quarta-feira, 2 de março de 2022

A geopolítica da crise

 

A Cisplatina, a guerra da Ucrânia e a atividade global

(Obs: este artigo foi publicado originalmente pela Agência iNFRA)

Nilson Mello

            A Rússia é a sexta principal origem das importações do Brasil e também um importante destino de nosso agronegócio. Em 2021, os fluxos comerciais entre as duas nações foram de US$ 5,7 bilhões em importações brasileiras e US$ 1,6 bilhão em exportações. Compramos, principalmente, derivados de petróleo (em especial, fertilizantes químicos) e trigo, enquanto vendemos, entre outros, carnes e soja. O Brasil é dependente da importação de trigo, e Rússia e Ucrânia são os maiores exportadores do grão, respondendo por quase 30% da demanda mundial.

            Que o comércio desses produtos assim como o transporte marítimo com esses países poderão ser significativamente afetados caso a guerra se estenda (já não é mais uma crise, nem uma operação militar limitada) não restam dúvidas. As sanções impostas à Moscou são uma clara desaprovação da comunidade internacional e não tardarão a trazer graves consequências para a economia russa. Ao cerco econômico se somam agora sanções esportivas que incluem a exclusão pela Fifa da Copa do Mundo.

A prova de que a Rússia planejou durante muito tempo suas ações militares – e se preparou para as restrições financeiras – está no fato de ter aumentado vertiginosamente suas reservas, que hoje alcançam US$ 630 bilhões. Somente as reservas em ouro foram aumentadas de R$ 100 bilhões para US$ 132 bilhões, em menos de uma década. Em função de sua exclusão do principal sistema internacional de pagamentos e compensações (Swift), ainda não está claro quanto desses recursos ainda poderá movimentar – e de que forma.

As maiores preocupações, no entanto, não estão restritas apenas ao que se passa no Leste Europeu, mas à reação em cadeia que o conflito potencializa, afetando a atividade econômica ao redor do mundo. O conflito pode comprometer o desempenho econômico de Estados Unidos e China, as “locomotivas” globais, num momento em que havia forte expectativa de uma retomada sustentável, após o período mais crítico da pandemia de Covid-19. Paralelamente, o risco de maior pressão inflacionária, em função de novos problemas nas cadeias de suprimentos, pode levar os Bancos Centrais a adotarem políticas monetárias mais restritivas, aumentado os juros.

Esse por si só seria um fator inibidor do crescimento, em diferentes economias: empresas passam a tomar menos recursos, para evitar aumento do endividamento, o que reduz a possibilidade de investimentos. E agentes econômicos em geral tendem a buscar ativos de segurança, como ouro e títulos do Tesouro americano, o que também, em tese, reduz a disponibilidade de capitais para os grandes investimentos, em especial em infraestrutura e em países emergentes como o Brasil.

Contudo, todo este cenário é conjectural, longe ainda de estar concretizado, lembrando que uma saída diplomática, com um acordo de cessar-fogo no curto prazo, não está de forma alguma descartada. Em torno do que não cabem mais dúvidas é em relação às alegações do Kremlin para a invasão. Elas são infundadas: não há provas de que populações de origem russa estivessem sob perseguição em território ucraniano. O argumento falacioso remete àquele utilizado por Hitler para anexar os Sudetos, em 1938, numa etapa preliminar da Segunda Guerra Mundial, minimizada pelos demais líderes europeus de então.

A justificativa da origem histórica comum dos dois países, de seus laços étnicos, culturais e religiosos indissociáveis (a Igreja Ortodoxa russa surgiu em Kiev), tampouco é válida para desqualificar a autonomia e a independência ucraniana. O país é hoje um Estado soberano, e assim deve ser visto pela comunidade internacional, não importando o fato de ter sido domínio da Rússia por séculos. Guardando as devidas proporções, seria como se o Brasil decidisse anexar o Uruguai com base em questões históricas e geopolíticas, considerando a forte colonização de origem luso-brasileira em solo uruguaio, o fato de ter sido território brasileiro até a Guerra Cisplatina (1825-1828) e de não haver fronteira natural entre os dois países (fronteira “seca”).

Putin reclama da expansão da OTAN após o fim da Guerra Fria e o consequente desmantelamento do Pacto de Varsóvia. Acusa os aliados ocidentais de uma projeção de poder militar nas fronteiras russas. De fato, talvez as negociações para o ingresso da Ucrânia na organização não tenham sido um movimento dos mais sensatos.

Porém, para uma reflexão honesta da questão, antes devemos nos perguntar se os estados-satélites do antigo Bloco Comunista, como Polônia e Romênia, bem como ex-repúblicas soviéticas, como Letônia, Estônia e Lituânia, não ingressaram na OTAN justamente por se sentirem ameaçados por uma Rússia liderada há 20 anos por um dirigente de perfil autocrata e de indisfarçável inspiração expansionista. Em outras palavras, não viria do Leste a verdadeira ameaça?

 

 

terça-feira, 1 de março de 2022

Guerra no Leste Europeu

                                       Ucrânia: diagnóstico e prognósticos

 


Nilson Mello

 

Putin não conseguiu realizar uma blitzkrieg para tomar Kiev rapidamente. Segundo especialistas em estratégia militar, isso se deve ao fato de ter adaptado o seu objetivo inicial, passando de uma operação militar originalmente limitada às províncias com conflitos separatistas do sul da Ucrânia, para uma conquista de todo o território ucraniano, e capitulação de seu governo a partir de uma rápida tomada da capital - o que não ocorreu.

