segunda-feira, 4 de maio de 2020

Artigo


Crise política não justifica um “Judicialismo” anômalo


            A tensão política gerada na semana passada pela suspensão da nomeação do diretor da Polícia Federal pelo presidente da República foi em parte superada nesta segunda-feira (04/05), com a substituição do indicado, conforme publicado no Diário Oficial. Porém, a discussão jurídica em torno da questão não se esgotou, tendo em vista a forma como se deu a suspensão e o instrumento utilizado.
O mandado de segurança é um “remédio” constitucional destinado a garantir direito líquido e certo violado, ou sob clara ameaça de violação, por ato de autoridade pública. Isso significa que, para a sua concessão, tanto o direito quanto a ameaça devem se apresentar de forma inequívoca, sem incertezas.
Do contrário, ou seja, não sendo fato incontroverso, a defesa desse bem que se pretende proteger deve ser feita por meio de ação própria, de caráter não sumário, em que se permita, assim, a apresentação de conteúdo probatório suficiente para estabelecer a materialidade do fato e a sua autoria, bem como permitir, à autoridade acusada da ilegalidade, o contraditório e a ampla defesa.
A concessão de liminar em mandado de segurança é admissível sempre que esteja presente o risco de dano irreparável ou de difícil reparação, o que significa que os fundamentos elencados no pedido devem ser relevantes e as consequências do ato impugnado, efetivamente demonstradas.
Disposto no inciso LXIX do artigo 5º da Constituição e regulamentado pela Lei 12.016 de 2009, o mandado de segurança pode ter caráter repressivo ou preventivo, porém, pela sua característica intrínseca (fatos incontroversos), não pode ser impetrado – e muito menos concedido – por mera suposição de que, por trás de um ato formalmente legítimo, emanado de uma autoridade pública, esconde-se um intuito supostamente subalterno que, em determinado momento, poderá causar dano a algum bem ou direito. Ilações ou deduções não justificam um mandado de segurança.
 As acusações feitas pelo ex-ministro Sergio Moro ao presidente da República, de tentativa de intervenção na Polícia Federal, por ocasião de seu discurso de despedida do governo na semana passada, são graves, merecendo apuração rigorosa e imediata. Contudo, tais acusações não autorizam um ministro do Supremo a invadir a competência do Executivo, para suspender ato do presidente da República que encontra respaldo em lei e na Constituição.
Ao suspender liminarmente a então nomeação do diretor da Polícia Federal pelo presidente da República, em mandado de segurança impetrado pelo PDT, o ministro Alexandre de Moraes agiu como censor dos atos presidenciais, algo inadmissível à luz da própria Constituição que, com alegado zelo, procura defender. A nomeação do diretor geral da Polícia Federal é prerrogativa do chefe de governo (Constituição Federal, artigo 84, inciso XIV) e, no caso em questão, o nomeado, delegado de carreira do órgão, preenche os requisitos para o cargo (artigo 2c, da Lei 9.266 de 1996).
A defesa da moralidade e da impessoalidade, alegada no mandado de segurança do PDT e reconhecida como fundamento para a concessão da ordem cautelar se sobrepôs a outros princípios constitucionais, em particular, o da soberania do voto popular e o da separação dos Poderes. Ao agir por suposição, sem examinar provas (que ainda não foram apresentadas) e, dessa forma, sem firmar qualquer certeza quanto a danos, o ministro Alexandre de Moraes impôs uma espécie de “censura prévia” aos atos presidenciais, mecanismo estranho ao sistema presidencialista, ao Estado de Direito e à nossa ordem constitucional.
Em face da Constituição, que deve ser sempre examinada de forma sistêmica, nenhum princípio tem valor absoluto, devendo ser sopesado em relação aos demais, a fim de se definir qual tem maior relevância, no caso concreto. Também é entendimento pacífico da doutrina e da jurisprudência que todos os atos administrativos estão sujeitos à revisão pelo Judiciário, se houver violação à lei ou a preceitos constitucionais.  Contudo, tal controle, inerente ao sistema de freios e contrapesos próprio do funcionamento de um Estado democrático, não pode ser vago e abstrato.
Ora, uma suposição de ofensa a preceitos não pode justificar uma dupla ofensa concreta. Em outras palavras, para colocar a salvo a moralidade e a impessoalidade diante de uma suposta ameaça, em relação a qual ainda não há qualquer substância, o juiz não pode, por antecipação, atropelar a soberania do voto popular e a separação de poderes.
Não é demais salientar que, embora não exista hierarquia ou prevalência em abstrato de um determinado princípio sobre o outro, como referido nos parágrafos anteriores, o nosso constituinte expressou de forma clara a partir de que bases deverá ser estruturado o Estado brasileiro, ao inscrever, logo de início, no parágrafo único do artigo 1º da Carta, o princípio da soberania popular e, no artigo 2º, o da separação dos Poderes. A soberania popular é exercida, entre outros eleitos, pelo presidente da República, chefe do Executivo, Poder independente.
A ordem de disposição desses princípios no corpo do texto constitucional por si só é razão suficiente para que as prerrogativas presidenciais não sejam afastadas sumariamente, sem que um tribunal aprecie os fatos no curso de um processo devidamente instaurado, com amplo e profundo exame das provas.  Por maior que seja o receio de que os atos discricionários do chefe do Executivo possam vir a incorrer em desvio de finalidade, o Judiciário não pode, por precaução, tolher a sua autonomia e independência.
O ativismo judicial tem sido uma tendência crescente no Brasil. O Supremo Tribunal Federal, adotando o conceito de “mutação constitucional”, em diferentes ocasiões nos últimos anos, baixou atos normativos em clara invasão da competência do Congresso. A crise de representatividade política em alguma medida retroalimentou essa tendência. No caso do Executivo, a disposição do Presidente da República para o confronto e a sua indisfarçável aposta na polarização, com a demonização da Justiça e da classe política, contribuem para que essa judicialização se acentue.
Porém, se o que se pretende é a estabilidade institucional – e acredito que esse seja um anseio da maioria dos brasileiros -, o primeiro passo é a segurança jurídica, o que depende do respeito à Constituição. No que a Constituição estiver defasada, tendo em vista as demandas da sociedade, sobretudo nos campos econômico e dos costumes, há sempre a possibilidade de reformas, por meio do regular processo legislativo. O que não se pode é, por prevenção, criar atalhos ilegítimos, transformando o nosso Presidencialismo em um Judicialismo anômalo, de imprevisíveis consequências. Nem crises políticas podem servir de desculpa para essa nova modalidade de mutação.

Por Nilson Mello


Nenhum comentário:

Postar um comentário