quarta-feira, 28 de outubro de 2020

Plebiscito no Chile

 

A Economia como resultado do Direito



           Uma Constituição de caráter liberal garantiu ao Chile ao longo de quatro décadas excelentes índices de desenvolvimento econômico, um dos melhores da América Latina e do mundo e, como resultado de uma economia mais forte, avanços sociais (educação, saneamento, saúde etc) muito acima da média dos países da Região. De forma soberana, porém, o povo chileno decidiu em plebiscito (mais de 70% dos votos de cerca de 14 milhões de eleitores) no último domingo dia 25 que não quer mais este arcabouço jurídico como base da sociedade.

Promulgada em 1980, a atual Constituição traz valores econômicos liberais, mas está – e nem poderia deixar de estar – irremediavelmente vinculada à ditadura Pinochet, período sombrio da história do país (1973-1990), o que facilitou a propaganda pela sua revogação, que agora terá curso. É de se presumir que a nova Carta estabeleça graus de intervenção e dirigismo estatais maiores, “em prol de mais avanços sociais”.

Em dez anos poderemos ver qual das duas receitas surtiu mais efeito. Sem tirar a razão dos chilenos, de quererem se ver livres de algo relacionado a um passado traumático, e sem que possamos saber ao certo qual será a orientação da nova Constituição no que diz respeito ao modelo econômico, não custa lembrar que países vizinhos antes ricos (Argentina e Venezuela) têm retrocedido como resultado do intervencionismo e do dirigismo estatais crescentes, temperados com altas doses de populismo.

O próprio Brasil apresenta média de crescimento econômico medíocre há décadas por conta de uma estrutura legal hostil ao empreendedor, contrária à liberdade econômica. Ainda que seja uma ciência, e como tal tenha as suas leis intrínsecas, a economia é também resultado de variáveis extrínsecas, que lhe são dadas pelo Direito – o arcabouço jurídico no qual se assenta. Se Estado opulento, impostos em profusão e grande número de estatais fossem o caminho do bem-estar social, estaríamos em primeiro lugar no ranking global. E não é o caso.

A Constituição que agora os chilenos querem é algo parecido com a nossa Constituição de 1988: mais que uma Carta de princípios, um programa de governo de orientação social democrata. Aqui não deu resultado. Fomentou-se uma casta de privilegiados no funcionalismo público, em prejuízo da coletividade. O Estado deixou de ser meio para se tornar um fim em si mesmo. Opulento. Não houve avanços econômicos e sociais relevantes, basta ver nosso baixo desempenho no ensino, mesmo se comparado a países em desenvolvimento.

Recente pesquisa da Confederação Nacional da Indústria (CNI) aponta que o Brasil é o sétimo país que mais gasta com funcionalismo público, mais até do que nações europeias que são referência do Welfare State. Gastamos o dobro que o Chile, justamente por conta de seu arcabouço liberal, que agora será revisto.

Masoquismo e Weimar

 Com boa dose de ironia e provocação, o que demonstra sagacidade, alguém me questionou, quando eu discorria sobre o plebiscito do Chile, se os chilenos decidiram revogar a atual Constituição por "puro masoquismo". Minha resposta foi de que a história está repleta de exemplos de decisões equivocadas de seus povos, e tomadas de forma democrática, pelo caminho das urnas. O exemplo mais notório é a ascensão de Hitler ao Poder, feita sem que se violasse uma linha ou inciso sequer da Constituição de Weimar. Não se pode ter certeza se a nova Constituição do Chile será melhor ou pior, mas é inegável que a atual pavimentou o crescimento econômico.

Devemos considerar que uma sociedade, em conjunto, entende que sempre pode dar um passo avante nas conquistas já feitas, o que é legítimo. Os chilenos acreditam que possam alcançar patamares ainda mais elevados de desenvolvimento com outro tipo de estrutura jurídica, menos liberal e, portanto, mais intervencionista, no sentido do aprofundamento do Estado do Bem-Estar. Repito: uma decisão soberana, legítima.

A partir da nova Constituição poderão comemorar o rompimento completo com os anos de ditadura. O risco é que, na elaboração da nova Carta, os valores e parâmetros econômicos que contribuíram para o desenvolvimento do país nessas últimas três décadas sejam totalmente eliminados. Esses valores e parâmetros não devem ser vistos como um entulho do “velho regime”, mas, sim, como um tributo pago à sociedade pelo  terror que produziu, pois foram a base do reconhecido sucesso do Chile em todos esses anos.

