o horizonte nesta reta final de ano.

Apesar de tudo, de um lado, o fato de a economia brasileira e mundial ter revelado mais resiliência do que se esperava nesta crise e, de outro, a certeza de que a Ciência está cada vez mais preparada para combater a pandemia ainda deixam margem para otimismo. Isso talvez explique por que as expectativas de investimentos por parte do mercado permanecem elevadas. Somente no setor portuário, esperam-se aportes totalizando R$ 16 bilhões com a privatização das Companhias Docas e de terminais isolados. Em saneamento, outros R$ 8 bilhões em investimentos são aguardados, como resultado do novo marco legal setorial. Não há saída: é continuar trabalhando.  

Por Nilson Mello

 

 

 

 

quinta-feira, 21 de outubro de 2021

Conjuntura

 

Da CPI da Covid à logística, da energia e do clima à comunicação


            No momento em que o mundo caminha para o controle da Covid-19, graças à imunização massiva, questões logísticas relevantes desafiam estrategistas, porém, perdem importância relativa face a problemas energéticos e climáticos críticos, que exigem não apenas enfrentamento urgente e imediato, como ações perenes, de longo prazo. No cenário interno, um ambiente político carregado continua a turvar o horizonte, dificultando os prognósticos.

No que toca a pandemia, é oportuno lembrar que a população mundial totalmente vacinada chegou, em outubro, a 2,86 bilhões de pessoas (36,6% do total), sendo que 6,7 bilhões de doses foram administradas, de acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS).  O dado contribui para um maior otimismo em relação à retomada da atividade global, a despeito de uma série de fatores que ainda geram incertezas.

Mesmo no Brasil, onde o início da imunização demorou mais do que seria o razoável – devido a questões burocráticas, mas também por evidente erro político – já é de 106 milhões o número de pessoas totalmente vacinadas (50% da população), com 258 milhões de doses aplicadas, o que faz com que o país seja o quarto que mais vacinou em números absolutos, atrás de China, Índia e Estados Unidos.

            Considerando a melhora das expectativas no mundo, em virtude do avanço da vacinação, é razoável se perguntar o que o governo Bolsonaro esperava ganhar ao adotar um discurso oficial, senão contrário, no mínimo indiferente à imunização em massa. Até aqui, pelo que se viu, o resultado do erro de comunicação – e de condução do problema – foi alimentar uma CPI que tomou muito tempo, aprofundou o desgaste político e aumentou as incertezas para o próprio governo, com prejuízo para a economia.

            Tem-se, hoje, como primeira consequência, a retroalimentação da instabilidade política. Se o presidente livrou-se da acusação de genocida e homicida no relatório final da CPI, por absoluta falta de fundamentação jurídica para tais acusações (afinal, como em todo o mundo o responsável por milhões de mortes seria um vírus letal e aqui um genocida?), não deixou de sofrer graves imputações, com pedido de indiciamento por uma dezena de crimes, entres eles, os de charlatanismo, de infração de medida sanitária e de prevaricação.  

Para um governante com os pés na realidade, algo desmoralizante. Para um país que precisa voltar a crescer, um motivo a mais de preocupação, sobretudo considerando-se a repercussão negativa no exterior, lembrando que, entre as outras mais de 60 pessoas cujo indiciamento será pedido, há integrantes do primeiro escalão do governo, entre eles o ministro da Defesa.

Grau de confiança

As chances de que um impeachment, como resultado da CPI, possa de fato tirar Bolsonaro do cargo continuam a ser reduzidas, devido ao pouco tempo que falta para o fim do mandato, combinado à morosidade inerente a esse tipo processo e, também, é preciso reconhecer, ao apoio político de que o presidente desfruta de parcela significativa do eleitorado, como provam as manifestações a seu favor – o que tem direta influência no Congresso.

Se o objetivo não era o afastamento imediato, qual foi o cálculo dos articuladores da CPI?  A preparação do terreno para as eleições do ano que vem? A reflexão é pertinente porque, ainda que se assuma que uma CPI em torno da pandemia era moralmente impositiva, para apurar responsabilidades, na prática, o país já saiu perdendo.

A recuperação da atividade econômica requer um ambiente de estabilidade política. A palavra chave é previsibilidade. Este ambiente pressupõe, por parte de quem tem o poder de tomar decisões, uma estratégia de comunicação não apenas eficiente, mas responsável. O objetivo deve ser sempre o de aumentar o grau de confiança de investidores, agentes econômicos e da sociedade de forma geral. Quando a comunicação não é minimamente responsável e eficiente, novas crises são gestadas, e prolongam-se as existentes.

Contêineres

A doutrina econômica é pródiga em demonstrar “silogismos” entre, por exemplo, instabilidade política, pressões sobre o câmbio e inflação. O que estamos vivendo hoje no Brasil não é mera coincidência. Este é o problema de fundo que merece, portanto, atenção muito maior do que os obstáculos logísticos pontuais, referidos de início. Até porque, o maior desses obstáculos começa a ser superado. A falta de contêineres para a circulação de mercadorias, resultado da repentina retomada da atividade econômica por parte de grandes exportadores de manufaturados, em especial Estados Unidos, Europa e países asiáticos, é progressivamente solucionada à medida que as próprias trocas internacionais vão se intensificando, normalizando o fluxo.

A notícia boa neste sentido é que o transporte marítimo, por onde passam mais de 90% de nosso comércio exterior, não sofreu ruptura durante a pandemia. Rotas não foram suspensas nem navios retirados de serviço pelos armadores de longo curso, o que foi decisivo para as exportações do agronegócio brasileiro e para a manutenção da atividade portuária. Vale dizer que de janeiro a agosto deste ano, foram movimentadas 809,8 milhões de toneladas nos portos nacionais, um avanço de 7,5% em relação ao mesmo período do ano passado, de acordo com a Antaq. De janeiro a julho, houve alta de 6% nas exportações e de 30% nas importações.

            Muito mais do que com contêineres, a preocupação global volta-se para a crise energética e a demanda por alimentos, questões interligadas e com impacto direto sobre o clima. Desde maio, houve aumento de 95% nos preços internacionais de petróleo, gás e carvão, em função do retorno repentino da demanda. Mesmo que os maiores exportadores aumentem a produção, o que vai ocorrer nos próximos meses, combustíveis fósseis, que são fontes não renováveis de energia, com impacto negativo sobre o ambiente, deixaram de ser uma opção no longo prazo, o que faz com que o mundo caminhe cada vez mais para a adoção de fontes alternativas sustentáveis.

