sábado, 27 de junho de 2020

Infraestrutura


“Saneamento básico, o filme” (ou a novela?)

(Obs: este artigo foi publicado simultaneamente com o jornal Correio da Manhã)

O Brasil gastou R$ 25 bilhões na Copa de 2014 e R$ 40 bilhões na realização da Olimpíada de 2016. No primeiro caso, 83% dos gastos, nove vezes mais que o previsto, foram feitos pelo Poder Público. No segundo, a iniciativa privada bancou mais de 50% dos projetos e certamente teve o seu retorno. Se não teve, não é problema do contribuinte. Esta semana a notícia de que o Parque Olímpico do Rio, a principal obra dos jogos, está abandonado voltou a ser manchete. Não se deve perder tempo discutindo a validade desses eventos. O problema não está na sua realização em si, válida pelo que gera de oportunidades, mas na falta de controle orçamentário e de rigor no planejamento e execução dos projetos oficiais – muitos deles inacabados e sob suspeita de desvios.
O abandono de hoje é ao mesmo tempo fruto e sintoma da má gestão na administração pública, mazela nacional. Mas os valores da Copa e da Olimpíada são oportunos porque nos dão à exata dimensão do desafio muito maior que o país tem a partir de agora com a aprovação do marco legal do saneamento pelo Congresso. Para universalizar o acesso à agua potável e aos serviços de tratamento de esgoto até 2033, o Brasil deverá investir R$ 700 bilhões. A meta também inclui o fim dos lixões até 2024.
Dos 209 milhões de brasileiros, a metade não conta hoje com esses serviços, uma das razões de nosso baixo Índice de Desenvolvimento Humano (IDH). Anualmente, 15 mil pessoas morrem e 350 mil são internadas no país devido a doenças relacionadas à falta de saneamento, segundo a OMS. A universalização reduziria em R$ 1,45 bilhão os custos anuais com atendimento médico-hospitalar, considerado que para R$ 1 investido no setor de saneamento economiza-se R$ 4 que podem ser aplicados em outras frentes e prioridades na própria saúde.
Os projetos que decorrerão do marco regulatório serão realizados pela iniciativa privada, seja por meio de parcerias público-privadas, concessão de áreas de atuação ou mesmo privatização das estatais (estaduais e municipais) que não conseguirem atingir metas até 2022. São investimentos privados para atender a uma demanda reprimida da sociedade e para a qual o setor público – ­­devido às incoerências orçamentárias – por décadas não foi capaz de suprir. Como são empreendimentos privados, a gestão é rigorosa, até porque implicam cifras vultosas, com riscos inerentes. Essa característica ajuda a prevenir a repetição da mazela mencionada de início.
O retorno dos investidores – operadores do setor e sócios financeiros estratégicos – virá da exploração dos serviços no longo prazo, regulados e fiscalizados pelo Poder Público, mais precisamente pela ANA – Agência Nacional de Águas, que substituirá 49 agências reguladoras regionais. A uniformização regulatória é um dos aspectos positivos do marco legal, contribuindo para a segurança jurídica, indispensável à atração dos investimentos.
Outras vantagens são a possibilidade de as empresas investidoras emitirem títulos para captação de recursos no exterior e uma modelagem legal que permite a aglutinação de vários municípios na área de atuação de um consórcio, gerando ganhos de escala que viabilizam os grandes investimentos necessários – aqueles que as estatais até hoje não foram capazes de fazer. Aprovado em última votação no Senado na quarta-feira, o marco do saneamento tramitava no Congresso desde 2018, tendo sido objeto de 16 audiências públicas. PT e PDT votaram majoritariamente contra. Não se sabe bem por quê. A matéria agora vai à sanção presidencial.
Em “Saneamento básico, o filme”, de Jorge Furtado com Fernanda Torres e Wagner Moura, a comunidade de uma pequena cidade na Serra Gaúcha se une para tentar construir uma estação de tratamento de esgoto. Eles têm verba federal para fazer um filme, mas não para o saneamento, e daí buscam uma alternativa criativa. O novo marco regulatório também é uma alternativa criativa, além de mais segura, para pôr fim a uma novela brasileira: a falta de saneamento básico.
Por Nilson Mello

segunda-feira, 22 de junho de 2020

Portos


Precisamos falar sobre o OGMO
(Este artigo foi publicado simultaneamente com o site Consultor Jurídico - Conjur, em 19 de junho)