A razão para o fracasso de sua “blitzkrieg”, além da tenacidade do povo e do Exército ucranianos, estaria no fato de o avanço russo, ao contrário da guerra relâmpago da Wehrmacht no início da Segunda Guerra Mindial, não ter sido feito em escalas subsequentes, deixando grandes “hiatos” (gaps) logísticos na retaguarda. O que se pode esperar agora? Uma das possibilidades é que a Ucrânia se transforme num território conflagrado com o conflito se estendendo por longo prazo.

Uma preocupação neste sentido se justifica pelo fato de muitos grupos, de variadas tendências ideológicas, e com diferentes interesses políticos, terem se organizado em milícias armadas na Ucrânia para auxiliar o Exército regular no enfrentamento às forças russas. Muitos desses grupos receberam reforços de voluntários estrangeiros, de origens étnicas e religiosas díspares. Isso talvez possa transformar a Ucrânia num campo de batalha por tempo indeterminado, com o conflito se estendendo anos a fio, sem definição de vitorioso, mal comparando, como ocorreu na Guerra Civil do Líbano (1975 a 1990) e mais recentemente na Síria.

Uma vitória russa, após duras batalhas e tomada do poder, não afastaria esta possibilidade, pois o conflito tenderia a se estender contra o domínio russo. A alternativa preocupante seria a de Putin, percebendo que não haverá a fácil conquista que esperava, e se vendo pressionando pelas fortes sanções internacionais, fazer uso de arma nuclear. A possibilidade é remota, mas não está totalmente descartada, sobretudo tendo em vista o perfil do “líder” soviético.

A melhor alternativa, pela qual a ONU e a comunidade internacional conjuga os seus melhores esforços, é um acordo imediato de cessar-fogo e a retomada das negociações diplomáticas. Ainda há espaço para essas negociações. A questão é saber como esse mosaico de grupos díspares se comportará após o fim das hostilidades formais.

Por fim, há quem diga que Putin perdeu prestígio interno com a guerra, ou mesmo que foi à guerra numa tentativa de renovar o seu prestígio, que já estaria em declínio após mais de duas décadas no poder. Assim, em tese, sua queda, por desgaste e pressão interna, não pode estar totalmente descartada - lembrando apenas que esta hipótese não elimina outras questões relacionadas à Ucrânia, conforme mencionadas acima. O cenário é, portanto, de grande imprevisibilidade.

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Paralelo Ucrânia x Uruguai
Guardando as devidas proporções, seria como se hoje o Brasil decidisse invadir o Uruguai com base em questões históricas (forte colonização de origem luso-brasileira e território que já pertenceu ao Brasil até o Primeiro Reinado); geográficas (a rigor, a Região Sul do Brasil, em particular o extremo do Rio Grande do Sul, predominantemente uma planície, os Pampas, se estende até o Rio da Prata, em fronteira “seca”, sem delimitação por rio); e geopolíticas e estratégicas. A exemplo do que ocorreu com a Ucrânia, em relação à divisão artificial feita pela antiga URSS, poderia o Brasil alegar que a “Província Oriental del Rio de la Plata” (o Uruguai) é um pseudo-Estado, um artificialismo criado sob a pressão de potências estrangeiras, em particular a Inglaterra, durante a Guerra da Cisplatina (1825-1828). Desde então e mais recentemente, populações de origem brasileira estariam sendo discriminadas, quando não atacadas. Além disso, alegaria, se não houvesse a criação do Uruguai, sequer teria havido a Guerra do Paraguai (1865-1870), décadas depois, pois a segurança do Prata não estaria em jogo… E por aí vai. Os argumentos de Putin, para invadir a Ucrânia, não estão muito distantes disso… Ou seja, são insustentáveis à luz da moral.


terça-feira, 22 de fevereiro de 2022

Judiciário

 

Os bilhões de mais de 70 milhões de brasileiros

em jogo no julgamento da ADIN 5090 no Supremo

           


                                                   (obs: Artigo publicado originalmente pelo Consultor Jurídico)

Nilson Mello

Estimam-se em mais de 70 milhões de trabalhadores os brasileiros com direito à revisão do saldo de seu Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS), cujas cifras, somadas, se corrigidas por índice que efetivamente reflita a inflação, devem ultrapassar os R$ 300 bilhões. O julgamento pelo Supremo Tribunal Federal da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADIN) 5090 definirá se os depósitos do FGTS devem de fato ser atualizados por índice diferente da Taxa Referencial (TR), como ocorre até hoje, em função de dispositivos previstos nas Leis 8.630/1990 e 8.177/1991, mais precisamente, os artigos 13 e 17 dessas respectivas normas.

O impacto da questão para o erário, como se vê, é significativo, e não por outra razão o julgamento já foi adiado três vezes desde o primeiro semestre de 2021. Recentemente, foi retirado da pauta da sessão de 06 de maio, sem nova data prevista. A ADIN 5090 foi ajuizada em 2014 pelo partido Solidariedade. O relator do processo é o ministro Luís Roberto Barroso, que em setembro de 2019 sobrestou todos os feitos relativos à questão até a decisão final da referida ADIN. Milhões de ações protocoladas nos tribunais brasileiros estão, portanto, suspensas aguardando o desfecho do processo.