Energia limpa e COP-26

Praticamente 50% da energia produzida no Brasil são provenientes de fontes renováveis, geradas principalmente a partir de usinas hidrelétricas, mas também provenientes de parques fotovoltaicos (captação da luz solar) e eólicos, cuja participação na matriz energética tem crescido de forma significativa nos últimos anos. O percentual de geração de energia sustentável no país (exatos 48% da produção) é três vezes superior à média global, o que, em tese, colocaria o país em lugar de destaque nas grandes discussões acerca da preservação do ambiente e do enfrentamento das mudanças climáticas.

            A situação privilegiada em relação à geração “limpa” de energia faz com que seja factível o compromisso que o país pretende assumir na COP-26 – a 26ª Conferência das Nações Unidas sobre Mudança Climática, a ser realizada de 31 de outubro a 12 de novembro, em Glasgow, na Escócia – de alcançar a neutralidade climática até 2050.  Consolidada no Acordo de Paris em 2015, do qual cerca de 200 nações foram signatárias, a neutralidade é, na verdade, uma meta compensatória que deve ser assumida por cada país em relação às emissões que agravam o efeito estufa, causado por fontes “sujas”, os combustíveis fósseis.  

Em linhas gerais, para cada tonelada de CO2 emitida, uma tonelada deve ser compensada com medida de proteção climática, como a geração de energia sustentável ou programas de reflorestamento. Outro compromisso a ser apresentado pelo Brasil na COP-26 é o de desmatamento zero até 2030. O maior aliado que o Brasil pode ter na luta contra o desmatamento é o seu agronegócio, hoje responsável por 26% do PIB, motor do comércio exterior e vetor fundamental do crescimento econômico.

Graças ao desenvolvimento da tecnologia aplicada à agropecuária nas últimas quatro décadas, o Brasil se tornou o grande fornecedor de alimentos do mundo. Um aspecto importante é que apenas cerca de 8% do território nacional são de área plantada, o que demonstra a alta produtividade do setor. O problema é que interesses comerciais contrários à agropecuária brasileira, justamente devido à sua produtividade, associam o seu desenvolvimento ao aumento do desmatamento, em particular na Amazônia.

A única forma de o Brasil combater campanhas internacionais contra o agronegócio é demonstrar um firme compromisso com a defesa do ambiente. Isso passa obviamente pela questão da comunicação eficiente, mas, sobretudo, pela adoção de ações e políticas efetivas de preservação de nossas florestas. A Amazônia legal perdeu 10.476 km2 de florestas entre agosto e julho, meses em que anualmente se faz a aferição, o que representa uma área 57% a maior do que o mesmo período do ano passado e o pior resultado dos últimos dez anos, de acordo com dados do Imazon. No ano passado, os dados oficiais de desmatamento, medidos pelo Inpe, já haviam sido os piores em 12 anos.

O Brasil até é capaz de alcançar a meta ousada de desmatamento ilegal zero até 2030, mas para tanto o governo precisa começar logo a fazer o seu dever de casa. Por enquanto, pelos dados disponíveis, a promessa carece de credibilidade. Aliás, para as três frentes – energia, segurança alimentar e ambiente –, todas de caráter crítico, o país tem respostas a dar ao mundo, desde que, é claro, assuma, como dito, uma comunicação responsável – e adote práticas que venham a sustentar o discurso oficial. Como se vê, há muito que melhorar.

Por Nilson Mello

sexta-feira, 23 de julho de 2021

Marcos legais

 


PIB, ferrovias e o Reporto

(obs: artigo publicado simultaneamente com a revista Portos & Navios)

A preocupação de governos, deste e de anteriores, em ampliar os investimentos em infraestrutura logística e de transportes, por meio de privatizações e de novos marcos legais, é plenamente justificável considerando o grande potencial de crescimento desses setores, bem como a necessidade de retomada consistente e sustentável da economia no longo prazo. Investir em infraestrutura significa prevenir gargalos que aumentam custos e, no sentido inverso, reduzem a eficiência e a competitividade.

Tendo em vista as evidentes limitações orçamentárias que o país ainda enfrenta, em função da questão fiscal, é do setor privado que cada vez mais virão os investimentos necessários ao desenvolvimento. Um dado estimulante é que a taxa de investimento em máquinas, equipamentos e obras, que em média situava-se entre 16% desde 2015 e não ultrapassava os 18% desde 2000, em maio deste ano chegou a 22,1%, segundo a FGV. A economia dá claros sinais de revitalização: a previsão de avanço do PIB em 2021, de acordo com o mercado, passou a ser de 5,26%, contra 4,85% de poucas semanas atrás.

Os setores de portos e ferrovias têm clara participação no melhor desempenho dos investimentos. Nos portos, por onde passam mais de 95% de nossas exortações, desde 2019 foram concedidas 96 autorizações para terminais privados, que somam R$ 8,9 bilhões em contratos. Somente em 11 contratos firmados nos últimos dois anos foi garantido mais de R$ 1,4 bilhão em investimentos em terminais portuários, em oito estados.

Os investimentos no setor ganharão um impulso ainda maior com as desestatizações da Companhia Docas do Espírito Santo (Codesa), programado para o último trimestre do ano, e do Porto de Santos, em 2022. Somente para a Codesa, cujo modelo de privatização foi publicado no Diário Oficial da União no mês passado, espera-se mais R$ 1 bilhão em investimentos.

As ferroviais têm sido outro capítulo importante. Desde 2019, já foram contratados R$ 31 bilhões em investimentos, parte deles estruturada em governos anteriores. Vale dizer que os investimentos no setor saltaram de R$ 420 milhões em 1997 para R$ 6,9 bilhões, em 2020, um avanço de 1.400% no período, tendo alcançado o pico em 2015 (R$ 7,7 bilhões), de acordo com a Associação Nacional dos Transportadores Ferroviários (ANTF).

No período, a movimentação de carga geral pela malha ferroviária passou de 26,9 toneladas por quilômetro útil (TKU) para 110,2 TKU, uma variação de mais de 300%. Um fator que torna o setor potencialmente mais atrativo aos investimentos é a sua pequena participação na matriz de transportes, comparativamente a outros países.

            Dos seis maiores países em extensão territorial, o Brasil é o que mais emprega o modal rodoviário no transporte de carga e o segundo que menos emprega as ferrovias. Em regra, comparativamente aos modais ferroviário e aquaviário, o transporte por rodovias é mais poluente e menos seguro. Não havendo subsídio ao combustível, será invariavelmente também o mais caro.

Maior país do mundo, a Rússia utiliza a malha ferroviária para o transporte de 81% de sua carga. Apenas 8% desse transporte são feitos por rodovia. No Brasil, 68% da carga são transportados por rodovias, enquanto apenas 21,5% seguem por ferrovias (ANTF), cabendo o restante aos modais aquaviário e, em menor participação, aéreo.