         Quando se diz que o modelo de exploração de atividades portuárias adotado no Brasil é o landlord port, ou seja, aquele em que o Poder público é responsável pela administração da infraestrutura e áreas comuns, cabendo ao setor privado os investimentos na superestrutura e a operação em si, se está fazendo um diagnóstico parcial.
A rigor, devemos considerar que no Brasil temos um modelo híbrido para o setor, pelo qual nos Portos Organizados (públicos) adota-se o regime landlord port, enquanto nos terminais de uso eminentemente privado (os chamados TUPs) temos algo parecido com aquilo que na doutrina especializada se convencionou chamar de fully privatized port, ou terminal totalmente privado.
         O reexame desses conceitos é oportuno no momento em que o Tribunal de Contas da União (TCU) acaba de divulgar relatório de auditoria que aponta uma grande taxa de ociosidade nos Portos Organizados, ao mesmo tempo em que o governo avança nos processos de licitação de algumas áreas e pretende flexibilizar regras relativas à exploração dessas instalações.   
O regime fully privatized port puro é pouco utilizado no mundo, tendo como principais representantes a Inglaterra e a Nova Zelândia. A sua menor adoção se deve à relevância dos portos em termos de soberania, o que faz com que a maioria das nações prefira regimes de maior controle, considerando que os terminais portuários em geral são a principal porta de entrada e saída de mercadorias, além de receberem um grande fluxo de pessoas, ingressando no país ou em trânsito para o exterior. Eis porque o regime mais comum, adotado em portos como Hamburgo, Roterdã, Barcelona, Valência, Antuérpia, Le Havre e Marselha, é o landlord port.
Além do landlord port e do fully privatized port, tem-se ainda os regimes tool port, em que o porto é público, mas estabelece contratos com operadores portuários (prestadores de serviços que atuam dentro da área pública, sem grande autonomia), e service port, em que tudo está a cargo do setor púbico, desde a administração até a operação. No Brasil, tivemos um modelo eminentemente público até 1993, quando foi promulgada a Lei de Modernização dos Portos (Lei nº 8.630), que permitiu o arrendamento, mediante licitação, de áreas dentro dos Portos Organizados destinadas a terminais operados pela iniciativa privada.
Antes disso, em 1990 (Lei nº 8.029), um primeiro passo em direção à desestatização do setor, visando à sua maior eficiência, já havia sido dado com a extinção da Portobrás, estatal criada em 1975, e sua consequente substituição pelas companhias docas, que passaram a exercer, na maior parte do país, a função de Autoridade Portuária, dentro do modelo landlord port, sendo que em alguns estados esse papel foi delegado aos entes federados. Hoje, dos 34 portos organizados distribuídos pelos 7,5 mil km de litoral brasileiro, 16 têm como autoridade portuária uma companhia docas vinculada à União e os demais foram delegados a estados ou municípios.  
A partir da década de 1990, portanto, uma grande leva de investimentos privados, feitos pelos arrendatários de áreas públicas localizadas dentro dos Portos Organizados, garantiu ao setor um significativo avanço em termos de eficiência e competitividade. Foi um salto considerável que evitou um colapso no comércio exterior, tendo em vista o aumento vertiginoso das trocas globais nos anos seguintes. Antes disso, terminais privativos, localizados fora das áreas dos Portos Organizados (públicos), já eram autorizados a operar, desde que para movimentar carga própria de forma preponderante.
Em 2013, um novo marco regulatório (Lei nº 12.815 e Decreto nº 8.033) garantiu um novo salto ao permitir que os terminais de uso privado (TUPs) movimentassem cargas de terceiros, o que foi decisivo para o setor, pois propiciou outra onda de investimentos em novas instalações, bem como a ampliação e a modernização das existentes. Hoje, os TUPs somam dezenas de instalações, que respondem por quase 70% da carga movimentada nos portos brasileiros.