 Por Nilson Mello

quinta-feira, 22 de outubro de 2020

Pandemia

 

A politização da vacina



            Quando todos com um mínimo de acuidade política julgavam que o governo federal ganhara pontos junto à sociedade ao oficiar o Instituto Butantan a compra de 46 milhões de doses da vacina CoronaVac, desenvolvida em parceria com o laboratório chinês Sinovac – afinal, o importante é envidar esforços contra a pandemia –, eis que, em menos de 48 horas, o presidente Bolsonaro reverte as expectativas positivas, desautoriza o seu ministro da Saúde e manda suspender os entendimentos para aquisição.

Com o retrocesso, conseguiu fazer pior do que o seu desafeto e adversário político, o governador João Dória, que dias antes afirmara que a vacina teria caráter obrigatório em São Paulo. Não parece ser uma decisão razoável – nem política e juridicamente aceitável - obrigar a população a tomar uma vacina desenvolvida em tão pouco tempo, ainda que já tivesse sido aprovada – o que não é o caso.

O caráter compulsório, nas circunstâncias, tem um forte viés autoritário, antidemocrático. Não por outra razão, governos europeus adiantaram que as vacinas, quando aprovadas, de início não serão obrigatórias. Percebendo a gafe, o prefeito Bruno Covas, aliado de Dória e candidato à reeleição, se apressou a negar a obrigatoriedade na capital paulista.

Na marcha da insensatez da politização da pandemia, “nossos líderes” têm se superado nos arroubos. É claro que sempre haverá plateia para aplaudir insanidades. São muitos os delírios. Seguidores irredutíveis de Bolsonaro, a julgar pelo que postam nas redes sociais, consideram o seu veto ao processo de compra da CoronaVac uma atitude patriótica, visando a barrar a expansão do “comunismo chinês”.

Como se a China não tivesse há muito deixado de ser uma economia comunista, e como se não merecesse respeito por ser o nosso maior parceiro comercial, detentor de tecnologia de ponta, maior PIB do mundo, hoje, pelo critério de paridade do poder de compra. Tem sentido a postura hostil?

Embora não tenha a letalidade da Covid-19, a “cegueira ideológica” é uma patologia grave que distancia o seu portador da realidade. Acomete indivíduos de todo o espectro político, sendo que, quanto mais perto dos extremos (para um lado ou outro), mais suscetível estará à forma incurável. Aparentemente, após turvar a “visão”, a moléstia atinge também a capacidade cognitiva.

Ora, o que deve realmente importar neste momento é a qualidade das vacinas e a sua eficácia na imunização, não a origem dos laboratórios que as produzirão. Até o momento, nenhum dos laboratórios que desenvolvem vacinas no Brasil protocolou pedido de validação. Todas continuam em testes, incluindo a CoronoVac e a da Oxford/Fiocruz. O diretor-geral Anvisa, Antonio Torres, já avisou que o órgão se norteará por critérios científicos, longe da discussão política. Ufa!

O ofício do ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, ao Butantan manifestava, na verdade, a intenção de compra, não a compra efetiva, que estaria condicionada à aprovação do imunizante pela agência. Tudo dentro da normalidade e da razoabilidade, não fosse o atropelo do presidente Bolsonaro.  Mas isso também já deixou de ser novidade.

Por Nilson Mello

 

 

           

           

           

terça-feira, 13 de outubro de 2020

Portos

 

Questão de Estado, mais do que de governo



    As piores previsões – de uma queda de mais de 9% do Produto Interno Bruto (PIB) – começam a ser revistas para estimativas menos catastróficas. O Banco Central trabalha agora com um cenário de queda de 5% do PIB em 2020 e crescimento de 3,9% em 2021. Mais conservador, o FMI fala em recuo de 5,8% este ano e avanço na casa dos 3% ano que vem – ainda assim bem mais otimista do que as previsões iniciais. A crise foi profunda, mas a economia brasileira dá sinais claros de resiliência. Do agronegócio e dos portos continuam a vir as melhores notícias em um ano difícil.