No primeiro semestre do ano passado, com a iminência do julgamento da ADIN em 13 de maio (logo depois remarcado para 12 de dezembro e novamente retirado de pauta), um grande contingente de trabalhadores acorreram aos tribunais, por meio de seus representantes, propondo ações revisionais do FGTS. A pressa, na ocasião, se devia ao temor de que, numa eventual modulação temporal, o Supremo pudesse deixar de fora aqueles demandantes que não tivessem ajuizado seus pedidos antes do julgamento da ADIN.

Ainda que esse entendimento seja questionável à luz da melhor doutrina e da jurisprudência, uma vez que implicaria um tratamento anti-isonômico em relação a pessoas com idêntico direito, algo expressamente vedado pela Constituição da República, a postura conservadora preponderou, levando a um aumento substancial do número dessas ações. Não restam dúvidas de que decisões atípicas do próprio Supremo nos últimos tempos, dando interpretação muito própria ao texto constitucional, tenham contribuindo para disseminar esse temor.

A rigor, por óbvio, a decisão final, se reconhecer que a TR não é idônea para corrigir o FGTS, porque não reflete a inflação, deverá beneficiar a todos que tenham saldos nas contas vinculadas na Caixa Econômica Federal (CEF), ainda que não estejam trabalhando ou que já tenham sacado valores quando da demissão.

Uma dúvida frequente entre os interessados na época era se, sendo uma decisão com repercussão geral, que atinge a todas as pessoas com depósitos nas contas vinculadas de FGTS, bastaria esperar que a própria CEF, após o julgamento com decisão pela correção por índice de inflação, providenciasse de ofício a atualização dos saldos, disponibilizando os recursos. Ou se um pedido administrativo, junto ao banco público, seria suficiente para resolver a questão.

Essas possibilidades simplesmente não existem, o que significa que, a partir de uma decisão favorável aos trabalhadores, será preciso ajuizar ação para executar o título judicial. Isso vale tanto para aqueles que estão em ações coletivas, lideradas por sindicatos, ou em litisconsórcio facultativo ativo (pessoas com direitos homogêneos que decidem ingressar em grupo) ou demandantes individuais. Outra questão relevante em torno do julgamento é quanto ao prazo prescricional.

Neste particular, cabe esclarecer que essas ações não são de cunho trabalhista, mas, sim, administrativo.  Não se trata aqui de trabalhadores em face de empregadores, mas de correntistas em face da Caixa Econômica Federal. Uma vez que essas ações não estão questionando os valores dos depósitos feitos, mas, sim, a correção do saldo, o prazo prescricional não é de cinco anos, mas de 30. Esse é um dos pontos a serem firmados no julgamento da ADI no Supremo.

Sem dúvida, o melhor entendimento a respeito é o que se baseia no verbete sumular nº 210, do Superior Tribunal de Justiça (STJ), dispondo que “a ação de cobrança de contribuições para o FGTS prescreve em trinta anos”, bem como na decisão proferida no Recurso Especial 1.112.520, julgado sob o regime de recurso repetitivo, determinando ser trintenária a prescrição para a cobrança de correção monetária de contas vinculadas ao FGTS, no caso de expurgos inflacionários referentes aos índices de junho/1987 a fevereiro/1991. 

Não apenas neste particular, mas de forma geral, do ponto de vista doutrinário e também considerando a jurisprudência do Supremo, o pleito é francamente favorável aos trabalhadores, o que deverá significar grande desembolso para o Tesouro – o que explica a demora de seu julgamento em meio a graves incertezas quanto ao equilíbrio fiscal e as dificuldades orçamentárias do país. A propósito, o Banco Central figura como amicus curiae (amigo da corte) na ADIN 5090, devido às implicações fiscais do processo.

Salientemos a seguir, resumidamente, alguns aspectos doutrinários favoráveis à arguição dos demandantes. Em primeiro lugar, como já ficou evidente, as ações se justificam em virtude da necessidade de aplicação de índice de correção monetária que reflita de forma fidedigna a inflação incidente sobre os depósitos efetuados a partir de janeiro de 1999. Com isso, pretende-se obter provimento jurisdicional que condene a CEF à “obrigação de fazer” de aplicar o índice de correção que melhor reflita a inflação a partir do período mencionado, de forma a atender o poder aquisitivo da moeda.

A Lei nº 8.036/1990, em seu art. 2º, prevê a atualização do FGTS mediante a aplicação da Taxa Referencial (TR) mais a capitalização anual de juros de 3%.  Esse índice de correção apresentou grande defasagem a partir do ano de 1999, devido a alterações realizadas pelo Banco Central.  Tal situação perdura até os dias de hoje. Basta dizer que, em 2013, ano que precedeu o ajuizamento da ADIN 5090, a TR foi de 0,19%, enquanto o INPC e o IPCA foram, respectivamente, de 5,84% e 5,56%.

Portanto, a ausência de uma taxa de atualização monetária que se mostre capaz de manter o poder de compra da moeda, no caso do saldo da conta vinculada do FGTS, é uma nítida afronta ao sistema jurídico vigente. Mantida a TR como índice de atualização, subsiste uma clara violação do art. 2º e do art. 9º, § 2º, da Lei nº 8.036/90, que propugna pela manutenção do poder aquisitivo do trabalhador.