Não restam dúvidas de que o fim das restrições à carga de terceiros nos terminais eminentemente privados foi benéfica para o país, pois tornou o setor mais atrativo para os investidores - e o próprio desempenho dos TUPs nos últimos anos, em termos de eficiência e produtividade, comprova o acerto. Contudo, o que parece claro é que o modelo híbrido adotado no Brasil implica uma assimetria concorrencial entre os regimes dos Portos Organizados (landlord port) e dos portos de uso privado (fully privatized port), com vantagem para esses em relação àqueles.
Ainda que o desempenho dos terminais arrendados possa ser tão bom quanto o dos TUPs, a taxa de ociosidade de algumas áreas é reveladora de obstáculos maiores. A mencionada auditoria do TCU identificou que, dentro dos Portos Organizados, essa taxa é, em média, de 56%, chegando a 90% em alguns extremos (Docas do Ceará), e as razões apontadas para a distorção são as regras mais rígidas a que os arrendatários da infraestrutura pública estão sujeitos, em especial a exigência de contratação de pessoal por intermédio do Órgão Gestor de Mão de Obra (OGMO).
Na época da edição do novo marco regulatório de 2013 houve intensa discussão acerca da possibilidade de surgimento dessa assimetria. Muitos chegaram a propor que os Terminais de Uso Privado também permanecessem adstritos à intermediação da OGMO, o que seria um contrassenso, pois o que se pretendia com a nova modelagem dada aos TUPs era o aumento da eficiência, não a reprodução de um handcap (desvantagem).
Portanto, a queixa de arrendatários quanto à assimetria procedia (e a taxa de ociosidade constatada hoje é a prova disso), o que estava errado era a proposta de solução. Se o debate chegou a ser acalorado, faltou transparência e coragem para tocar no ponto crucial: o fim do OGMO, esse ente que pode ser considerado o último traço de anacronismo do setor portuário brasileiro, na prática, um monopólio de caráter para-sindical que define como uma empresa privada deve contratar mão de obra, quem deve contratar e de que forma devem ser capacitados, treinados e organizados (incluindo cadastro e escala de trabalho) os profissionais que lhe prestam serviços.
Só a burocracia que envolve essa intermediação - e os custos inerentes a ela - já seria razão suficiente para justificar o seu fim, sem contar a questão de fundo, ainda mais importante: por que uma empresa privada deve ser obrigada a recorrer a terceiros para fazer algo essencial à sua atividade, qual seja, a gestão de pessoal especializado?  Portos são elementos fundamentais para a cadeia produtiva de um país e representam um elo integrador da logística de transportes (navegação com ferrovias e rodovias). A necessidade de sua expansão física e sua modernização é permanente, tendo em vista a competitividade da economia em face do irrefreável aumento de demanda ao longo do tempo.
Não é razoável que infraestruturas portuárias públicas fiquem ociosas, ainda que tenhamos, cada vez mais, a possibilidade de expansão de instalações privadas. Vale dizer que os Portos Organizados constituem um formidável ativo público, e os TUPs não vieram substituí-los, mas, sim, acrescer capacidade ao setor, a fim de prevenir gargalos geradores de ineficiência. Para superar o problema da ociosidade, o ministro da Infraestrutura, Tarcísio de Freitas, está propondo modelos de arrendamento menos rígidos e contratos temporários (cinco anos de exploração, ao invés dos 35 dos arrendamentos regulares).  
A questão é saber se essa solução paliativa não gerará novas assimetrias, além de não resolver o problema de base. O modelo híbrido brasileiro (regimes landlord port e fully privatized port conjugados) é viável. Portos Organizados e TUPs não são excludentes, mas complementares. Porém, a redução de assimetrias em prol da concorrência deve ser uma meta. Considerando a evolução do arcabouço legal que disciplina o setor portuário desde a década de 1990, chegou a hora de se falar sobre o fim do OGMO, mesmo que isso represente um grande desafio político.
Afinal, todos os demais importantes obstáculos à modernização do setor já foram removidos. O que não se pode é assistir inerte à progressiva ociosidade de áreas portuárias públicas em função da manutenção de um anacronismo.