Na Austrália e no Canadá, também de dimensões continentais, as ferrovias têm igualmente grande importância estratégica, respondendo por 55% e 34% do transporte de carga, respectivamente, contra 27% e 19% do modal rodoviário. Mesmo nos EUA, país rodoviário por excelência, as rodovias têm uma participação no transporte de cargas (43% de sua matriz) menor do que no Brasil, enquanto as ferrovias respondem 27% desse tipo de movimento.

Entre as seis maiores nações em extensão territorial, apenas a China transporta menos carga por trem (apenas 14% da matriz) do que o Brasil, dando ênfase ao modal aquaviário (51% da matriz, a maior entre os seis gigantes) e também às rodovias (35%). Cabe dizer que somos também, dentre os seis, o país que menos utiliza o modal aquaviário (cerca de 10%).

Portanto, propostas que venham a estimular uma maior participação desses dois modais na matriz de transportes nacionais são sempre bem-vindas. No caso das ferrovias, o governo pretende estimular, dentro do novo marco legal, o regime de autorizações, mais ágil do que o de concessões. A ideia pode funcionar. A dúvida é se o melhor caminho é, de fato, por meio de uma Medida Provisória, como anunciado esta semana, ou concentrando esforços para que o Projeto de Lei do Senado que trata da matéria (PLS 261/2018) ganhe prioridade na pauta.

Em tese, um Projeto de Lei amplia o debate, permitindo o aprimoramento do novo marco. Até porque, no caso, o PLS 261 já foi assimilado pelos parlamentares. A premissa vale para todos os modais, bem como para o setor de infraestrutura. Em meio a essa discussão, entre projeto de lei ou MP, nunca é demais lembrar que, muitas vezes, uma providência pontual tem mais efeito para os investimentos no curto prazo do que a elaboração, trâmite e aprovação de uma complexa legislação.

E esse é justamente o caso do Reporto, o regime especial de tributação para a importação de equipamentos para ferroviais e portos, que aguarda mobilização de Executivo e parlamentares para a sua prorrogação, antes de qualquer novo marco. Esse, sim, pela urgência e por já ser matéria conhecida, poderia vir por meio de MP específica. Afinal, sem o Reporto, os investimentos em portos e ferroviais ficam comprometidos, já em 2021. Fiquemos todos atentos à questão.

Por Nilson Mello*

segunda-feira, 28 de junho de 2021

Incertezas

 

(Obs: este artigo foi publicado em conjunto com a Agência iNFRA, de Brasília)

Do clima ao ponderável, os desafios da infraestrutura

De um lado, no clima, e de outro, paradoxalmente, em órgãos de controle, residem hoje as incertezas dos setores produtivo e de infraestrutura. Há também expectativas quanto à atividade legislativa e a medidas a serem confirmadas pelo Executivo que contribuiriam para atrair investimentos. Nessas duas frentes, o debate transparente, próprio do regime democrático, é indispensável para o aprimoramento das políticas públicas. O pressuposto deste processo é a crítica construtiva.

A crise hídrica e, com ela, a possibilidade de uma quebra da safra é o fator climático imponderável que preocupa o agronegócio, o carro-chefe da economia brasileira há alguns anos. Em função das estiagens no Centro-Sul, já se pode prever uma safra de milho 3,9% inferior à de 2020, ainda que a área plantada tenha sido 6% maior. Outras culturas importantes, como as de café, laranja e cana, foram igualmente afetadas. A previsão do avanço do PIB agropecuário em 2,6% este ano ainda está mantida, mas o risco é grande.

 Não se pode disciplinar o clima (fator imponderável), porém, é possível mitigar os seus efeitos, sobretudo se ações preventivas não foram tomadas a tempo. O Ministério das Minas e Energia garantiu na última semana que não trabalha com a possibilidade de racionamento de energia, e que antecipou a entrada em operação de termelétricas, a fim de suprir a queda de geração de energia hidrelétrica. Também está acelerando a construção de novas usinas e de linhas de transmissão.

Deixou, contudo, no ar a possibilidade de restrições ao uso da água no campo – uma medida extrema e, pelo que se sabe, sem precedentes. Tendo em vista a importância do agronegócio para a economia, essa seria a hipótese a ser prontamente descartada, até para evitar o “terrorismo midiático” e os movimentos especulativos a ele associados.

Acelerar as medidas mitigatórias, em paralelo a um discurso tranquilizador, ajuda a dissipar as expectativas negativas.  Desnecessário lembrar a estreita relação da atividade agropecuária com as operações logísticas. Graças, sobretudo, ao agronegócio, o setor portuário tem demonstrado grande resiliência desde o início da pandemia. No primeiro quadrimestre, voltou a apresentar crescimento: de 9,7%, em relação ao mesmo período do ano passado, com um total de 380,5 milhões de toneladas movimentadas.

Para tornar ainda mais claro o horizonte da logística e dos transportes, há providências práticas, de curto prazo, a serem tomadas, tanto pelo Executivo quanto pelo Legislativo, e, de preferência, em cooperação entre os dois Poderes. É o caso do Projeto de Lei 4.199/2020, de estímulo à cabotagem, que pode ser aprimorado com o apoio do próprio governo e de sua base aliada.

O BR do Mar, como foi apelidado, promove uma ampla abertura do transporte marítimo entre os portos nacionais, algo sem paralelo no mundo. Da forma como está o texto, contudo, não garante o efetivo aumento da participação deste modal na matriz de transportes, pois questões cruciais – como o preço do combustível mais caro em relação ao diesel rodoviário, o alto custo das tripulações brasileiras, devido aos excessivos encargos, ou o excesso de burocracia – não foram decisivamente enfrentadas.

Ao mesmo tempo, o projeto, na origem, ignorou a possibilidade de se estimular a retomada da indústria naval brasileira, que chegou a ser a segunda maior do mundo na década de 1970. Uma vez que o PL perdeu a urgência e está parado no Senado, abre-se a oportunidade para que ajustes sejam feitos.

Entre as mudanças recomendáveis está a emenda de número 43, de autoria do senador Carlos Portinho (PL/RJ). Ela altera o art. 5º do Projeto de Lei 4.199, para que seja dada prioridade, no afretamento para a cabotagem, a embarcações construídas no Brasil, desde que ofertadas nas mesmas condições técnicas e financeiras das produzidas no exterior.

