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domingo, 10 de maio de 2020

Ensaio



Entre marchas e Covid-19, a insensatez

(Texto editado nesta segunda-feira dia 11, em função da atualização do noticiário)

            “A renúncia ao uso da violência para conquistar e exercer o poder é uma característica do método democrático, cujas regras constitutivas prescrevem vários procedimentos para a tomada de decisões coletivas por meio do livre debate, que pode dar origem ou a uma decisão acordada ou a uma decisão tomada pela maioria. Prova disso é que, num sistema democrático, a alternância entre governos de direita e esquerda é possível e legítima”.
            As lições acima são do filósofo, jurista e cientista político italiano Norberto Bobbio[1], um dos maiores pensadores da segunda metade do século XX, ao lado de Karl Popper[2], a quem, invariavelmente, recorria para lembrar que as “sociedades abertas” só são possíveis no interior das estruturas institucionais dos regimes democráticos.
A referência a Bobbio – e também a Popper - é mais que oportuna no momento em que assistimos no Brasil ao que podemos chamar, recorrendo novamente à literatura política, a uma “marcha da insensatez”[3], representada pela reiterada disposição para o confronto e, consequentemente, a escalada das tensões entre os integrantes dos Poderes da República, em meio a uma pandemia de efeitos dramáticos pelo que representa em vidas perdidas e em retrocesso econômico. O entendimento deveria ser a palavra de ordem, mas o que se vê é justamente o oposto.  
Mesmo imperfeita, a democracia é o melhor entre os regimes, como teria ressalvado o então primeiro-ministro britânico Winston Churchill (em livre adaptação das lições dos clássicos), justamente porque permite a convivência de opostos de forma pacífica. Essa convivência implica o respeito à diferença e aos direitos das minorias, ainda que prevalecendo as políticas e os programas de governos escolhidos, nas urnas, pela maioria dos votantes.
Bobbio pontificou e se destacou como formulador na Itália e na Europa do pós-guerra, época em que não só os conflitos partidários entre direita e esquerda eram acirrados, como a guerra entre potências nucleares, iminente. Foi ele o responsável por estender uma ponte para o entendimento, contribuindo para que a democracia italiana caminhasse para a maturidade, livre do terrorismo.
Repassando as lições do filósofo de Turim, não restam dúvidas de que a falta de diálogo construtivo tem sido o fator determinante dos solavancos da democracia brasileira neste ano de 2020. O fato de termos um presidente que se dedica, desde o primeiro dia de mandato, a confrontar aqueles que estão em campo político e ideológico oposto, ao invés de se concentrar em governar, tem sido decisivo para esse processo de desgaste. A isso se soma a intransigência daqueles que não compreendem que a alternância de Poder implica o reconhecimento de uma visão de mundo distinta da sua, e de um programa de governo consoante a essa outra visão. Caímos na armadilha do círculo vicioso.
A responsabilidade maior está com aquele que exerce o principal mandato eletivo. É em relação ao presidente da República que deve recair a maior cobrança. A busca da estabilidade institucional e da sustentabilidade de seu governo recomendaria a renúncia ao que podemos chamar de “violência verbal”. A opção deve ser pelo “lançamento de pontes”, e não pela sua demolição em cadeia.
Com pronunciamentos e atitudes irresponsáveis, como a de participar, em plena quarentena, de uma passeata em que se pede o fechamento do Congresso e a volta do AI-5, ou a de desprezar as recomendações do Ministério da Saúde, no sentido de manter o distanciamento social, o presidente se transformou numa fonte permanente de insegurança institucional. Mais do que isso, testa os limites da democracia.
As suas declarações de deboche em relação à pandemia são um insulto à nação, uma afronta às vítimas, àqueles que perderam seus entes para a doença e aos profissionais de saúde que se arriscam na linha de frente de combate à Covid-19. Na semana passada, em tom de desdém, chegou a anunciar um churrasco de confraternização, depois abortado. Era uma piada, uma pegadinha?
Por prudência, presidentes não participam de atos públicos. O que Bolsonaro pretende com estratégia tão arriscada? Ser novamente o candidato da direita contra a esquerda em 2022, a partir do acirramento da polarização? Por enquanto, o que conseguiu foi potencializar os riscos para o seu governo e colocar em dúvida a própria permanência no cargo. Nesta semana que se inicia, a Procuradoria Geral da República decide se o denuncia por corrupção passiva, obstrução da Justiça e advocatícia administrativa, tendo em vista as suspeitas surgidas no episódio da demissão de Sergio Moro.
 Portanto, são os seus oponentes que têm ganhado terreno. São eles que estão sendo diariamente municiados pelos erros que comete. Nesse processo, em pouco mais de um ano e cinco meses de mandato, Bolsonaro afastou antigos apoiadores e eleitores, dilapidou seu capital político e vai se isolando como um presidente de “nicho”, que fala para uma parcela cada vez menor de seguidores irredutíveis.
No momento em que o país mais precisa de união e estabilidade, gera insegurança e compromete a importante agenda de reformas para a qual foi legitimamente eleito. Diante dos obstáculos que cria, em breve já não será exagero falar em estelionato eleitoral. Governar pode ser “construir estradas”, como disse Washington Luís, mas é, antes de tudo, conquistar aliados.
Na relação conturbada com o Legislativo, restou-lhe agora o abraço do “Centrão”, afeito a fisiologismos e corporativismos que invariavelmente estão na contramão dos interesses da sociedade. Quanto terá que ceder, para manter esse apoio? Sintomaticamente, as queixas dos presidentes da Câmara e do Senado ao Planalto cessaram nas últimas semanas.