Por Nilson Mello




quinta-feira, 18 de junho de 2020

Fake news


Os verdadeiros guardiões da Constituição


                  Este inquérito das fake news é a maior ofensa ao Estado de Direito hoje no Brasil. Uma violência mais grave à democracia do que as inadmissíveis bravatas do presidente Bolsonaro e de seus minitros ou mesmo as ameaças a instituições feitas por seus seguidores. Porque a um juiz, a um ministro do Supremo, a uma autoridade pública não se pode esperar nada menos do que o estrito respeito à Constituição. 
          Um inquérito em que uma só figura é ao mesmo tempo vítima, investigador, promotor e magistrado, um inquérito determinado de ofício, um inquérito com medidas sigilosas, um inquérito em que os advogados não têm o imediato acesso aos autos, um inquérito em que parlamentares sobre os quais não paira uma acusação formal são convocados a depor e têm seus sigilos quebrados e bens aprendidos, um inquérito que dá margem à censura prévia, um inquérito onde se vê prisões e apreensões abusivas, um inquérito, em suma, que não respeita a ampla defesa e o devido processo legal, um inquérito dessa natureza é uma violência contra a democracia. É kafkaniano.
              Nada pode justificar este autoritarismo que afronta a Constituição praticado justamente por aqueles que devem ser os seus guardiões - os ministros do Supremo. Nem mesmo os arroubos antidemocráticos de bolsonaristas.
                  As fakes news devem ser combatidas e seus autores processados e punidos. Mas não a qualquer custo, passando por cima de garantias e princípios constitucionais. Congresso, Ministério Público Federal e a imprensa têm neste momento o dever de se opor à forma como este inquérito é conduzido. Têm o dever, em nome do Estado democrático de Direito, de agir como os verdadeiros guardiões da Constituição.

       Por Nilson Mello


segunda-feira, 15 de junho de 2020

Artigo



A democracia funcionando

(Obs: artigo publicado simultaneamente com o jornal Monitor Mercantil e Correio da Manhã)