A movimentação nos terminais tem crescido, no geral, sustentada pelo agronegócio, que não parou de exportar - e muito. No segundo trimestre, foram movimentadas 286,4 milhões de toneladas, incluindo os terminais públicos e privados (TUPs), o que representou um avanço de 7,9% em relação ao mesmo período do ano passado, de acordo com dados da Agência Nacional de Transportes Aquaviários (Antaq). Nos TUPs, especificamente, que respondem por 64% da movimentação, o aumento foi de 6,8% em relação ao segundo trimestre de 2019, para 185,3 milhões de toneladas.

O resultado positivo foi reflexo do aumento de embarque da produção agrícola, bem como de petróleo e derivados. Entre a produção agrícola, o destaque foi a soja, com crescimento de 32,6% dos embarques. No setor de petróleo, o aumento da movimentação foi de 23,6%, boa parte também destinada às exportações, principalmente para os EUA. O aumento da movimentação neste segmento veio acompanhado da boa notícia de que o Brasil se tornou o maior produtor de petróleo da América Latina. Nossa produção cresceu 11% no quadriênio 2016-2019, e o país deve se tornar um dos dez maiores produtores globais no decorrer da década.

Se deslocarmos o foco do segundo trimestre para uma análise mais ampla, os dados sobre movimentação nos portos permanecem consistentes. É o que indica as estatísticas da Confederação Nacional dos Transportes (CNT), que apontam crescimento de 3,9% de movimento nos portos brasileiros de janeiro a julho, na comparação com o mesmo período do ano passado, totalizando 638,6 milhões de toneladas. Na virada do semestre, o dinamismo não diminuiu, a julgar pelos dados já divulgados referentes a agosto no Porto de Santos, o maior do país. Os terminais santistas em conjunto registraram a maior movimentação de carga para o mês, num total de 13,7 milhões de toneladas, o que significa um aumento de 13,6% em relação ao mesmo período do ano passado.

O resultado de agosto representou também a sétima quebra consecutiva de recorde mensal em Santos, com uma movimentação 1,8% acima do recorde anterior, de julho. No total, de janeiro a agosto, o Porto movimentou 97,8 milhões de toneladas, volume 10,7% acima de 2019 e 10,2% acima de 2018. Os primeiros números divulgados sobre setembro são igualmente positivos. Nos portos paranaenses, por exemplo, o movimento cresceu 28% no mês passado em relação ao mesmo mês de 2019, para 5,26 milhões de toneladas embarcadas e desembarcadas. No acumulado do ano, o aumento no Estado já é de 11%, totalizando 43,9 milhões de toneladas. Assim como em Santos, o destaque é para os graneis sólidos.

Nada disso estaria ocorrendo se a produção agropecuária não estivesse a pleno vapor, e com perspectivas de aumento de produção. De acordo com a Companhia Nacional de Abastecimento (Conab), a safra 2020/2021 de grãos deve proporcionar uma colheita de 268,7 milhões de toneladas, um incremento de 4,2% em relação à anterior. A agropecuária é a responsável pelo bom desempenho das exportações e, por consequência, pela manutenção do nível de atividade nos terminais portuários, por onde passam mais de 95% de nosso comércio exterior.

 Por sinal, a balança comercial de setembro registrou o maior superávit desde 1989, com o saldo de US$ 6,1 bilhões, um aumento de 62,1% em relação ao mesmo período do ano passado, resultado de um volume crescente de exportações, apesar da pandemia do novo coronavírus, conjugado com a valorização do dólar. De janeiro a setembro, o saldo da balança foi de US$ 42,4 bilhões, 18,6% superior ao mesmo período de 2019. No acumulado do ano, as exportações somam US$ 156,7 bilhões.

São números como esses que levaram a Organização Mundial do Comércio (OMC) a informar em um de seus relatórios periódicos que o Brasil tem tido bom desempenho no comércio exterior, bem acima da média mundial. Segundo a organização, enquanto no mundo a retração nas exportações foi em média de 9,6%, o Brasil tem conseguido manter “estabilidade”, a despeito da crise.

Agronegócio e portos são setores interdependentes e estratégicos na retomada do desenvolvimento. Por essa razão, é importante ouvir o secretário Nacional de Portos e Transportes Aquaviários do Ministério da Infraestrutura, Diogo Piloni, afirmar que os programas de investimentos fazem parte de uma agenda de Estado, não de governo, e preveem aportes de R$ 10 bilhões na modernização de terminais e/ou em novas instalações até 2022. Neste sentido, nunca é demais lembrar que quanto mais estáveis e previsíveis forem as normas regulatórias e as regras licitatórias, maiores poderão ser os  investimentos.