A emenda teve fundamento em nota técnica da Sociedade Brasileira de Engenharia Naval (Sobena), num bom exemplo de interlocução produtiva entre sociedade e Congresso. Está também em consonância com a ideia de que ambos os setores – o de transporte marítimo e o de indústria naval – são indissociáveis, e por isso devem se desenvolver em ciclos de reciprocidade, a exemplo do que ocorre com a agropecuária e o setor de implementos agrícolas.

O apoio do governo ao aprimoramento do “seu” BR do Mar deve ser acompanhado de outras providências urgentes para a infraestrutura. A imediata prorrogação do Reporto, regime especial que desonera a importação de equipamentos para investimentos em portos e ferrovias é fundamental para viabilizar novos projetos, sobretudo no momento em que esses dois setores inauguram uma nova e promissora etapa de privatizações. Sem o regime, esses equipamentos se tornam até 50% mais caros, inviabilizando muitos projetos.

Instituído em 2004, prorrogado a cada cinco anos, o Reporto expirou em dezembro passado e ficou sem rubrica no orçamento de 2021, devido à inércia do governo. Chegou a ser “contrabandeado” em uma das muitas emendas do BR do Mar – onde é um “estranho no ninho” – e prometido para uma das futuras etapas da Reforma Tributária. Contudo, a urgência dos investimentos em portos e ferrovias recomenda a sua imediata prorrogação. Até porque dessa medida depende, em grande parte, o sucesso das privatizações nesses dois setores.

O secretário nacional de Portos e Transportes Aquaviários, Diogo Piloni, tem reiterado que os contratos com os terminais arrendados serão respeitados no processo de desestatização das Companhias Docas. É um discurso responsável, em prol dos investimentos e das privatizações, pois fortalece a ideia de segurança jurídica. Mas precisa ser confirmado por ações concretas do governo, como a prorrogação do Reporto. O que é ponderável deve ser resolvido pelo Executivo e Legislativo, pois de imponderável, já basta o clima, nem sempre previsível e favorável à agricultura ou à geração de energia.

Lamentavelmente, imponderáveis são também as decisões surpreendentes emanadas pelos órgãos de controle – justamente as instâncias que deveriam contribuir para a segurança jurídica. Insere-se nesse rol recente decisão do Tribunal de Contas da União (TCU) que determinou, contrariamente à previsibilidade, a prorrogação do arrendamento de terminal no Porto de Santos cujo contrato já havia expirado. Agiu o TCU na contramão do planejamento feito pelos gestores portuários e em flagrante violação do direito de escolha da Administração Pública.

Se o assunto do momento é o clima, está aí uma decisão que turva o horizonte, afastando os investimentos de que o país tanto precisa. Para essas questões, interlocução e crítica construtiva também podem ajudar.

Por Nilson Mello

terça-feira, 8 de junho de 2021

Infraestrutura

 

Progresso nos tribunais e nas privatizações

(Obs: este artigo foi publicado originariamente na Portos & Navios em 04 de maio)

Em meio a um significativo avanço dos processos de licitação na área de infraestrutura no decorrer do mês de abril, uma importante mudança de entendimento do Judiciário quanto à contratação de trabalhadores avulsos – aqueles sem vínculo empregatício – pelos terminais arrendados talvez não tenha merecido a devida atenção, mas deve igualmente contribuir para o equilíbrio da concorrência e o consequente desenvolvimento do setor.

Em recente julgamento, o Tribunal Superior do Trabalho (TST) decidiu que, existindo previsão em norma coletiva autônoma no sentido de regular a contratação de mão de obra portuária avulsa por intermediação direta do respectivo sindicato profissional, esse instrumento dispensará a intervenção do Órgão Gestor de Mão de Obra (OGMO) nas relações entre empregadores e trabalhadores.

A decisão alude ao parágrafo único do artigo 32 da Lei 12.815 de 2013 (também conhecida como nova Lei dos Portos) e está em linha com a modernização do setor, uma vez que o OGMO é “uma entidade civil, sem fins lucrativos, de interesse público”, instituído pelo antigo marco legal (Lei 8.630, de 1993). A ideia era livrar o setor do peleguismo sindical, mas os OGMOs acabaram se revelando estruturas anacrônicas, extremamente burocráticas e de alto custo, além de geradora de iniquidade, na medida em que sua intervenção é obrigatória para os terminais arrendados (aqueles situados dentro dos portos públicos), mas não para as instalações eminentemente privadas – os Terminais de Uso Privado (TUPs).

Não é demais lembrar que, por ocasião das discussões em torno da votação da Lei 12.815/2013, chegou-se a pleitear a obrigatoriedade do OGMO também para os TUPs, a fim de que não se estabelecesse um desequilíbrio concorrencial desses em relação aos terminais arrendados. O reconhecimento de que haveria uma vantagem competitiva para os TUPs no que diz respeito à mão de obra era evidente. A razão é óbvia. Sem a intermediação de um órgão de caráter paraestatal como os OGMOs, os terminais privados têm liberdade para contratar, treinar e gerir sua mão de obra de acordo com os seus próprios parâmetros e critérios de eficiência e produtividade, sem interferência de terceiros.

Infelizmente, na época de elaboração da nova lei chegou-se a discutir a equalização da concorrência pela distribuição equitativa do “ônus” – representado pela obrigatoriedade do OGMO tanto para os terminais arrendados quanto para os TUPs – e não pela sua eliminação para ambos, o que significaria redução de custos e ganhos de eficiência uniformes. Um raciocínio tortuoso que explica as jabuticabas normativas e os “puxadinhos jurídicos” que de forma recorrente minam o ambiente empresarial brasileiro.

Por fim, optou-se por um hibridismo, também gerador de insegurança jurídica e disputas judiciais, típico da produção legislativa brasileira. Assim, enquanto o caput do artigo 32 da Lei 12.815/2013 dispõe que os operadores portuários nos portos organizados (públicos) devem constituir um órgão gestor da mão de obra, o seu parágrafo único consagra os contratos entre capital e trabalho ao estabelecer que esses terão a prevalência sobre o órgão. Contudo, o hibridismo fez com que acordos firmados sem a intermediação do OGMO fossem derrubados pelos Tribunais Regionais do Trabalho (TRTs), o que tende a acabar agora com o novo posicionamento do Tribunal Superior do Trabalho (TST). Mas o caminho para a pacificação da questão ainda é longo.

Uniformização de parâmetros concorrenciais, incluindo regimes de emprego da mão de obra, nada tem de trivial, sobretudo quando se está prestes a estabelecer um modelo de privatização portuário totalmente novo, com a licitação não apenas de terminais arrendados dentro dos portos públicos ou autorizações para instalações eminentemente privadas, mas – muito além disso – a privatização de todo o complexo público portuário representado pelas Companhias Docas em cada estado.