            O Congresso devolveu na semana passada ao Planalto a MP que atribuía ao ministro da Educação competência para indicar reitores de universidades federais, o que é inconstitucional. Ao mesmo tempo, o ministro Luiz Fux, do Supremo, instado por uma ação movida pelo PDT, reiterou o óbvio, embora muitos relutem a enxergar: à luz do artigo 142 da Constituição, as Forças Armadas podem ser empregadas na manutenção da lei e da ordem, bem como na defesa das instituições, mas não podem ser usadas para que um Poder intervenha em outro, o que equivaleria a um golpe militar. O texto constitucional é claro, sem margem para devaneios jurídicos.
A firmeza de Congresso e STF não impediu que houvesse, nos últimos dias, uma relativa diminuição das tensões institucionais que haviam feito o mês de maio parecer um “setembro negro”. A mudança de humor, persistindo, abre espaço para o debate de ideias e o encaminhamento de propostas que serão decisivas para a retomada da economia após o fim da quarentena, num ano em que a queda do PIB brasileiro pode ser de 7%, ou até 9%, se houver uma segunda onda de contaminação de Covid-19.  
A preocupação é pertinente uma vez que neste sábado (13/06) Pequim identificou novo crescimento dos casos e determinou um lockdown parcial. Mais uma razão para que o empenho na busca do diálogo entre os Poderes seja renovado. As reformas administrativa e tributária precisam retornar à pauta. A primeira visa a tornar a máquina pública mais eficiente; a segunda, a simplificar o sistema, com possibilidade de redução da carga, dependendo, é claro, do que for feito em termos de reestruturação administrativa.
Importantes eixos devem ser contemplados numa verdadeira reforma tributária, entre eles, o princípio da progressividade (mais ricos pagando mais, mais pobres pagando menos) e a maior ênfase na renda, não na produção ou no consumo, justamente para proteger a economia e as camadas economicamente menos favorecidas. O presidente da Câmara acenou que poderá incluir, na reforma tributária, um novo programa de renda mínima, desde que isso não implique comprometimento do equilíbrio fiscal. Por outro lado, o Executivo mantém em andamento a agenda de licitações para portos, aeroportos e rodovias.
Aliado ao compromisso fiscal, a ser restabelecido após as medidas emergenciais (a expressiva cifra de R$ 45 bilhões em auxílio até aqui), o setor de infraestrutura deverá ser a “ancoragem” da retomada, com uma nova leva de investimentos que deverão reaquecer a economia. O vigor demonstrado pelo agronegócio em meio à crise nos autoriza a manter o otimismo. A safra de grãos este ano deverá somar novo recorde, de 250 milhões de toneladas. O movimento nos terminais portuários, por onde passam 95% de nossas exportações, mantém-se dinâmico, sem grandes recuos, o que contribui para a atrair os investimentos em infraestrutura.
Mas a distensão política será decisiva. Cabe dizer que ao governo os atritos só trouxeram prejuízo, como demonstraram os indicadores de rejeição ao presidente da República, que só agora arrefecem, bem como os pedidos de impeachment enfileirados na Câmara. É preciso ser um “torcedor” muito otimista (como, aliás, são os apoiadores do presidente Bolsonaro) para não interpretar esses dados como sintomas de fragilidade e vulnerabilidade política. O prejuízo, contudo, foi maior para o país, que perdeu a chance de estabelecer uma política unificada e mais eficaz de enfrentamento da crise sanitária, o que certamente poderia ajudar a reduzir os seus danos.  
Num momento de crise, o que se espera das lideranças – e nas diferentes esferas – é um discurso de união, não a reiteração dos antagonismos e a aposta na polarização. Em respeito à verdade, não se pode dizer que os números no Brasil, apesar de dramáticos, sejam o de uma “carnificina” (ou “genocídio”, como prega a narrativa de oposição), uma vez que as estatísticas aqui não são relativamente piores, considerando o tamanho da população, às de outros países, em especial os europeus, sempre referência em virtude do grau de desenvolvimento. Mas é razoável deduzir que, unidos e sob uma liderança conciliadora, teríamos muito melhores condições de superar a pandemia e a crise econômica que se seguiu a ela.
De qualquer forma, para aqueles que desconfiam da solidez da democracia brasileira, o recente período de turbulência veio reforçar a tese paradoxal de que é em meio aos conflitos que as instituições democráticas revelam o seu vigor. Quem disse que democracia não é uma obra acabada e sim um processo de construção que exige esforço e vigilância constantes estava certo. E é o que têm feito o Legislativo e o Judiciário, reiteradamente, barrando ímpetos inconstitucionais do Executivo. Os ministros do Supremo nem sempre estão cobertos de razão, mas há meios legais de contestar suas decisões, sem necessidade de afrontas ou ameaças.
Por isso ajudaria muito se o próprio presidente da República abandonasse o cacoete de reiteradamente testar os limites institucionais, senão por genuíno respeito às instituições, por pragmatismo. Afinal, tem muito a perder: além do próprio mandato (os processos ganham força), o fim do sonho de reeleição. A não ser que esteja fazendo uma aposta ainda mais arriscada para si, sendo difícil acreditar que as Forças Armadas apoiariam uma aventura golpista. Lembrando que, a essa altura, só uma parcela reduzida do eleitorado não entendeu que, ao delimitar o raio de ação do Executivo dentro dos parâmetros constitucionais, Executivo e Legislativo nada mais fazem do que cumprir o seu papel, atuando como freio e contrapeso. É a democracia funcionando.
Por Nilson Mello
           