Por Nilson Mello*

(*Sócio-diretor do Ferreira de Mello Advocacia e da Meta Consultoria e Comunicação. )

sexta-feira, 2 de outubro de 2020

Transferência de renda

 

Ao trabalho



Quando a fase é difícil, como nesses tempos de Covid-19, até o que seria uma boa notícia vem acompanhada de dado negativo. Os números do Cadastro Geral de Empregados e Desempregados (Caged) referentes ao emprego formal revelaram que o país teve o melhor mês de agosto em dez anos no mercado de trabalho, com 249,4 mil novas vagas preenchidas com carteira assinada, resultado de 1.239.478 contratações contra 990 mil demissões.  Houve saldo positivo de contratações nas cinco regiões, em todos os estados e nos cinco setores da economia – indústria, construção, comércio, serviços e agropecuária, mostrando uma recuperação consistente.

Agosto foi também o segundo mês seguido de saldo positivo, já que em julho 131 mil pessoas haviam sido contratadas com carteira assinada, interrompendo quatro meses (de março a junho) de saldo negativo, com 1,5 milhão de empregos perdidos naquele quadrimestre. O fato de a indústria ter liderado as contratações, com 92.893 mil novas vagas ocupadas, também é positivo, pela capacidade do setor de mobilizar outros segmentos.

A notícia ruim é que, a despeito dessa evolução nos últimos dois meses, o saldo é negativo ao longo do ano em 849,4 mil postos de trabalho. E hoje temos, segundo o IBGE, 13,1 milhões de pessoas procurando emprego, ou seja, 13,8% de desempregados, o maior número desde 1992. O quadro seria certamente pior não fosse a Lei 14.020/2020 (originada da MP 936), denominada Programa Emergencial de Manutenção do Emprego e da Renda, que permitiu a suspensão do contrato de trabalho e a redução temporária de jornada e salários durante a pandemia.

Os abismos sociais que o país historicamente enfrenta, recentemente aprofundados pela recessão de 2015/2016 e agora pela crise da pandemia do novo coronavírus, autorizam o Executivo a tentar desdobrar o auxílio emergencial concedido este ano e promover a sua incorporação a programas de transferência de renda já existentes, que ficariam, assim, robustecidos - seja lá o nome que se dê a eles. É uma questão de responsabilidade social do governo (deste e de qualquer outro) buscar tal caminho.  

Contudo, a verdadeira melhoria do emprego e da renda virá do desenvolvimento sustentável no longo prazo, o que depende de um ambiente legal mais favorável aos investimentos e ao empreendedor. Depende, portanto, das reformas estruturantes já em discussão ou a serem encaminhadas ao Congresso. Depende ainda de uma política educacional cada vez mais consistente. É preciso não perder o foco. Até porque aqui, novamente, temos a boa notícia mesclada a informações negativas.

A ideia de usar precatórios para financiar programas assistenciais equivaleria a passar um atestado de que não há mais qualquer preocupação com o equilíbrio das contas públicas (na contramão, inclusive, das reformas em debate), pois significaria transformar dívida do Estado em despesa permanente, num círculo vicioso que agravaria o rombo fiscal. Nesta quinta-feira (01/10), por sinal, o Tesouro já teve que pagar taxas maiores para tomar empréstimos no sistema financeiro, diante das incertezas geradas pela proposta.

Da mesma forma, usar dinheiro do Fundeb para financiar esses programas significaria reduzir a ênfase que a Educação deve ter no próprio crescimento econômico - um contrassenso. Justiça seja feita, as duas “soluções” não foram anunciada pelo governo, mas pelo senador Márcio Bittar, relator da PEC do Pacto Federativo - e já descartadas pelo Ministério da Economia. Porém, é preciso redobrar a atenção aos balões de ensaio. Transferência de renda, sim, mas sem contabilidade criativa. Ao trabalho.