Na prática, o que o governo está colocando em marcha com a privatização das Companhias Docas é o fim do modelo que prevaleceu até hoje no Brasil, de landlord port, ou seja, aquele em que o Poder Público é responsável pela administração da infraestrutura e áreas comuns, cabendo ao setor privado os investimentos na superestrutura e a operação em si. A partir de agora, o que se pretende é que o Estado deixe de ser um provedor de infraestrutura e de serviços e concentre-se no papel de regulador e “arquiteto” das diretrizes setoriais de desenvolvimento.

Este novo modelo pode ser denominado de private landlord port, e teoricamente poderá contribuir para equalizar as condições de concorrência entre os terminais arrendados e os Terminais de Uso Privado (TUPs), eliminando a distinção de regimes jurídicos entre eles. Mas para tanto as regras devem estar muito bem definidas – e esclarecidas.

Um desafio no que toca à equidade de concorrência será estabelecer normas para os participantes dos certames, tendo em vista potenciais conflitos de interesses entre operadoras de terminais já arrendados e grupos que pretendem assumir a concessão das Companhias Docas, ou mesmo entre grupos que controlam TUPs e pretendem participar das novas licitações. O projeto de desestatização da Companhia Docas do Espírito Santo (Codesa), primeiro da fila, deve ser enviado para a análise do Tribunal de Contas da União este mês de maio, e sua modelagem servirá de teste.

Pelo que foi divulgado até aqui, uma empresa que já opera terminal poderá ter 15% de participação de forma isolada e 50% se estiver em consórcio, mas esses percentuais poderão variar para os outros complexos. Com a privatização da Codesa, o governo prevê investimentos superiores a R$ 1,6 bilhão ao longo dos 35 anos de concessão. Na sequência, virão os processos de licitação da Companhia Docas da Bahia (Codeba), Terminal de São Sebastião (SP), Porto de Itajaí (SC) e Porto de Santos.

Como se vê, são significativas as transformações em curso na área de infraestrutura do país neste momento, com vultosos aportes de recursos sendo confirmados, a despeito da crise global provocada pela pandemia de Covid-19. Abril foi um marco, com leilões de infraestrutura que contrataram mais de R$ 48 bilhões em investimentos para os próximos 35 anos. Exemplifica o sucesso do mês a privatização da Companhia Estadual de Águas e Esgotos do Rio de Janeiro (CEDAE), que rendeu cerca de R$ 22,5 bilhões aos cofres públicos, além do compromisso de investimentos da ordem de R$ 27 bilhões nos próximos 35 anos e de saneamento universal até 2033 para as regiões dos três blocos arrematados.

Houve ainda o leilão de 22 aeroportos, rendendo R$ 3,3 bilhões ao governo, a privatização de cinco terminais portuários e de um trecho da Ferrovia Oeste-Leste (Fiol), que liga o Porto de Ilhéus, na Bahia, à Ferrovia Norte-Sul, no Centro-Oeste. Outros 50 empreendimentos serão licitados em 2021, com previsão de R$ 140 bilhões em arrecadação e R$ 250 bilhões em investimentos nos próximos anos. Progressos nas privatizações e nos tribunais. Que continue assim.

Por Nilson Mello

quarta-feira, 24 de março de 2021

Portos e Transporte Marítimo

 

Entre vacinas e resoluções normativas


(Obs: artigo publicado simultaneamente com a revista Portos & Navios)

Em tempos de incertezas, convém repassar os indicadores positivos e ter foco no trabalho a ser feito.  A prévia do Produto Interno Bruto (PIB) de janeiro aponta para um crescimento de 1,04%, um patamar que equivale ao período pré-Covid. É o nono mês consecutivo de alta, após a forte retração entre março e abril do ano passado. De dezembro para janeiro, o índice de atividade calculado pelo Banco Central passou de 138,86 para 140,30 pontos, dentro da série dessazonalizada. Foi o melhor desempenho registrado desde maio de 2015 (141,05 pontos). Há um ano, em fevereiro de 2020, antes do início da pandemia, o indicador estava em 140,02 pontos.

Os dados divulgados na última semana, evidentemente, ainda não levam em conta os possíveis impactos (negativos) com o recrudescimento da pandemia no Brasil no último mês. Contudo, neste momento, não deixam de ser um alento, sobretudo se apostarmos que a ampliação da campanha de imunização, a partir da segunda quinzena de março, com a produção em massa de vacinas no país (como anunciado pela Fiocruz e outras instituições), contribuirá decisivamente para a retirada paulatina das medidas restritivas e, consequentemente, para o progressivo aumento da atividade econômica.

A cadeia logística vê um impacto menor com a nova onda de coronavírus, conforme revelou recente reportagem do jornal Valor Econômico. E isso se deve ao aprendizado feito ao longo do ano passado, com as empresas, em particular armadores, se planejando para enfrentar o problema de forma cíclica. O segmento de cabotagem divulgou (Portos & Navios) que foi pouco afetado pelo ano de pandemia.

Cabe lembrar que o volume de cargas nos portos brasileiros avançou 4,2% em 2020, de acordo com a Agência Nacional de Transportes Aquaviários (Antaq), com movimentação de 1,151 bilhões de toneladas, o que comprova o quanto os setores portuário e de transporte marítimo são essenciais e estratégicos para a economia, mantendo intensa atividade mesmo em meio a uma crise global.

            Diante do que ainda é imponderável, ou seja, a imunização massiva, porque ainda demandará certo tempo, o foco de todos deve estar em medidas que possam trazer mais transparência e segurança jurídica aos setores de infraestrutura logística. No que tange aos terminais portuários, merece atenção os debates em curso sobre a defesa da liberdade de preços dentro de um ambiente de aberta competição como é hoje.

Em ambiente de livre concorrência, pressuposto do próprio desenvolvimento do setor, com evidentes vantagens para os usuários, o ente regulador não deve impor preços, sob o risco de inviabilizar economicamente atividades que, como vimos acima, são imprescindíveis. Seu papel deve ser o de zelar para que haja transparência nos contratos, com ampla participação, o que significa que as regras (resoluções) devem ser claras e amparadas em critérios eminentemente técnicos, livres de dogmas. Infelizmente, nem sempre é o que acontece.

No caso específico do transporte marítimo, reveste-se de grande importância o processo de Avaliação de Impacto Regulatório (AIR) a que está sendo submetida a Resolução Normativa (RN) nº 18/2017 da Antaq. A norma mereceria um artigo dedicado a ela. Neste curto espaço, o que se pode dizer é que, genérica e vaga, fruto de uma visão ideologizada do setor e, portanto, distante da realidade, a RN 18 trouxe enorme insegurança jurídica com crescente judicialização de questões que eram de entendimento simples e pacífico, se fossem considerados os contratos firmados livremente entre as partes. A revisão de seus pontos controversos, portanto, seria o desejável ao término da AIR.