O Quarto Poder

Entre os alvos prioritários do presidente esteve sempre a imprensa - sem qualquer exagero, uma das bases da democracia, ou o “Quarto Poder”, para usar novamente os ensinamentos de Bobbio. Na semana que passou Bolsonaro mandou um “cala a boca” para um repórter que, cumprindo seu trabalho, lhe dirigiu uma pergunta. Ora, a obrigação da imprensa é fazer perguntas, sobretudo as desconfortáveis e constrangedoras, pois essa é a forma de trazer ao “tribunal da opinião pública”, conforme salientava Thomas Cooley[4], os atos dos governantes. Esses, por sua vez, têm a obrigação de tentar respondê-las, civilizadamente.
Jornalistas não podem tudo, estão sujeitos a ações cíveis e penais por seus erros - e o Brasil está entre os países que mais processam jornalistas. Até porque liberdade de expressão não é um valor absoluto, acima de todos os outros previstos na Constituição. Porém, jornalistas podem e devem fazer perguntas, é o que se espera deles.
Na verdade, o que deve nos preocupar na conduta dos meios de comunicação é a postura dócil e cordata, não a crítica, inerente à sua função. É compreensível e mesmo desejável, por exemplo, que a imprensa questione a nomeação de um diretor da Polícia Federal, dada a sua proximidade com a família presidencial, e levante suspeitas tendo em vista essa relação. Ainda que a escolha seja prerrogativa do presidente da República, o sensato seria não nomear, a não ser que acima da moralidade esteja mesmo o interesse de acobertar possíveis desvios dos filhos, não importando mais salvar as aparências.
 As preocupações em relação ao equilíbrio institucional e a estabilidade política tornam-se ainda maiores, quando se percebe que a “marcha da insensatez” alcança o outro lado da Praça dos Três Poderes, não se restringindo ao Planalto. É o que se conclui da cassação sumária e atípica, sem julgamento, por um ministro do Supremo, de ato formalmente legal do presidente da República (leia o artigo “Crise política não justifica um “Judicialismo” anômalo”, mais abaixo, aqui neste Blog). Provavelmente, o ministro Alexandre de Moraes não teria deferido a liminar contra o ato presidencial, se não percebesse o enfraquecimento político do chefe do Executivo. E o responsável por esse enfraquecimento, como vimos, foi o próprio presidente.
 Ministros do Supremo são guardiões da Constituição e, por consequência, das instituições. Não podem invadir o espaço de competência de outros poderes, tampouco insultar ou ameaçar seus integrantes. Atitudes como essas não servem à democracia. Por essa razão, também causou surpresa a afronta gratuita aos militares e às Forças Armadas, manifestada no emprego da expressão “debaixo de vara”, em despacho do ministro Celso de Mello que convocou três ministros generais para depor no inquérito que apura as revelações feitas por Sergio Moro.
Se a aposta de ambos os ministros era a escalada das tensões políticas, com mais insegurança institucional, conseguiram o seu intuito, ao menos durante alguns dias. A exemplo de Bolsonaro, testaram os limites da democracia com as suas decisões e, de certa forma, contribuíram para a “marcha da insensatez”.   Justamente de onde se esperava mais segurança, vieram incertezas. A propósito, não é de hoje que o STF, adotando o conceito de “mutação constitucional”, vem invadindo a competência de outros poderes, em especial a do Legislativo.
Em defesa das Forças Armadas, cabe dizer que têm sido elas e seus integrantes os maiores guardiões da Constituição e das instituições, desde a redemocratização há mais de três décadas. Compromisso que foi reiterado na semana passada, em nota oficial do ministro da Defesa, o que fez com que os termos da convocação do ministro parecessem ainda mais injustificáveis.
De volta ao primeiro parágrafo, para finalizar este texto que já está por demais longo, há espaço na democracia tanto para a direita quanto para a esquerda, desde que se respeite a Constituição - e não se cometam loucuras. O exemplo deve vir do presidente da República e de suas excelências, os ministros do Supremo. Aliás, todas as respostas estão na Carta, inclusive o impeachment, este mecanismo de autodefesa e depuração dos regimes democráticos, caso o presidente insista na insensatez.
 Por Nilson Mello





