A Cisplatina, a guerra da Ucrânia e a
atividade global
Nilson Mello
A Rússia é a
sexta principal origem das importações do Brasil e também um importante destino
de nosso agronegócio. Em 2021, os fluxos comerciais entre as duas nações foram
de US$ 5,7 bilhões em importações brasileiras e US$ 1,6 bilhão em exportações.
Compramos, principalmente, derivados de petróleo (em especial, fertilizantes
químicos) e trigo, enquanto vendemos, entre outros, carnes e soja. O Brasil é
dependente da importação de trigo, e Rússia e Ucrânia são os maiores exportadores
do grão, respondendo por quase 30% da demanda mundial.
Que o
comércio desses produtos assim como o transporte marítimo com esses países poderão
ser significativamente afetados caso a guerra se estenda (já não é mais uma
crise, nem uma operação militar limitada) não restam dúvidas. As sanções
impostas à Moscou são uma clara desaprovação da comunidade internacional e não
tardarão a trazer graves consequências para a economia russa. Ao cerco
econômico se somam agora sanções esportivas que incluem a exclusão pela Fifa da
Copa do Mundo.
A prova de que a Rússia planejou
durante muito tempo suas ações militares – e se preparou para as restrições
financeiras – está no fato de ter aumentado vertiginosamente suas reservas, que
hoje alcançam US$ 630 bilhões. Somente as reservas em ouro foram aumentadas de
R$ 100 bilhões para US$ 132 bilhões, em menos de uma década. Em função de sua
exclusão do principal sistema internacional de pagamentos e compensações
(Swift), ainda não está claro quanto desses recursos ainda poderá movimentar –
e de que forma.
As maiores preocupações, no entanto,
não estão restritas apenas ao que se passa no Leste Europeu, mas à reação em
cadeia que o conflito potencializa, afetando a atividade econômica ao redor do
mundo. O conflito pode comprometer o desempenho econômico de Estados Unidos e
China, as “locomotivas” globais, num momento em que havia forte expectativa de
uma retomada sustentável, após o período mais crítico da pandemia de Covid-19. Paralelamente,
o risco de maior pressão inflacionária, em função de novos problemas nas
cadeias de suprimentos, pode levar os Bancos Centrais a adotarem políticas
monetárias mais restritivas, aumentado os juros.
Esse por si só seria um fator
inibidor do crescimento, em diferentes economias: empresas passam a tomar menos
recursos, para evitar aumento do endividamento, o que reduz a possibilidade de
investimentos. E agentes econômicos em geral tendem a buscar ativos de
segurança, como ouro e títulos do Tesouro americano, o que também, em tese,
reduz a disponibilidade de capitais para os grandes investimentos, em especial
em infraestrutura e em países emergentes como o Brasil.
Contudo, todo este cenário é
conjectural, longe ainda de estar concretizado, lembrando que uma saída
diplomática, com um acordo de cessar-fogo no curto prazo, não está de forma
alguma descartada. Em torno do que não cabem mais dúvidas é em relação às
alegações do Kremlin para a invasão. Elas são infundadas: não há provas de que
populações de origem russa estivessem sob perseguição em território ucraniano.
O argumento falacioso remete àquele utilizado por Hitler para anexar os
Sudetos, em 1938, numa etapa preliminar da Segunda Guerra Mundial, minimizada
pelos demais líderes europeus de então.
A justificativa da origem histórica
comum dos dois países, de seus laços étnicos, culturais e religiosos
indissociáveis (a Igreja Ortodoxa russa surgiu em Kiev), tampouco é válida para
desqualificar a autonomia e a independência ucraniana. O país é hoje um Estado
soberano, e assim deve ser visto pela comunidade internacional, não importando o
fato de ter sido domínio da Rússia por séculos. Guardando as devidas proporções, seria como se o Brasil
decidisse anexar o Uruguai com base em questões históricas e geopolíticas,
considerando a forte colonização de origem luso-brasileira em solo uruguaio, o
fato de ter sido território brasileiro até a Guerra Cisplatina (1825-1828) e de
não haver fronteira natural entre os dois países (fronteira “seca”).
Putin reclama da expansão da OTAN após o fim da
Guerra Fria e o consequente desmantelamento do Pacto de Varsóvia. Acusa os
aliados ocidentais de uma projeção de poder militar nas fronteiras russas. De
fato, talvez as negociações para o ingresso da Ucrânia na organização não
tenham sido um movimento dos mais sensatos.
Porém, para uma reflexão honesta da questão,
antes devemos nos perguntar se os estados-satélites do antigo Bloco Comunista,
como Polônia e Romênia, bem como ex-repúblicas soviéticas, como Letônia,
Estônia e Lituânia, não ingressaram na OTAN justamente por se sentirem
ameaçados por uma Rússia liderada há 20 anos por um dirigente de perfil autocrata
e de indisfarçável inspiração expansionista. Em outras palavras, não viria do
Leste a verdadeira ameaça?
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