Em meio ao combate à pandemia, trabalhar firmemente em prol do desenvolvimento de um arcabouço regulatório de melhor qualidade, transparente e pautado em critérios técnicos, é a tarefa que nos cabe. 

Por Nilson Mello

domingo, 28 de fevereiro de 2021

Desafios

 

O dilema capitalista e a PEC Emergencial



         Gerar empregos e rendas suficientes para um contingente crescente de seres humanos sem esgotar os recursos naturais que o meio ambiente nos oferece – e ao mesmo tempo não levar ao esgotamento o próprio indivíduo – é o desafio que o modelo capitalista de produção se impõe neste século, seja nas democracias ocidentais ou nas economias que adotam o chamado “capitalismo de Estado”, como a China.

O retorno a um modelo de produção planificado, estatizante, está fora de questão tendo em vista a sua ineficácia em prover bem-estar e qualidade de vida, além de liberdade, como ficou demonstrado, na prática, ao longo do Século XX. O colapso do Bloco Soviético se deveu às falhas intrínsecas do modelo, não a uma opção ideológica.

Na verdade, não há “socialismo científico”, como queiram seus formuladores, do contrário teria sido nesta direção que a humanidade, dialética e irremediavelmente, caminharia – e evidentemente não foi o que aconteceu. Tampouco teriam sido necessárias revoluções sangrentas para a sua implantação. Se fosse científico e irremediável, não seria imposto pela força. 

No final, não foi o capitalismo que sucumbiu em meio às suas próprias contradições – que realmente existem, estão aí e são gritantes -, mas o socialismo. Porém, dentre os impasses do capitalismo está a necessidade de crescimentos econômicos incessantes, em escala global, para prover empregos (e alimentos) para uma massa de seres humanos cujo aumento é exponencial. A dinâmica implica um silogismo dramático que passa pela exigência de níveis de eficiência também cada vez maiores em relação a cada indivíduo, bem como pela incessante exploração dos recursos naturais disponíveis. Até quando?

A atual população mundial, de 7,8 bilhões de pessoas, corresponde a 7% de todos os seres humanos que já viveram, afirma o historiador britânico Niall Farguson*, e a espécie surgiu na Terra há nada menos que 350 mil anos. É muita gente para pouco emprego. Sobretudo se considerarmos as mudanças introduzidas nos últimos 50 anos pela tecnologia no mercado de trabalho, redutoras, em sua maior parte, do emprego em massa, porque substitutivas do homem pela máquina.

A questão, longe de parecer teórica, tem relação direta com o momento que o país e o Mundo enfrentam, agravado pela crise econômica provocada pela pandemia do novo coronavírus. O Brasil tem 32 milhões de trabalhadores subutilizados, informou esta semana o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), sem contar uma massa de 13 milhões de desempregados. Essa “mão de obra desperdiçada”, para usar uma terminologia do próprio órgão, num primeiro momento, continuará precisando de apoio do Estado, representado pelo “auxílio emergencial” ou por programas congêneres. A reativação da economia também depende da mão do Estado. E eis aí a mais evidente contradição do sistema.

Paralelamente, será necessária uma economia mais dinâmica, capaz de gerar mais empregos e renda, o que significa levar adiante reformas, como a Tributária, a fim de desonerar a produção; e, no longo prazo, mas já a partir de agora, investimentos cada vez mais robustos em educação, não apenas para qualificar esse gigantesco contingente de pessoas para um mercado de trabalho mais exigente, como para promover o aumento da conscientização quanto ao controle de natalidade e ao uso racional do ambiente.

O que vale para o Brasil vale para o Mundo. Contudo, no nosso particular, temos medidas prioritárias a serem adotadas no curtíssimo prazo. É o caso da PEC Emergencial, a ser votada esta semana no Senado. Se o auxílio emergencial é imperativo, também é verdade que o benefício não pode ser concedido sem contrapartidas que obriguem União, Estados e municípios a conterem seus gastos, como medidas, por exemplo, que congelem os salários do funcionalismo, ao menos enquanto perdurar a crise. Mas sua aprovação pressupõe um debate transparente que livre o projeto de "armadilhas" que são estranhas às reais necessidade da sociedade neste momento.

A dívida pública brasileira hoje, pressionada pelos gastos emergenciais feitos no ano passado no enfrentamento da Covid-19, alcança R$ 6,6 trilhões, o equivalente a praticamente 90% do PIB. Está bem acima da média dos países emergentes, de 62% do PIB. Dívida elevada significa incertezas quanto à capacidade de pagamento e, em razão disso, juros elevados, que acabam retroalimentando o próprio déficit, além de representar um obstáculo adicional para a retomada do crescimento econômico.

O quadro mostra também o quanto importante é uma Reforma Administrativa que possa levar o setor público a gastar menos com o seu custeio, a fim de poder investir mais em setores essenciais como a educação, da qual depende o nosso futuro.

 

Por Nilson Mello

 

         “Civilização – Ocidente X Oriente”, Ed. Crítica, 2016.

sexta-feira, 19 de fevereiro de 2021

Reforma Tributária

 

Miríade de alíquotas


(Obs: uma versão reduzida deste artigo foi publicada simultaneamente pelo Correio da Manhã)

O custo de conformidade, ou seja, aquilo que as empresas pagam para estar em dia com os impostos, é altíssimo no Brasil. Os estudos sobre a questão não são frequentes, mas sabe-se, por exemplo, que em 2012 a indústria de transformação sozinha desembolsou R$ 24,6 bilhões para pagar tributos – algo próximo a 1% do PIB da época (dados da Fiesp).  Temos uma das maiores cargas tributárias do mundo – a maior entre os países emergentes –, entre 32% e 35% do PIB, dependendo do critério de aferição (*).

O contribuinte trabalha 150 dias por ano para estar em dia com o Fisco. O peso da carga é apenas parte do problema. Nosso sistema é também extremamente confuso: um emaranhado de regras que regulam nada menos que 92 tributos, muitos deles incidindo sobre o mesmo fato gerador, numa miríade de alíquotas, não raro superpostas e com efeito cumulativo. De 1988 para cá foram editadas no país 390 mil normas tributárias, quase duas por hora, considerando apenas os dias úteis.