[1] Em “Direita e Esquerda  - razões e significados de uma distinção política”, pág. 35, Editora Unesp.
[2] Filósofo austro-britânico, também considerado um expoente do pensamento democrático do Século XX, com seu conceito de “sociedade aberta”.
[3] A historiadora Bárbara Tuchman, em “A marcha da insensatez”  (Editora José Olímpio, 7ª Edição, 2005), examina uma série de decisões equivocadas que levaram à ruína de governantes e nações.

[4] Constitucionalista americano do século XX, defensor da liberdade de expressão e crítico contundente da escravidão nos EUA.

sexta-feira, 30 de janeiro de 2015

Artigo

A apropriação indébita na politica

Winston Churchill e Getúlio Vargas

           A presidente Dilma Rousseff pouco foi vista no decorrer deste difícil mês de janeiro em que o país enfrentou uma série de reveses em diferentes áreas e a sua nova equipe econômica estruturava as primeiras medidas na tentativa de corrigir erros do primeiro mandato e resgatar a credibilidade do governo e a confiança na economia.
Ainda que nenhum dos percalços do momento - entre os quais figuram um apagão, crescentes problemas com a maior estatal do país em função da corrupção, crise hídrica, escalada da violência urbana e novos indicadores adversos na economia - pudesse ser atribuído ao seu governo ou ao seu partido, o que, convenhamos, não é o caso, pronunciar-se sobre essas matérias, mostrando-se solidária com a população, teria sido uma demonstração de grandeza.
Uma das características que distinguem os estadistas dos governantes comuns é a capacidade de identificar o momento certo para se pronunciar, ainda que na adversidade, enfrentando a verdade. Ao assumir o cargo de primeiro-ministro, em 1940, quando a Inglaterra e o Reino Unido viviam um de seus momentos mais críticos na Segunda Guerra, Winston Churchill afirmou que só poderia prometer “sangue e trabalho, suor e lágrimas”.
Pode-se até não gostar de Churchill, identificado com o conservadorismo e o colonialismo britânicos, mas não se pode deixar de louvar a sua franqueza. Raposa politica, líder e estadista incontestável, Getúlio Vargas, contudo, adotava tática contrária. Deposto da Presidência e eleito senador, licenciava-se e escondia-se na fazenda Itu, em São Borja, sempre que enfrentava dificuldades, e aguardava o momento mais favorável para reaparecer. Seria a postura esquiva um traço do populismo brasileiro?
O marketing político de hoje recomenda ao governante que se distancie da realidade sempre que ela é dura, como a de nossos dias, a fim de que sua imagem não se associe ao fracasso. Tudo muito conveniente. Quem tiver informação e espírito crítico suficientes poderá registrar a omissão, mas para um grande contingente de pessoas (pouco mais da metade do universo de eleitores na última eleição?), a propaganda oficial dará conta de mostrar que tudo vai bem.