A manutenção da aplicação da TR afasta o indispensável equilíbrio econômico entre as partes, tendo em vista que, no momento dos saques dos valores, estes poderão ter valor de troca inferior ao quantum inicialmente depositado – os chamados juros negativos. Além disso, o que é mais grave, a aplicação da TR acarreta séria violação ao art. 5º, inciso XXII, da Constituição da República, preceito garantidor do direito de propriedade. Em outras palavras, ao não corrigir o saldo do FGTS por índice que efetivamente reflita a inflação, a CEF se apropria de recursos dos trabalhadores, o que caracteriza “enriquecimento ilícito”.

Ressalte-se que o saldo do FGTS integra o patrimônio do trabalhador, e a sua não correção ou uma correção que não acompanhe a inflação implica a redução do direito de propriedade do trabalhador. Diante disso, padecem de constitucionalidade o art. 13, da Lei nº 8.036/1990, bem como o art. 17, da Lei nº 8.117/1991, dispositivos esses atacados pela ADIN 5090, porque determinam que a TR deve ser o índice de correção a ser aplicado a todos os depósitos do FGTS.

Cabe ainda salientar, em favor dos trabalhadores, que o próprio Supremo já fixou entendimento de que a TR não corrige a inflação em diferentes julgamentos, entre os quais os das ADINs 4357, 4327, 4400, 4425. Além disso, a taxa foi considerada inconstitucional em outros julgados, como as ADINs 5867 e 6021. Vale ainda lembrar que o próprio Poder Executivo reconheceu que a TR não é índice capaz de corrigir a inflação ao estabelecer, na Lei de Diretrizes Orçamentárias 12919/2013, na em seu art. 27, que os Precatórios do ano de 2014 seriam corrigidos pelo IPCA-E do IBGE.

Esses são, portanto, os pontos mais relevantes do julgamento da ADIN 5090 e das ações revisionais do saldo das contas vinculadas do FGTS.

 

*(Nilson Mello é advogado formado pela PUC-Rio, sócio do Ferreira de Mello Advocacia (FMA). Tem pós-graduações em Direito Financeiro e Tributário pela FGV e em Economia/Análise de Conjuntura pela UFRJ. É também Mestre em Filosofia do Direito (PUC) e membro do Instituto Brasileiro dos Advogados (IAB), onde integra as Comissões de Direito Financeiro e Tributário, Direito Aduaneiro e Marítimo, de Infraestrutura e de Filosofia do Direito. É autor de “Direito e Política na Filosofia convergente de Norberto Bobbio”)

 

 

Conflito

                                                                 Com a faca entre os dentes



Impressionou (e me surpreendeu) o tom da fala do Putin ontem (21/02) na TV. Contra minhas previsões (ver post anterior), foi para a briga, mesmo. Sim, porque, a rigor, a Russia já invadiu a Ucrânia. Isso só não está sendo dito claramente pelos governos ocidentais (e OTAN) porque exigiria uma resposta à altura.
Putin veio subindo o tom, subindo, subindo… e não blefou. Errei duplamente, porque também achei que Biden estivesse delirando quando alertava para a iminência da invasão, em momentos que parecia já haver um claro distensionamento em curso…
Mais uma crise global...

terça-feira, 15 de fevereiro de 2022

Geopolítica

                                                            Putin, o enxadrista



Nilson Mello

Putin joga xadrez diplomático. É hábil e estrategista. Fabricou esta crise com a Ucrânia para consolidar seu prestígio e para tentar restaurar à Rússia o papel de potência Global, ou ao menos não relegá-la de vez a um segundo plano. A possibilidade de esse movimento de fato terminar em guerra (algo que não interessa a ninguém) sempre foi remota, mas ainda assim a jogada foi arriscadíssima - justamente porque o conflito armado não interessa a nenhuma das partes, muito menos à Rússia.

A motivação do conflito seria o fato de a aliança ocidental (OTAN) estar nas fronteiras russas, hoje acomodando ex-estados satélites soviéticos, o que, reitera Putin, com muita eloquência e inteligência, é uma “projeção de poder”, uma ameaça permanente. Seria quase como se a Venezuela, Cuba ou o México ingressassem numa aliança militar liderada pela Rússia e permitissem, em seu território, mísseis apontados para os Estados Unidos.

Ocorre que esses ex-satélites aderiram à OTAN justamente porque se sentiam ameaçados por Moscou. Outro dado relevante é que os Estados Unidos não abocanharam, ao menos recentemente, territórios dos vizinhos. Recentemente, pois, no Século XIX, tomaram do México uma vasta área que hoje engloba Califórnia, Arizona, Nova México, Montana, Colorado e parte de outros estados, sem contar o que foi conquistado da França, desde o Sul do Golfo do México até o Norte do Missouri.

Muito bem, foi a possibilidade de invasão russa – e não o contrário - que fez o governo de Kiev procurar o mesmo caminho que seus vizinhos, ensaiando ingressar na aliança do Atlântico Norte, o que serviu de estopim para a atual crise, lembrando que outro dia mesmo (2014) a Ucrânia teve parte de seu território (na Crimeia) (re) tomada pela Rússia. Na Crimeia está uma antiga base naval soviética. O território faz parte de uma grande região cedida por Moscou a Kiev em meio à estruturação da URSS promovida pelos primeiros líderes soviéticos. Há também na Ucrânia uma considerável parcela da população de origem russa, além de atuantes movimentos separatistas pró-Rússia.