           


sexta-feira, 5 de junho de 2020

Ensaio


Os incendiários e os bombeiros

(Obs: este artigo foi publicado simultaneamente no jornal Monitor Mercantil)

O inquérito aberto no Supremo para apurar as acusações do ex-ministro da Justiça Sergio Moro, de ingerência com desvio de finalidade na Polícia Federal, analisará se houve, por parte do presidente da República, crimes de corrupção passiva privilegiada, falsidade ideológica, obstrução da Justiça, advocacia administrativa e prevaricação. Por outro lado, poderá verificar, também, se houve denunciação caluniosa por parte do ex-ministro, ou até mesmo pedido de vantagem indevida, configurada numa previdência especial não prevista em lei. Convenhamos, é um inventário penal e tanto.
Mesmo que se possa imaginar que, ao término, o seu arquivamento será pedido pela Procuradoria Geral da República e deferido pelo Supremo – e não há nada por enquanto que garanta que isso ocorrerá –, a existência em si de uma investigação com esse peso já seria razão suficiente para que atores políticos que ocupam cargos de relevância na estrutura do Estado, com responsabilidades institucionais indissociáveis de suas funções, pautassem suas decisões e pronunciamentos pelo equilíbrio e pela ponderação. Mas não é o que se viu neste último mês de maio.
Aonde se pretende chegar com a escalada das tensões? Bem, uma vez que o retrocesso democrático parece algo fora de questão para pessoas de bom senso, em especial para aqueles que foram democraticamente eleitos ou que têm por missão a defesa das instituições, a resposta é que não chegarão a lugar nenhum. Até porque chegar a um ponto sem retorno nos embates partidários e ideológicos ­– a chamada “ruptura” – equivale a um fracasso político.
Não é demais repetir que soluções “fora da curva”, ou seja, dissociadas das regras constitucionalmente previstas, serão sempre o pior dos caminhos porque, além de não resolver os problemas presentes (no máximo, os escondem, invariavelmente mediante a força), criam outros de maior complexidade. “Soluções” fora da curva são, na verdade, a “não solução”.  Aliás, a alusão a uma “ruptura”, em meio a um ambiente de tensão política como o que vivemos hoje é inadmissível, sobretudo quando provém de um parlamentar eleito pelo voto popular que, além do mais, é filho do presidente da República. Se o objetivo de Eduardo Bolsonaro, ao vulgarizar a questão durante uma entrevista, era produzir mais instabilidade, pode ter tido algum êxito – embora hoje pouca gente séria leve o deputado a sério.
Mais grave (e esdrúxula), porém, foi a menção feita por alguns juristas ao artigo 142 da Constituição Federal – dispositivo que permite o emprego das Forças Armadas na manutenção da lei e da ordem, bem como na defesa dos poderes constituídos – numa eventual intervenção do Executivo no Supremo Tribunal Federal. Ora, como está claramente expresso no texto constitucional, as Forças Armadas devem defender os poderes constituídos e não investir contra eles ao sabor dos acontecimentos e interesses políticos momentâneos.  Tratou-se, portanto, de um completo devaneio jurídico.
Não há como negar que o ambiente carregado foi em grande parte resultado da postura adotada pelo presidente da República, disposto ao embate e à polarização desde o primeiro dia de mandato. Hoje, a julgar pelo alto índice de rejeição que enfrenta* e pelas três dezenas de pedidos de impeachment protocolados na Câmara, talvez tenha compreendido (ou não?) que a aposta foi demais arriscada – até porque o deixou refém do Centrão, bancada conhecida pelo seu fisiologismo.  
 Mas Bolsonaro não é o único responsável pelo acirramento dos ânimos. O próprio ativismo judicial do Supremo, com seu conceito de “mutação constitucional”, com recorrente invasão da competência de outros poderes, há muito contribui para a insegurança jurídica e, claro, para a escalada das tensões. O inquérito das fake news, em que os papeis de vítima, promotor, investigador e juiz se confundem numa só figura, é revelador do exagero conceitual. Na atual conjuntura, esse processo foi agravado por algumas decisões monocráticas no mínimo inoportunas.