A complexidade potencializa conflitos fiscais, razão pela qual o litígio tributário no país alcança hoje robustos R$ 3,4 trilhõe (dados do Ministério da Economia). São recursos que ficam retidos, quando poderiam estar sendo usados em investimentos produtivos, gerando empregos e renda – um quadro que deve melhorar com a recente aprovação da Lei que permite a transação tributária (Lei 13.988/2020), mas desde que o problema não seja retroalimentado com a perpetuação de um sistema caótico.

Esses dados justificam a urgência de uma Reforma Tributária. A matéria começará a ser discutida pelo Senado este mês, conforme acordo firmado no Congresso.  A previsão do senador Roberto Rocha, provável relator, é que em abril esteja pronta para ser enviada à Câmara. Se não houver contratempos, a reforma poderá ir à sanção até outubro. O texto que deverá servir de base para o início dos trabalhos é o da PEC-110, originária do próprio Senado. Mas é provável que sugestões contidas na PEC-45, da Câmara, e no Projeto de Lei 3887, do governo, sejam consideradas.

Em comum, esses três projetos fundem tributos, criando um Imposto de Valor Agregado (IVA). Esse tipo de tributo contribui para simplificar o sistema, evitar o efeito em cascata da cumulatividade e reduzir a carga sobre o setor produtivo, o que é positivo. Porém, os três projetos não são, a rigor, uma ampla reforma, e por essa razão devem ser complementados por medidas adicionais, visando, sobretudo, a proteger as camadas de baixa renda. Isso porque os IVAs são, por natureza, tributos regressivos, pois incidem sobre o consumo, ou seja, equiparam os mais pobres aos mais ricos no momento do consumo, o que é injusto.

Neste sentido, cabe sempre lembrar que uma verdadeira reforma tributária, deve necessariamente considerar sete eixos (ou premissas) que são potencialmente conflitantes (ou antitéticos), aí residindo o grande desafio dos debates e trabalhos que os parlamentares deverão empreender. Os sete eixos são: 1. Simplificação do Sistema; 2. Redução da carga sobre o contribuinte; 3. Desoneração da produção, em prol do crescimento econômico; 4. Não-cumulatividade: 5. Manutenção da capacidade financeira do Estado; 6. Fortalecimento do pacto federativo;  e 7. Respeito à progressividade em oposição à regressividade.

Pela análise dessas premissas, percebe-se, por exemplo, que é imperativo desonerar a produção a fim de alavancar o desenvolvimento e com isso gerar mais empregos e renda. Mas essa desoneração do setor produtivo não pode ser feita à custa de um aprofundamento da regressividade. Portanto, serão necessárias medidas compensatórias. Por outro lado, é importante reduzir a carga de tributos (essa, por sinal, uma das principais justificativas para a reforma), mas não a ponto de inviabilizar financeiramente o custeio de uma máquina pública que já enfrenta déficits fiscais recorrentes, o que reforça, também, a necessidade de uma Reforma Administrativa que torne o Estado brasileiro mais enxuto e eficiente.

Um aspecto particularmente perverso da tributação no Brasil é que, apesar da alta carga, sobra pouco dinheiro para o governo investir. A taxa de investimento hoje é de 1,8% do PIB, contra 10% há 40 anos. O papel da Reforma Administrativa é pôr fim a essa distorção. O trabalho é complexo, exigirá muito debate, mas não pode ser adiado. A participação crítica da sociedade será fundamental para que o resultado seja o esperado. Dos Três Poderes o que se pede, a partir de agora, é seriedade e o fim dos conflitos institucionais (e das emboscadas jurídicas), como se viu esta semana, que tanto mal têm feito ao país. O Brasil precisa voltar a crescer.

Por Nilson Mello

*Os rankings sobre as maiores cargas tributárias variam de acordo com os critérios e também de ano a ano, mas, sem exceção, todos indicam que somos uma das maiores cargas do Mundo. De acordo com o Instituto Brasileiro de Planejamento Tributário (IBPT), somos a 15a maior carga entre mais de 190 países, a maior entre os países do BRICS (Brasil Rússia, Índia, China e África do Sul), emergentes que se equiparam a nós, e ainda o país de menor retorno da receita tributária em termos de bem-estar para a sociedade. 

sexta-feira, 12 de fevereiro de 2021

Autonomia do Banco Central

 

Livre de ingerências

(Obs: Artigo publicado simultaneamente com o Correio da Manhã)

No primeiro teste para dizer a que veio sob nova direção, o Congresso se saiu bem, aprovando um projeto de caráter técnico, há muito esperado, em regime de urgência, o que contribui para afastar, ao menos por enquanto, os receios de uma autuação marcadamente fisiológica, em detrimento da desafiadora pauta de reformas com a qual se comprometeu.

Por 399 votos a 114 a Câmara aprovou na quarta-feira a autonomia do Banco Central, uma medida que há 30 anos dormitava nos escaninhos do Legislativo, sem que houvesse empenho por parte dos governos ou de parlamentares – às vezes de ambos, em associação ­– em transformar a matéria em realidade, a despeito de ser quase um consenso entre economistas das boas escolas em todo o mundo.

O Projeto de Lei Complementar (PLP 19 de 2019), que já havia sido aprovado pelo Senado, onde teve origem, vai agora à sanção presidencial. O PLP era um dos itens da lista de 35 “reformas” prioritárias encaminhadas pelo Executivo ao Legislativo, no início deste mês, por ocasião das eleições dos presidentes das duas Casas. Dá para dizer que daqui para frente o comportamento do Congresso será sempre assim? Não, não dá, mas o início foi promissor.

De acordo com nota do próprio BC sobre a aprovação, a doutrina econômica e a experiência internacional mostram que a autonomia da Autoridade Monetária contribui decisivamente para se alcançar níveis mais baixos de preços e conter a volatilidade da inflação, sem prejudicar o crescimento econômico. Pelo projeto aprovado, o órgão não estará mais vinculado ao Ministério da Economia e passa a ter autonomia técnica, operacional, financeira e administrativa.

Para ficar livre das ingerências políticas, o mandato de seu presidente não será mais coincidente com o do presidente da República, com diferença de dois anos, e os de seus nove diretores serão escalonados, com início também intercalado. O BC passará a perseguir, por disposição legal, dois objetivos prioritários: estabilidade de preços e fomento ao pleno emprego.

Não foram poucas as vezes ao longo da história que o Brasil utilizou indevidamente o Banco Central para fazer política social, com resultados sempre insuficientes ou até desastrosos (hiperinflação). Como bem lembrou o deputado Paulo Ganime (Novo/RJ), durante a votação, política monetária não é o instrumento apropriado para se fazer política social.  Medidas populistas e demagógicas são contrárias ao papel de guardião da moeda.