Nenhum desses aspectos históricos e políticos, contudo, é argumento suficiente para impedir o governo da Ucrânia, democraticamente escolhido pela maioria de sua população, de escolher qual aliança integrar. Putin está ciente disso, mas, se aceitasse calado a entrada da Ucrânia (a mais importante das antigas Repúblicas soviéticas) na OTAN, seria como se a Rússia renunciasse de vez a um papel geopolítico de relevância. Como enxadrista diplomático, preferiu o risco.

No cálculo político, até para o seu “público interno”, ficar inerte traria um prejuízo maior, para si e para o país que governa. Agiu ciente de que não precisaria ir às vias de fato. E por essa razão, não deve haver qualquer surpresa em relação ao seu sutil recuo desta terça-feira, que distendeu tensões e aliviou mercados.

quinta-feira, 10 de fevereiro de 2022

RJ perde líder empresarial

 

Ruy Barreto,

construtor do entendimento



(Obs: artigo publicado em conjunto com o site da Sociedade Nacional de Agricultura - SNA)

Nilson Mello*

            O Rio de Janeiro perdeu neste início de fevereiro um de seus mais vibrantes e corajosos empresários. Ruy Barreto, presidente da Associação Comercial do Rio de Janeiro (ACRJ) por três mandatos, entre 1978 e 1985, e seu grande benemérito, e também presidente, fundador e membro de uma série de outras entidades dos setores agrícola, comercial e industrial, faleceu na madrugada do último sábado, dia 05, aos 95 anos, deixando um grande vazio num Estado e numa cidade que cada vez mais carecem de homens com o seu perfil de liderança.

Mineiro de Muriaé, na Zona da Mata, Ruy Barreto foi um incansável defensor da economia fluminense, mesmo quando do lado oposto estavam os interesses de seu também querido estado de Minas Gerais ou de várias unidades da Federação em conjunto. Não importava o desafio, se a causa fosse justa, nela se engajava com todo o seu engenho e talento. Foi assim, por exemplo, nos difíceis embates pela devida distribuição dos royalties do petróleo no Rio de Janeiro ou pela cobrança do ICMS sobre o produto nos estados produtores.

Aguerrido em suas posições, sempre combativo, mas leal nas disputas, teve o respeito dos adversários. Contribuiu para tanto o fato de nunca se negar ao diálogo e ao entendimento. Ao contrário, ao longo de sua trajetória, dedicou-se a construir relacionamentos, a ampliar alianças, e a aglutinar forças. Foi um “construtor de pontes” e, neste sentido, um homem público na melhor acepção do termo, traço que, somado ao empreendedorismo, o coloca no rol das grandes lideranças empresariais do país, cuja referência é Irineu Evangelista de Sousa, o Barão de Mauá.

O espírito pioneiro e a certeza de que era preciso estabelecer pontes, o levavam permanentemente a desbravar mercados. Durante o período militar, e em Plena Guerra Fria, foi a Cuba, um movimento de aproximação inimaginável para os empresários brasileiros da época. Na visita, foi recebido pessoalmente por Fidel Castro, numa longa e produtiva audiência da qual costumava se recordar com bom humor. Outros tantos destinos e objetivos foram conquistados com o mesmo pioneirismo. Entre outras empresas, foi sócio controlador e diretor-presidente da Bhering e do Café Solúvel Brasília (CSB), cujas exportações alcançaram 72 países, a maioria “fronteiras” as quais o grão brasileiro ainda não havia chegado.

Um apaixonado pela cultura do café, dizia que a riqueza cafeeira no Brasil “se fez – em grande parte e durante muito tempo – com base numa fórmula muito simples: na palavra, na confiança”. O comentário consta de Os Sinos de São João – a vida e os tempos de Raphael Barreto, livro de sua autoria que narra a epopeia de seu pai e de sua família como produtores rurais e comerciantes e que é também um impressionante relato sobre o desenvolvimento da cafeicultura no Brasil. Pois bem, confiança era o que Ruy Barreto inspirava em todos que com ele trabalharam.

Além da ACRJ, presidiu a Confederação das Associações Comerciais do Brasil (CACB), a Federação das Câmaras de Comércio Exterior e a Federação das Associações Comerciais, Industriais e Agropastoris do Rio de Janeiro (Faciarj). Foi ainda vice-presidente da Associação Brasileira da Indústria do Café, bem como fundador e membro dos Conselhos Empresariais Brasil-Portugal e Brasil-Argentina e da Fundação Nacional do Câncer. Deixa a esposa, Rosa Maria, os filhos Maria Cecília, Raphael e Ruy Barreto Filho, seis netos e um legado de empreendedorismo e humanidade.

*Advogado e jornalista

           

sexta-feira, 4 de fevereiro de 2022

O Julgamento do RE 949.297 no Supremo

 

O vício de origem da Lei da CSLL,

a "coisa julgada" e os contribuintes

 


 Nilson Mello

            Entre os julgamentos relevantes previstos para este ano no Supremo Tribunal Federal (STF), dois na esfera tributária merecem destaque pela repercussão geral de seus efeitos na sociedade e, consequentemente, pelo forte impacto que poderão causar aos contribuintes - ou aos cofres públicos. São os Recursos Extraordinários (RE) 949.297 e 955.227, cujos julgamentos estão agendados para a sessão de 11 de maio, tendo como relatores, respectivamente, os ministros Edson Fachin e Luís Roberto Barroso. O julgamento estava na pauta da sessão do dia 15 de dezembro, mas acabou sendo adiado.