Um pedido descabido, como o apresentado por partidos políticos, de apreensão para perícia do celular do presidente da República (que sequer é réu), poderia ser perfeitamente indeferido de pleno pelo ministro que preside o inquérito, em nome da estabilidade, sem necessidade do protocolar parecer do procurador geral da República – que, aliás, acabou sendo pela rejeição do pleito. No caso em questão, como não se procurou evitar o esgarçamento, a resposta veio num tom acima, na forma de uma nota oficial, em clara advertência, do ministro Augusto Heleno, da Segurança Institucional, e numa declaração do próprio presidente da República, de que não entregaria o aparelho de forma alguma. Uma retórica lamentável, num momento difícil para o país.
Um dos princípios basilares do Estado de Direito é o de que todos estão submetidos à Lei e às decisões judiciais. Se há inconformismo em relação à Justiça, a arguição se dá pelas próprias vias judiciais, sem atalhos. Para que então as bravatas? A quem elas serviram? Certamente, os ministros generais já estariam contrariados pela convocação que haviam recebido dias antes, para depor no referido inquérito da PF: no despacho de intimação, havia a desnecessária referência à expressão “debaixo de vara”, resgatada do Código Penal do Império. A que se deveu o seu emprego? Uma provocação? Com que intuito?
Vai no mesmo sentido, de inadequação, inoportunidade e esgarçamento, a participação de Bolsonaro em frequentes manifestações que, invariavelmente, afrontam o Congresso e o Judiciário, em particular o Supremo Tribunal Federal. Presidentes da República, por regra, não devem participar de manifestações. Simples: a sua presença nas que são a favor de seu governo soa redundante e nas que são contrárias a outras instituições do Estado, inconstitucional e, portanto, passível de responsabilidade.
A recorrência dessas manifestações talvez explique a decisão do presidente do inquérito sobre a PF, ministro Celso de Mello, de divulgar a íntegra do vídeo da reunião ministerial do dia 22 de abril. A rigor, uma reunião ministerial não deveria ser divulgada. Até porque, não havia ali prova concreta de interferência na PF. E ainda que houvesse, bastava examinar essas provas, sem necessidade de divulgação do conteúdo completo do encontro. Porém, o clima de hostilidade contra Congresso e Supremo foi provavelmente o que levou o ministro a decidir pela sua liberação completa, como sinal de alerta à sociedade.
O fato é que, uma vez divulgado o vídeo, não é possível se manter indiferente ao seu teor, tampouco deixar de deplorar a sua forma, inadmissível. Não é o que um país civilizado espera de uma agenda ministerial, embora uma parcela do eleitorado vibre com as afrontas e os termos chulos. Nunca é demais salientar: posturas hostis, contrárias à lei, produzem reações radicais. Retroalimentam a escalada de tensões. Vimos uma pequena amostra no último fim de semana em Curitiba, em São Paulo e no Rio.
Em plena crise de Covid-19, é mais do que a hora de os “bombeiros” assumirem o lugar dos incendiários. A reunião desta segunda-feira (01/06) em São Paulo, entre o ministro da Defesa, Fernando Azevedo, e o ministro Alexandre de Moraes, do Supremo, pode ser um indicativo de que homens responsáveis decidiram parar de brincar com fogo, para, finalmente, promover o diálogo entre as instituições que representam. É o mínimo que se espera deles.
Por Nilson Mello

* Entre essas pesquisas, a XP/IPEST aponta 50% de rejeição hoje, contra 36% em março, e apenas 25% de aprovação.

quarta-feira, 3 de junho de 2020

Artigo


Aonde vamos?


