sexta-feira, 9 de agosto de 2013

Artigo

O estado da razão e os gastos do Estado


 O Estado constitui o império da razão, um imperium rationis, como preconizavam Hegel e, antes dele, Hobbes, o idealizador do ente supremo (Leviatã) que resultaria do pacto social e poria fim aos conflitos entre os indivíduos. 

 Nos seus passos, foi firmando-se a certeza de que o Estado é necessário para impedir que o “homem seja o lobo do homem” ou, já no século XX, nas palavras de Carl Schmitt, em nota de comentário em seu O conceito do político, para transformar a guerra civil latente na pacífica coexistência entre os cidadãos de um mesmo país. 

 Um pessimismo não totalmente declarado tanto em Hobbes quanto em Hegel em relação ao homem e a sua (reduzida) capacidade de interagir pacificamente com o seu igual, e menos disfarçado no próprio Schmitt, é o que explica em todos eles concepções de poder com traços de totalitarismo. Um totalitarismo em prol do bem comum e do progresso da humanidade, mas ainda assim (e talvez por isso mesmo) totalitarismo. 

 Hegel, vale aqui a ressalva, ainda ensaiou uma mediação sistemática entre revolução e tradição, mas sua dialética ponderada foi definitivamente transformada em “arma” (na melhor acepção do termo) histórico-filosófica por Marx e Engels, e de forma mais explícita, na sequência, por Lenin.

 Todos eles, sem exceção, queriam a libertação do povo, mas estavam certos de que o objetivo não seria alcançado sem um “comando” maior a guiar os seus destinos. Não deu certo.

 Antes deles, Maquiavel já havia chegado ao mesmo desapontamento com a humanidade, razão pelo qual redigiu uma obra de caráter prático para ensinar o governante a lidar com os súditos obtendo desses as melhores contribuições ao projeto de Estado. Aplicada à realidade atual, a premissa para que as ideias de Maquiavel funcionassem seria a boa intenção do governante ou da classe política. Difícil?

 Justiça seja feita, Maquiavel não foi maquiavélico ao escrever O Príncipe. Se o tivesse sido, teria publicado um livro edificante, um anti-Maquiavel, conforme ressaltou Manuel Fraga Iribane, ao anunciar a publicação de seu El nuevo Maquiavel
 
 Aliás, a bibliografia terceiro-mundista na área da Ciência Política está repleta de obras do tipo anti-Maquiavel, caracterizada pela falsidade intelectual – ou seja, a repetição veemente daquilo em que, no íntimo, não se acredita.
 
 Pois bem, no autor de “O conceito de político”, o viés autoritário se expressa de forma clara na medida em que o desencanto com a recém-fundada democracia liberal da República de Weimar – com seu parlamento heterogêneo e claudicante - vai se aprofundando, o que culminaria na defesa expressa de uma Constituição com previsão para a regra de exceção a ser decidida por um “Guardião” da Lei Suprema que, a despeito da legitimidade formal, nada mais seria do que um ditador. 
 
 A falta de tradição republicana da Alemanha explica apenas em parte o fracasso da Constituição de Weimar e a ascensão de Hitler. A outra parte da explicação pode ser encontrada em Maquiavel, Hobbes, Hegel e no próprio Schmitt e o seu desânimo com o ser humano, sem que para tanto precisemos preconizar o totalitarismo, nos atendo apenas ao diagnóstico que fizeram. 

 Neste início de século XXI, quando nos deparamos com sucessivos e agudos retrocessos econômicos, ao mesmo tempo em que assistimos a grandes manifestações de rua contra os governantes, podemos estar certos de que a crise, na realidade, é do Estado, e não dos fundamentos da Economia. O pacto preconizado por Hobbes, para pacificar os homens, criou um gigante que está nos devorando. 

 A sociedade é a razão de ser do Estado, não o inverso. A notícia publicada nesta sexta-feira de que o investimento federal teve mais uma queda (de 5%) no primeiro semestre deste ano, enquanto as despesas de custeio (jatinhos da FAB para cima e para baixo, entre outros descalabros) no período aumentaram 16,3%, dá a dimensão da inversão de prioridades que tomou conta do país e que, nesses últimos dois meses, têm levado milhões às ruas para protestar. Precisamos refundar o Estado. Refundar na razão.

 Se tivermos aprendido as lições que a História nos oferece, poderemos fazer as mudanças da maneira certa, sem rupturas radicais ou totalitarismos. 


Por Nilson Mello

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