Calcula-se que cada um desses processos afetará diretamente cerca de 1 milhão de contribuintes pessoas jurídicas, além de trazer um novo entendimento teórico para temas de enorme importância para o mundo jurídico. O que está em jogo nos dois processos são os limites da coisa julgada em matéria tributária, a partir do controle concentrado e abstrato feito pelo Supremo em que houve declaração de constitucionalidade de tributo anteriormente considerado inconstitucional.

            Em outras palavras, trata-se de saber se as decisões do STF fazem cessar os efeitos futuros da coisa julgada em matéria tributária, quando a sentença tiver se baseado na constitucionalidade ou inconstitucionalidade do tributo. Ambos os casos se arrastam por décadas e colocam em colisão alguns dos mais importantes princípios norteadores do direito tributário e do direito administrativo, em especial o da isonomia e o do interesse público. Por essa razão, os dois processos se tornaram paradigmas (leading cases) da questão em foco, cabendo ao RE 949.297/CE o Tema 881 e ao RE 955.227/BA, o Tema 885, no Supremo.

            O presente artigo toma como foco o RE 949.297/CE, por ter sido este objeto de debate no Instituto dos Advogados Brasileiros (IAB), ocasião em que fui designado para elaborar parecer a respeito, com pedido vinculado para que a instituição ingresse como amicus curiae (amigo da Corte) na causa – pedido este ainda não examinado. Cabe lembrar, preliminarmente, a relevância da coisa julgada, também verdadeiro princípio de nosso arcabouço jurídico, expressamente protegido pelo art. 5º, inciso XXXVI.  Na coisa julgada alicerça-se a eficácia das decisões judiciais e, portanto, a própria segurança jurídica, indispensável à preservação do Estado Democrático de Direito.

            Igualmente oportuno é salientar a diferença entre o controle de constitucionalidade concentrado e abstrato e o controle difuso. O controle concentrado exercido pelo Supremo e proferido em Ação Direta de Inconstitucionalidade, Ação Declaratória de Constitucionalidade, Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão ou Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental produz os seus efeitos para toda a sociedade. Esse controle é feito em relação a uma causa específica (como a atinente ao RE 949.297/CE), mas tem um caráter abstrato no sentido de que a tese assentada ali repercute de forma geral e a todos vincula. No controle difuso, ao contrário, a decisão produzirá efeitos apenas entre as partes envolvidas, embora possa servir de referência jurisprudencial em outros julgamentos.

Para avançarmos na discussão teórica, é preciso proceder a um breve histórico do RE 949.297/CE e de seus precedentes. Em 2007, o Supremo julgou a Ação Direta de Inconstitucionalidade 15-2 (ADI 15-2), que questionava a constitucionalidade da Lei 7.689/1988, instituidora da Contribuição sobre o Lucro Líquido (CSLL). Declarou a ADI improcedente por considerar que não haveria necessidade de Lei Complementar para instituir o referido tributo. Como vemos, a questão fática de fundo do Tema 881 refere-se à constitucionalidade da CSLL. A contribuição tem claro vício de origem, uma vez que foi instituída por norma ordinária (Lei 7.689/1988), e não por Lei Complementar, como determina a Constituição (art. 146 caput e inciso III).

No caso em tela, num espaço de pouco mais de duas décadas, o Supremo alterou significativamente o seu entendimento sobre a constitucionalidade da CSLL. Em sede de controle difuso, em 1992, vinculando diretamente apenas dois contribuintes, entendeu que o tributo era inconstitucional, mas não por vício de origem e, sim, porque ofendia o princípio da irretroatividade tributária. Mais tarde, em 2007, em controle concentrado de constitucionalidade, a Corte alterou sua jurisprudência e declarou, implicitamente, a constitucionalidade da CSLL, surpreendendo os contribuintes que acompanhavam a jurisprudência do tribunal. A questão do flagrante vício de origem da lei que institui o tributo não foi devidamente enfrentada nas duas ocasiões.

            Agora, portanto, o objetivo do Tema 881 é saber se a decisão com trânsito em julgado declarando a inexistência de relação jurídico-tributária, sob o fundamento de inconstitucionalidade incidental do tributo, perde a sua eficácia em razão de superveniente declaração de constitucionalidade de sua norma introdutora, na via de controle incidental pelo Supremo. Secundariamente, cabe saber também qual será a modulação de seus efeitos: serão retroativos (ex tunc) e prospectivos (ex nunc), ou apenas retroativos? Mais: seria preciso Ação Revisional da sentença com trânsito em julgado para fazer valer cobrança pela Fazenda Nacional a partir do novo entendimento definido pelo Supremo em controle de constitucionalidade ou a aplicação seria automática? Eis as questões teóricas que dão ainda mais relevo ao julgamento de 11 de maio.

Por óbvio, figura como reclamante no RE 949.297 a União, por meio da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional. O reclamado é a empresa TBM – Têxtil Bezerra de Menezes, de Fortaleza. O Acórdão do Tribunal Regional da 5ª Região manteve a sentença em ação mandamental ajuizada em 1989 pela TBM, com trânsito em julgado em agosto de 1992, declarando a inconstitucionalidade da Lei 7.688/89. Dessa forma, eximiu a autora do recolhimento do referido tributo.

