Quem
disse que democracia é simples?
A ideia de qualquer tribunal examinar duas vezes o mesmo processo, por
força de uma ação originária, pode parecer absurda, se considerarmos a inerente
possibilidade de resultados diferentes.
Se um tribunal puder ter posições distintas acerca de um mesmo feito,
jamais haverá segurança jurídica e estabilidade institucional – algo que
contradiz a própria essência do Judiciário. Até porque quem garantiria que não
haveria uma terceira decisão, num seguinte reexame, se cabível, e assim
sucessivamente.
No julgamento pelo Supremo da Ação Penal 470, originária por força do
foro privilegiado, a possibilidade torna-se ainda mais evidente devido à
mudança na composição da Corte, com o ingresso de dois novos integrantes que
não haviam participado do processo, o que certamente amplia as chances de se
ter, em segundo julgamento, um resultado distinto do primeiro.
A virtual admissibilidade dos embargos infringentes, a ser definida com
o voto de minerva de seu ministro decano, na próxima quarta-feira, é a condição
que falta à revisão do processo e a redução (e até mesmo prescrição) das penas
de doze dos 25 condenados. O resultado do extenso e detalhado julgamento do
Mensalão, com suas 50 sessões no ano passado, estaria assim colocado em xeque.
Impossível não reconhecer o impacto negativo na sociedade desse,
digamos, “retrabalho”, na medida em que reforçaria a percepção de que a
impunidade continua a prevalecer no Brasil para os poderosos e que o Judiciário
(nem mesmo o seu órgão de cúpula, no qual tanta esperança se depositou) não
estaria imune às idiossincrasias políticas.
Por outro lado, o duplo grau de jurisdição é um desses institutos
fundamentais no estado democrático de direito porque, partindo do pressuposto
de que o juiz e, por extensão, os tribunais não são infalíveis, o mecanismo
serve de garantia aos cidadãos contra eventuais erros e abusos do
Judiciário.
Assim como ninguém pode ser condenado sem o devido processo legal, pois
do contrário o monopólio da força, reconhecido ao Estado, seria desmedido, toda
decisão judicial merece ser revista, a fim de que se afaste qualquer
possibilidade de punição indevida ao réu.
Se o Estado é indispensável na busca e na manutenção da harmonia social,
seu poder de coerção e sua capacidade punitiva não podem ser irrestritos, sob o
risco de prejudicar os cidadãos – justamente a sua razão de ser.
Foge, portanto, a qualquer concepção razoável sobre justiça ou sobre a
Justiça, em regime democrático (se é que se pode falar em Justiça em regime de
exceção), a possibilidade de um processo penal sem chance de revisão.
O Julgamento do Mensalão pelo Supremo, como ação originária, nos coloca
assim diante de um novo desafio, ainda maior do que aquele que se prenunciou no
início do processo, em 2012: fazer justiça, punir os culpados, mas observando
estritamente todas as regras e princípios democráticos que nossa Constituição
recepcionou.
O empate em 5 a 5 entre os ministros do Supremo não pode ser visto como
alinhamento automático em face de preferências políticas. Ao menos, não de
todos eles. Pois, a rigor, e por mais que sintamos simpatia pela posição
daqueles que propugnaram contrariamente à admissibilidade dos embargos
infringentes, o que afastaria de pleno a possibilidade de reexame e, assim, de
revisão das penas, o fato é que o recurso é legítimo.
Sem resvalar para um tecnicismo enfadonho, é preciso lembrar que a
legislação (Lei 8.038/90) não revogou expressamente os embargos infringentes
previstos no Regimento Interno do Supremo (artigo 333 inciso I), disciplinando,
no que toca o STF, apenas os recursos extraordinários.
A norma regimental foi, portanto, recepcionada pela Constituição e, por
decorrência, pelo Supremo, com força de Lei Ordinária, razão pela qual o
ministro Celso de Mello, certamente o mais respeitado dos ministros, já tem voto
favorável a esse tipo de recurso na própria Ação 470.
O justificável temor expresso no voto do presidente do Supremo, Joaquim
Barbosa, ao rejeitar os embargos infringentes, de que a reapreciação de fatos e
provas pelo mesmo órgão possa eternizar o julgamento, é apenas parte da
verdade. A outra parte é que, num estado democrático de direito, nenhuma
decisão judicial pode estar imune à revisão, sobretudo se há previsão legal
para tanto.
Por Nilson Mello
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