Partidos que se autoproclamam “progressistas” se colocam invariavelmente contra a autonomia do BC (algo que a votação no Congresso confirmou). Não entendem que não é o mercado financeiro que se beneficiará de sua independência, mas a sociedade, que passará a contar com uma condução técnica na política monetária, livre de interferências indevidas.

Por Nilson Mello

sexta-feira, 5 de fevereiro de 2021

Eleições no Congresso

  

Que seja o ano das reformas


(Obs: uma versão resumida deste artigo foi publicada simultaneamente com o jornal Correio da Manhã)


         Com as eleições de Senado e Câmara concluídas esta semana, começa agora para valer o ano político com uma das agendas mais robustas já enfrentadas pelo Congresso, a começar pela votação este mês da Lei Orçamentária anual. Sua apreciação pelo Legislativo não foi possível em dezembro por conta das discussões em torno da pandemia, bem como das próprias disputas envolvendo o pleito nas duas Casas.

         O Orçamento anual tem como base a Lei de Diretrizes Orçamentárias, essa sancionada no apagar das luzes (foscas) de 2020.  A LDO trabalha com um cenário de crescimento de 3,2% do PIB, inflação na casa dos 3% e taxa de juro em 2,1%. Com base nesses (além de outros) parâmetros deverão ser planejados os gastos e investimentos governamentais de um exercício que, segundo promessa do Ministério da Economia, poderá ser o marco do início da redenção fiscal do país.

         A redenção viria pela aprovação das Reformas Administrativa e Tributária, objetivos com os quais os presidentes eleitos do Senado e da Câmara, respectivamente, Rodrigo Pacheco e Arthur Lira, já se comprometeram. O discurso é animador porque ambas as reformas são necessárias para o país reconquistar o equilíbrio fiscal e caminhar para o desenvolvimento sustentável. Nos últimos 40 anos, por conta de uma estrutura administrativa e tributária desfavorável ao setor produtivo, o Brasil cresceu muito abaixo da média dos países emergentes e até mesmo da média global.

Acrescentem-se às reformas as privatizações e marcos legais importantes, como o das ferrovias. Ressalve-se que é legítimo que o eleitor tenha dúvidas se um corpo parlamentar historicamente fisiológico, pouco comprometido com agendas programáticas relevantes, como a que ora se impõe, será capaz de cumprir o desafio. Contribui para eventual desconfiança o fato de tais reformas mexerem com privilégios dos servidores públicos e da própria classe política encarregada de operar as mudanças.

 Contudo, não se paga nada por acreditar, até porque, verdade seja dita, nunca se chegou tão perto de levar adiante essas tarefas: há uma declarada aliança entre governo e Congresso em torno de todas essas questões. Se essa “aliança” servir apenas para blindar o governo e dar-lhe um salvo-conduto, o próprio eleitor, escaldado pelos estelionatos eleitorais passados, poderá manifestar a sua desaprovação no ano que vem ao depositar o seu voto urnas. A sociedade está alerta.

Não cabe falar em “compra de voto” para definir as eleições do Senado e da Câmara, tampouco em cooptação do Legislativo pelo Executivo. A liberação de recursos do Tesouro para atender às emendas apresentadas ao Orçamento pelos parlamentares, totalizando cerca de R$ 500 milhões em janeiro, foi feita dentro da Lei. Vale salientar que essas emendas são impositivas, ou seja, o governo é obrigado a liberar seus recursos ao longo do ano e tem poder discricionário para estabelecer a ordem de prioridade.

Portanto, é natural que tenha se emprenhado em liberá-las com intuito de estreitar o seu relacionamento com o Legislativo, tentando influenciar a eleição de candidatos às presidências do Senado e da Câmara que estivessem alinhados com suas propostas de governo. O estranho – e inimaginável – seria se o governo retivesse esses recursos às vésperas da eleição, jogando contra os seus próprios interesses e, por que não dizer, contra as propostas de reformas e privatizações que pretende ver aprovadas.

Liberação de emenda prevista no Orçamento não é compra de voto. Compra de voto é mesada dada a parlamentar, por meio de uma triangulação ilegal envolvendo empresas que se beneficiam de contratos superfaturados com o governo, como ocorria na época do “Mensalão” do PT.  Os senadores e deputados que elegeram Pacheco e Lira não estão obrigados a, daqui para frente, votar sempre com o governo.

 

Merece ser dito que os principais projetos de “Reforma Tributária” que já tramitam no Congresso precisam ser aprimorados. Tanto a PEC-45/2019, da Câmara (curiosamente, de autoria do deputado Baleia Rossi, candidato à Presidência da Casa derrotado), quanto a PEC-110/2019, do Senado, e o Projeto de Lei 3887/2020 do governo são, na verdade, propostas de unificação de tributos em um único imposto de valor agregado (os chamados IVAs). Os projetos desoneram a produção, o que é positivo, mas não promovem, a rigor, uma ampla reestruturação e simplificação do sistema como se espera.

De quebra, se não vierem acompanhados de medidas complementares, podem perpetuar uma das grandes injustiças que se pretende combater no atual sistema, que é a regressividade - ou seja, mais pobres se equiparando aos mais ricos, uma vez que a ênfase de incidência de qualquer IVA se dá no consumo. Portanto, há muito trabalho a ser feito no sentido de aperfeiçoar uma dessas propostas. Mas o fato de se ter uma base de discussão já é um grande avanço.

O ideal, inclusive, seria ter a Reforma Administrativa aprovada antes da Tributária, a fim de permitir mensurar as reais necessidades financeiras do Estado que os tributos terão que “sustentar”, uma vez que um dos eixos ideias da reestruturação do sistema é a redução da carga tributária, hoje uma das mais altas do mundo. Mas não seria razoável reduzir tributos potencializando o rombo fiscal, que já é gigantesco. Senadores e deputados acreditam em oito meses de discussão até a votação final. Mãos à obra.

Por fim, uma pauta conservadora nos costumes se mescla às reformas liberais – o que não deixa de ser uma inusitada união. É preciso lembrar que, goste-se ou não dela (e eu particularmente não gosto), essa pauta é legítima, pois foi parte da plataforma de campanha do governo. Um Parlamento longe dos radicalismos – e, na média, este é o perfil do Congresso – poderá barrar as propostas extremadas. Uma imprensa livre, crítica e plural - como convém a uma democracia -, também ajudará o eleitor a construir o seu juízo sobre o desempenho de parlamentares e governo, para dar o seu veredito em 2022. Mantendo o otimismo, apostemos no ano das reformas. Mas fiquemos atentos.

Por Nilson Mello