No caso presente, a ausência de esclarecimentos à sociedade (e nem falemos aqui em pedidos de desculpas) foi facilitada pelos dias de férias da presidente no retiro da Base Naval de Aratu, na Bahia, a salvo de eventuais cobranças, distante do noticiário. Luiz Inácio Lula da Silva foi um mestre na arte de descolar sua imagem dos problemas que o seu governo pariu e das bobagens que os seus aliados – os “aloprados” – cometeram. A criatura (a definição é do próprio Lula) tenta seguir os passos do criador.
O retorno à rotina de trabalho e ao contato com a realidade (?) ocorreu nesta terça-feira 27, na primeira reunião oficial de seu gabinete, composto por 39 ministros. Para muitos deles (e delas), o encontro terá sido, até o fim do governo, a única ocasião de acesso direto – embora não exclusivo e reservado - à “chefe”. Contraproducente, ineficiente e dispendioso?
O contato rarefeito entre a “comandante” e os seus “comandados”, a exemplo do que ocorreu no primeiro mandato, resultará não apenas da configuração opulenta do primeiro escalão – inflado para acomodar interesses político-partidários - como do estilo autossuficiente de  governar sem ouvir a opinião de auxiliares ou as ignorando, uma marca registrada da presidente, segundo se noticia.
O Ministério inchado, contudo, já se revela, neste início de segundo mandato, improdutivo naquilo que seria, em tese, a sua missão. Se a sua razão de ser (na verdade, a única de caráter prático, embora imoral) é servir de instrumento para ampliar a representatividade da base aliada, e com isso azeitar as relações do Executivo com o Congresso, facilitando-lhe a aprovação das matérias de interesse, algo já saiu errado.
Nas eleições para as presidências da Câmara e do Senado, neste domingo, as chances de derrota do governo são reais. E, mesmo que seus candidatos saiam vitoriosos, tudo indica que as relações com o Legislativo e a classe política serão tensas. Para quem precisa tomar medidas impopulares para corrigir erros e reconquistar credibilidade, o início não parece nada bom. Vitorioso nas urnas, o governo Dilma segue estabanado no trato político.
No discurso para os seus sorridentes 39 ministros na terça-feira, a presidente afirmou, com a pompa que o marketing político recomenda, em meio às notícias que davam conta do apagão e dos efeitos devastadores da corrupção na Petrobras, que o seu “governo jamais descuidou da inflação”, que “estamos diante da necessidade de promover um reequilíbrio fiscal para recuperar o crescimento da economia o mais rápido possível” e que “tomamos algumas medidas que têm caráter corretivo, ou seja, são medidas estruturais que se mostram necessárias.”
Estelionato eleitoral é dizer uma coisa para se eleger, sabendo que é farsa, e fazer outra ao ser eleito. A apropriação indébita, no campo das ideias e ações políticas, pode ser definida como a prática de adotar o projeto de governo do oponente (aquele mesmo que deplorou ao longo de uma campanha falaciosa), sem lhe dar crédito ou reconhecer razão. Com a agravante de não admitir que governou durante quatro anos cometendo os erros que levam, agora, à imposição, irrecorrível, de medidas ainda mais austeras. 
     Este é o retrato do primeiro mês de 2015. Há razões para otimismo?

     Por Nilson Mello