A exemplo da TBM, muitos contribuintes obtiveram decisões que já transitaram em julgado reconhecendo a inconstitucionalidade da lei que instituiu a CSLL, por vício formal, e, neste sentido, passaram a não mais recolher o tributo. O argumento da Fazenda Nacional é de que o tratamento dado pelo Judiciário a esses contribuintes fere o princípio da isonomia, expresso na Constituição, e também ultrapassa o limite da coisa julgada afastando, por sua vez, a possibilidade de reconhecimento da “supremacia do interesse público”.

Em março de 2016, o Supremo reconheceu a repercussão geral da controvérsia relacionada aos limites da coisa julgada em matéria tributária, nos casos em que o próprio tribunal declara, em controle concentrado, a constitucionalidade de tributo que havia sido considerado inconstitucional em controle incidental e com decisão transitada em julgado.

Como resultado, o Fisco Nacional passou a exigir a CSLL das empresas que até aquele momento estavam isentas por força de decisão judicial transitada em julgado, assumindo o entendimento de que houve a alteração da Lei 7.688/1989 e que seria aplicável a Súmula 239 do Supremo, segundo a qual “decisão que declara indevida a cobrança de imposto em determinado exercício não faz coisa julgada em relação a [exercícios] posteriores”. Portanto, bilhões de recursos de milhares de empresas estão envolvidos na questão. Por outro lado, no Resp 1.118.893/2011, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) reconheceu a ausência da alteração da Lei e a inaplicabilidade da Súmula 239, quando se trata de declaração de inconstitucionalidade de norma instituidora de tributo, trazendo ainda mais controvérsia ao tema.

Para não perdemos de vista o referencial histórico-cronológico da questão, cumpre lembrar que, diante do imbróglio fiscal e na iminência de ser obrigada a pagar quantias vultosas, a TBM do Ceará impetrou mandado de segurança arguindo a inconstitucionalidade da Contribuição sobre o Lucro Líquido (CSLL), salientando que a criação do tributo requer a edição de Lei Complementar, cercada de maior rigor no processo de produção legislativa, nos termos do art. 146, inciso III, alínea “a” da Constituição. Em 14 de agosto de 1992, houve o trânsito em julgado da decisão que reconheceu a existência desse vício formal e determinou a inexigibilidade do tributo. A partir daí, a empresa contribuinte deixou de recolher a CSLL, assim como outras centenas de contribuintes em todo o país.

            Contudo, como em 14 de junho de 2007, no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 15-2, o Supremo Tribunal Federal, em contradição ao que expressamente determina a Constituição, decidiu que não haveria obrigatoriedade de edição de Lei Complementar para a instituição da CSLL, a Receita Federal instaurou processo de fiscalização contra a TBM. A empresa, por sua vez, impetrou novo mandado de segurança (preventivo) para impedir a lavratura de Autos de Infração que objetivassem a cobrança da CSLL, com fundamento no trânsito em julgado da decisão que lhe era favorável (Acórdão do Tribunal da 5ª Região).

Deste segundo mandado de segurança originou-se a discussão no âmbito do RE 949.297. Após a prolação de decisão favorável ao Contribuinte pelo Tribunal Regional Federal da 5ª Região, a União interpôs o Recurso Extraordinário alegando afronta aos princípios da instrumentalidade, legalidade, proporcionalidade, isonomia e supremacia do interesse público sobre o particular.

Argumentou ainda que seria vedada a extensão dos efeitos da decisão que declarou a inconstitucionalidade da CSLL aos exercícios seguintes, sob pena de afronta à Súmula nº 239 do STF. Os Pareceres da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional nº 432/2011 e da Procuradoria-Geral da República nº 138597/2016 corroboraram os argumentos União no sentido de que a decisão do Supremo, por meio de controle concentrado de constitucionalidade, alterou o ordenamento jurídico, modificando circunstâncias jurídicas da relação de trato sucessivo entre contribuinte-Fisco tendo em vista a cobrança do CSLL, o que originou, assim, uma nova relação jurídica.

Todo o contexto considerado, devemos ter em mente para o enfrentamento crítico da matéria alguns eixos de significativa repercussão no mundo jurídico que acabam por gerar mais controvérsias do que pacificação, mas que são incontornáveis no seu exame. O principal deles, do qual se desdobram todos os demais, é se o Supremo tem o poder de transformar lei flagrantemente inconstitucional, porque contrária a dispositivo constitucional expresso, em norma válida em face da própria Lei Maior. Nos referimos aqui, evidentemente, à exigência constitucional para a instituição de tributo, que requer a edição de Lei Complementar (art. 146, incisos II e III da Constituição de 1988).

Na prática, atuando consoante o espírito de “mutação constitucional” que tem caracterizado a sua atuação e motivado as suas decisões nos últimos anos, o Supremo ignorou a regra prevista na Carta de 1988 para validar, por meio da ADI 15-2, a Lei 7.689/1988, da CSLL. Portanto, a partir deste momento, sem que o processo legislativo regular venha a revogar a referida Lei, não há medida cabível da qual contribuintes ou sociedade possa lançar mão para invalidar a norma. A crítica quanto ao “judicialismo anômalo” da qual decorre uma clara invasão de competência de Poder é legitima, porém, torna-se um embate inglório no mundo prático da operação jurisdicional. Afinal, a Corte Constitucional reconheceu a validade da Lei: a Lei é constitucional, para todos os efeitos.