A disposição para o embate, traço característico do presidente da República, e a sua reiterada aposta na polarização, são os fatores que em grande parte explicam – sem, contudo, justificar – a escalada de tensões na qual o país ingressou, processo que se agravou no último mês, quando todos os esforços deveriam estar voltados para o combate à pandemia de Covid-19 e a mitigação de seus efeitos sociais e econômicos.  
Seria aconselhável que o circulo mais próximo de assessores presidenciais questionasse o chefe – se é que haverá coragem para tanto ­– sobre quais teriam sido os resultados práticos da estratégia de confronto que caracteriza a sua administração desde o primeiro dia de mandato. Por que arriscar-se sempre a andar no fio da navalha? A pergunta é pertinente porque os desdobramentos negativos do embate permanente estão claros para todos, mas ainda assim não parecem arrefecer o ímpeto beligerante.
Os desdobramentos se traduzem, por um lado, em uma governabilidade cada vez mais frágil e, em função dela, na necessidade de se estabelecer aliança com setores do Congresso reconhecidamente fisiológicos e corporativistas, o que coloca em dúvida o efetivo cumprimento dos objetivos de uma agenda legitimamente sancionada pelas urnas.
As três dezenas de pedidos de impeachment protocolados na Câmara transformam tal articulação (espúria?) em uma tábua de sobrevivência, realçando a vulnerabilidade do presidente e, por decorrência, justificando as suspeitas, por parte da sociedade, de que as promessas de campanha, entre elas o propalado combate à corrupção, poderão não ser cumpridas, ao menos não totalmente.
Por outro lado, em menos de um ano e meio de mandato, o ânimo pelo confronto, sobretudo no momento em que o país mais precisava de uma liderança conciliatória, levou à deterioração de um capital político considerável, representado por mais de 57 milhões de votos depositados nas urnas em 2018. O que sobrou desse “patrimônio” foi um alto grau de rejeição[1] (apesar do avanço nas camadas menos favorecidas, em função do auxílio emergencial), conforme demonstram as pesquisas, e uma parcela de seguidores cada vez mais radicais, o que, obviamente, não serve à democracia (além, é claro, dos referidos pedidos de impeachment). Quem mais tem lucrado é a oposição irresponsável, aquela que estava desde o início à procura de uma boa razão para expressar as suas críticas.
Bolsonaro teria, na pandemia, uma justificativa para o que não desse certo este ano, em especial para o retrocesso econômico, inevitável[2] e já bastante acentuado. O respaldo à ciência e às medidas adotadas pela área técnica do Ministério da Saúde, aliado a um discurso de união em prol da recuperação do país, seria um salvo-conduto honesto, e por isso o caminho indicado a seguir.
Mas fez o inverso, acirrando o clima de confronto e levando à demissão três ministros. Desses, vale lembrar, dois da Saúde, o setor crítico do momento, e o terceiro, Sergio Moro, da Justiça (e até então um dos mais, senão o mais emblemático de seus auxiliares), que agora o acusa, em inquérito em curso no Supremo, de uma ingerência indevida na Polícia Federal.
Como não é possível identificar ganhos imediatos para o governo com essa estratégia, e muito menos para o país, é plausível indagar: onde se pretende chegar?

Por Nilson Mello
        



[1] Entre essas pesquisas, a XP/IPEST aponta 50% de rejeição hoje, contra 36% em março, e apenas 25% de aprovação.
[2] A queda do PIB no primeiro trimestre foi de 1,5%, segundo o IBGE, com previsão de retração de 6,5% em 2020.