*Jornalista e advogado

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BR DO MAR

 

O que a cabotagem realmente precisa



Nelson L. Carlini e Nilson Mello*

O Projeto de Lei 4.199 de 2020, também conhecido como BR do Mar, é dessas iniciativas cercadas de boas intenções que, contudo, não deve surtir o efeito esperado, uma vez que parte de diagnósticos equivocados. Encaminhado ao Congresso no início de agosto, o PL tem como objetivo estimular o crescimento do transporte de cabotagem, isto é, entre os portos nacionais, e, para tanto, considera que o principal entrave ao setor é a pequena disponibilidade de navios. Pressupõe, também, que o modal está estagnado, registrando baixo crescimento. Com trâmite de urgência pedido pelo Planalto, o PL passaria a trancar a pauta na Câmara no dia 28, mas a matéria não pôde ser apreciada em face do encerramento da ordem do dia**.

Ambas as premissas do projeto são falsas, mas, teoricamente, com base nelas, o PL estabelece medidas para que empresas estrangeiras possam ampliar a operação na cabotagem, como se essa participação hoje fosse reduzida, o que também não é verdadeiro, pois 95% do transporte de cabotagem já são feitos por empresas sob controle estrangeiro. Para completar, o PL abre indiretamente a possibilidade de financiamento a estaleiros estrangeiros, para a produção de embarcações no exterior, em detrimento da indústria naval nacional (ver Nota de Esclarecimento ao término do artigo). Em vez de atrairmos mais financiamentos para o Brasil, estaríamos, na prática, disponibilizando recursos para garantir o emprego de operários chineses, coreanos e japoneses.

Na grande maioria dos países do mundo, mesmo nas economias mais abertas, como os Estados Unidos, o transporte de cabotagem é reservado a empresas nacionais, com tripulações nacionais e, de preferência, operando navios produzidos no próprio país. E isso se deve a questões estratégicas atinentes à soberania, à segurança e à economia, que guardam estreita relação entre si. Por sua vez, a vinculação da indústria naval ao modal é feita como forma de estímulo à produção e à geração de empregos. São setores que, por razões óbvias, devem integrar uma mesma cadeia econômica, com crescimento recíproco, retroalimentado, a exemplo do que o agronegócio representa para a indústria de implementos agrícolas, e vice-versa.

A cabotagem é um dos modais que mais crescem no Brasil, e hoje representa 11% de nossa matriz de transportes. Na década passada, cresceu em média 10% ao ano, de acordo com dados da Agência Nacional de Transportes Aquaviários (Antaq) e da Confederação Nacional dos Transportes (CNT).  De 2010 a 2018, o crescimento do modal foi de 28%, saltando de 127 milhões de toneladas transportadas para algo próximo aos 164 milhões de toneladas. De 2017 para 2018, o crescimento no volume transportado foi de 16,7%. 

Em 2019, em particular no primeiro semestre daquele ano, comparado ao mesmo período de 2018, quando houve a greve dos caminhoneiros, o crescimento do modal foi ainda mais robusto, de 24,7%. Os “donos” da carga perceberam que não poderiam ficar reféns das contingências (políticas e estruturais) das rodovias – ou do transporte rodoviário. O transporte marítimo pelos mais de 8 mil km de costa brasileira é mais seguro e muito menos poluente do que o transporte rodoviário. Por essa razão, é razoável que o governo pretenda dar maior estímulo ao seu desenvolvimento – embora, como demonstram os números acima – esse crescimento esteja sendo sustentável ao longo do tempo.

Contudo, não será ofertando um número maior de navios que se dará novo impulso ao modal. Muito menos com navios fabricados no exterior, à custa do desmonte de nossa indústria naval. Isso vai contra os interesses nacionais. Os verdadeiros entraves do setor não estão relacionados à falta de embarcações. Vale dizer que a taxa de ocupação média da frota que opera na cabotagem está em torno de 75% (25% de ociosidade). O gargalo, portanto, não está aí.

Os grandes óbices à cabotagem são o excesso de burocracia nos portos - onde há uma dezena de órgãos intervenientes, sem a devida uniformidade de atuação -, as elevadas taxas portuárias, a obrigatoriedade dos serviços de praticagem (pilotos específicos para cada porto), os elevados encargos trabalhistas das tripulações brasileiras e o alto preço do bunker (combustível naval), sobre o qual incide o ICMS, ao contrário do diesel rodoviário, subsidiado. Nenhum desses entraves é enfrentado pelo BR do Mar, que prefere apostar numa maior entrada em serviço de navios estrangeiros, fabricados no exterior, com financiamento indireto brasileiro. O que deve então ser feito em prol da cabotagem?