Emergem daí, como consequência, os outros princípios em clara colisão, tendo a questão fática de fundo como palco do embate. Se a norma é válida, porque o órgão de cúpula do Judiciário assim o decidiu, não há mais de se falar em inconstitucionalidade, e o princípio da legalidade passa a estar presente. Sendo assim, ninguém, ou nenhum contribuinte, pode se eximir de fazer aquilo que a lei determina. Aqui, em sentido inverso, aplica-se, o disposto art. 5º, inciso II. É norma, tem que ser cumprida, não se pode deixar de fazer.

Do que se desdobra a questão da isonomia, expressa pelo inciso I do mesmo artigo 5º. Se um contribuinte está adstrito ao cumprimento da exigência fiscal, todos os demais, em igual situação, ou seja, todos aqueles que realizam o mesmo fato gerador, de idêntica incidência, também devem cumprir, do contrário estar-se-ia dando guarida a um tratamento anti-isonômico, em ataque frontal ao dispositivo constitucional. A questão é de natureza constitucional. Não se trata aqui de discutir se a CSLL é um tributo de boa qualidade, que cumpre os melhores requisitos da técnica tributária. Por outro lado, não se pode mais discutir a constitucionalidade da lei que instituiu o referido tributo, pois os “guardiões da Constituição” já a consideraram válida – goste-se ou não da decisão.

Contudo, ainda que se reconhecendo a imutabilidade da constitucionalidade da Lei 7.689/1988 pela Corte (a não ser que a própria Corte venha a mudar o seu entendimento, ou que o Legislativo a revogue ou derrogue), nosso entendimento é no sentido de que não se poderia exigir o recolhimento do tributo de forma retrospectiva, por força da garantia à coisa julgada, expressa no inciso XXXVI, do art. 5º da Constituição da República: “a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada”.

Que o Fisco cobre do contribuinte o recolhimento do tributo a partir do reconhecimento da constitucionalidade da lei que o instituiu parece ser uma decisão mais em consonância com os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade, orientadores da administração pública. A Fazenda estaria atuando de forma contrária a esses mesmos princípios, em afronta ao inciso XXXVI do art. 5º da Constituição, se fizer exigência de forma retrospectiva (ex-tunc), alcançando os valores que deixaram de ser recolhidos antes do reconhecimento da constitucionalidade da lei.

 Entendemos, assim, que a decisão transitada em julgado que declarou a inexistência da relação jurídico-tributária, beneficiando o contribuinte, perdeu sua eficácia apenas parcialmente. Em respeito aos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade e, principalmente, em respeito à “coisa julgada”, o contribuinte não deve ser cobrado pelo que deixou de recolher antes do reconhecimento da constitucionalidade da norma instituidora do tributo. Ainda assim, o impacto dessa solução para os contribuintes seria gigantesco, provocando, certamente, a falência de várias empresas, com inimagináveis prejuízos sociais.

Outra discussão teórica a ser enfrentada no julgamento do RE 949.297 em 11 de maio, considera que, uma vez que a coisa julgada individual se afigura imutável, a Ação Revisional (Código de Processo Civil, art. 505, inciso I) seria o único instrumento para interromper os seus efeitos. Neste caso, os contribuintes poderiam argumentar que, uma vez que a União teria perdido o prazo para tanto, a questão está definida, não havendo mais possibilidade de cobrança pelo Fisco, muito menos por meio de autuação administrativa.

Em contraposição a esse entendimento, o Fisco sustenta que desde 1992 os contribuintes não estavam mais autorizados a se valer das decisões contra a cobrança da CSLL, em face dos julgamentos pelo STF dos Res 146.733/SP, e 138.284/CE (decisões em controle difuso), declarando a constitucionalidade da Lei 7.689/1988. Além disso, alega que nenhum contribuinte pode se manter imune à cobrança da CSLL, porque isso representaria ofensas aos princípios da instrumentabilidade, proporcionalidade e supremacia do interesse público. Argui ainda ofensas aos arts. 3º, inciso V, e 5º caput e incisos II e XXXVI, que garantem o tratamento isonômico perante a Lei.

Neste sentido, os pareceres da Procuradoria Geral da República (nº 138597/2016) e da Procuradoria da Fazenda Nacional (nº 432/2011) salientam que a decisão do Supremo, por meio do controle concentrado de constitucionalidade, alterou o ordenamento jurídico, modificando circunstâncias jurídicas da relação no trato sucessivo Contribuinte-Fisco. A tese é de que uma nova relação jurídica se originou da alteração do ordenamento jurídico pelo controle concentrado, o que justificaria a cobrança inclusive de forma retroativa.

Se reconhecidos apenas os efeitos prospectivos (ex nunc), excluindo-se a possibilidade de retroatividade, será necessário ainda definir se esses efeitos incidiriam sobre fatos ocorridos após a decisão do Supremo na Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 15-2 até os dias de hoje, ou aqueles ocorridos (fatos geradores) após a decisão exarada no julgamento do próprio RE 949.297/CE, ou ainda em momento ulterior a ser definido na mesma decisão.

São essas, portanto, as grandes variáveis que exigirão dos julgadores do RE 949.297 o melhor de seus conhecimentos jurídicos, cientes da enorme repercussão que sua decisão colegiada terá para os contribuintes, a economia e a sociedade.