De forma prática, acabar com a incidência de ICMS sobre o bunker, tornando a competição com o modal rodoviário justa; eliminar a obrigatoriedade do serviço de praticagem para os navios que operam regularmente na cabotagem; permitir o livre trânsito de carga entre os portos nacionais, sem burocracia; e reduzir os encargos trabalhistas sobre as tripulações brasileiras, bem como equiparar o número de tripulantes a níveis internacionais, o que hoje não ocorre, isso enquanto não se têm uma efetiva reforma trabalhista que desonere de vez o emprego no Brasil.

Complementarmente, como concessão às empresas internacionais que operam no Mercosul, determinar a abertura do mercado entre Brasil. Argentina e Uruguai. Paralelamente, conceder às embarcações produzidas no Brasil prioridade na renovação de contratos de transporte de afretamento marítimo de longo prazo, nos afretamentos por viagem. Por fim, conceder às Empresas Brasileiras de Investimentos Navais (EBIN) isenção de Imposto de Renda, a exemplo do que está sendo feito com os fundos de infraestrutura, quando o investimento for realizado em construção de navios no Brasil. Esse roteiro é desafiador, mas muito mais realista.

*Nelson L. Carlini é engenheiro naval e Nilson Mello, advogado e jornalista.

** O pedido de urgência deverá ser retirado pelo Executivo.

 (Obs: Artigo publicado originariamente pela Agência iNFRA, em 25 de setembro, conforme link https://www.agenciainfra.com/blog/infradebate-o-br-do-mar-e-o-que-a-cabotagem-realmente-precisa/)

 

Nota de esclarecimento dos autores sobre o financiamento:

Em nosso artigo “O BR do Mar e o que a cabotagem realmente precisa”, publicado pela Agência iNFRA em 25/09, dissemos que o “PL abre a possibilidade de financiamento a estaleiros estrangeiros, via Fundo da Marinha Mercante (FMM), para a produção de embarcações no exterior, em detrimento da indústria naval nacional”, o que suscitou dúvidas por parte de entidades ligadas ao setor de navegação.

De fato, o Projeto de Lei 4.199 não estabelece expressamente essa alternativa. Contudo, na prática é o que indiretamente aconteceria, na medida em que a essas empresas com sede no Brasil, mas controladas por matriz no exterior, seria dado acesso ao Adicional de Frete para Renovação da Marinha Mercante (AFRMM).

O PL autoriza a importação sem restrições (isenção) de um navio, mas a matriz poderá criar quantas subsidiárias considerar convenientes para transferir para o Brasil a quantidade de navios que entender necessária à sua operação na cabotagem. Ao mesmo tempo, a matriz no exterior poderá construir embarcações em outros países, uma vez que tem colocação assegurada para as suas embarcações usadas: o mercado brasileiro de cabotagem.

Na prática, como essa “triangulação” poderá acontecer? De acordo com os incisos I e II do artigo 11 do PL 4.199 (BR do MAR), essas subsidiárias passam a fazer jus aos recursos do AFRMM, tributo pago por importadores e que é destinado à quitação do financiamento do Fundo da Marinha Mercante (FMM), teoricamente, usado na construção de embarcações em estaleiros brasileiros.

No caso do segmento de contêineres, por exemplo, esses recursos seriam suficientes para a matriz amortizar ou quitar o financiamento usado para pagar navios produzidos em outros países. Na prática, é o que ocorrerá, razão pela qual dissemos que o “PL abre a possibilidade de financiamento a estaleiros estrangeiros, via Fundo da Marinha Mercante (FMM), para a produção de embarcações no exterior, em detrimento da indústria naval nacional”.

Um aspecto ainda mais controverso é que, no caso de origem ou destino Norte e Nordeste, o AFRMM não é pago à empresa de navegação pelo dono da carga (embarcador), mas na forma de ressarcimento do Fundo de Marinha Mercante (FMM).

Isto significa que o navio afretado, construído no exterior, fará jus ao recebimento de recursos originalmente destinados a pagamento de financiamentos para construção no Brasil. Com esta possibilidade aberta pelo artigo 11 do 4.199 esses recursos do FMM estariam liberados à EBN para amortizar a compra de navios, mesmo na China, Japão, Cingapura e Coréia, entre outros.  (NLC e NM)