Os bilhões de mais de 70
milhões de brasileiros
em jogo no julgamento da
ADIN 5090 no Supremo
Nilson
Mello
Estimam-se
em mais de 70 milhões de trabalhadores os brasileiros com direito à revisão do
saldo de seu Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS), cujas cifras,
somadas, se corrigidas por índice que efetivamente reflita a inflação, devem
ultrapassar os R$ 300 bilhões. O julgamento pelo Supremo Tribunal Federal da
Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADIN) 5090 definirá se os depósitos do FGTS
devem de fato ser atualizados por índice diferente da Taxa Referencial (TR),
como ocorre até hoje, em função de dispositivos previstos nas Leis 8.630/1990 e
8.177/1991, mais precisamente, os artigos 13 e 17 dessas respectivas normas.
O
impacto da questão para o erário, como se vê, é significativo, e não por outra
razão o julgamento já foi adiado três vezes desde o primeiro semestre de 2021.
Recentemente, foi retirado da pauta da sessão de 06 de maio, sem nova data
prevista. A ADIN 5090 foi ajuizada em 2014 pelo partido Solidariedade. O
relator do processo é o ministro Luís Roberto Barroso, que em setembro de 2019
sobrestou todos os feitos relativos à questão até a decisão final da referida
ADIN. Milhões de ações protocoladas nos tribunais brasileiros estão, portanto,
suspensas aguardando o desfecho do processo.
No
primeiro semestre do ano passado, com a iminência do julgamento da ADIN em 13
de maio (logo depois remarcado para 12 de dezembro e novamente retirado de
pauta), um grande contingente de trabalhadores acorreram aos tribunais, por
meio de seus representantes, propondo ações revisionais do FGTS. A pressa, na
ocasião, se devia ao temor de que, numa eventual modulação temporal, o Supremo
pudesse deixar de fora aqueles demandantes que não tivessem ajuizado seus
pedidos antes do julgamento da ADIN.
Ainda
que esse entendimento seja questionável à luz da melhor doutrina e da
jurisprudência, uma vez que implicaria um tratamento anti-isonômico em relação
a pessoas com idêntico direito, algo expressamente vedado pela Constituição da
República, a postura conservadora preponderou, levando a um aumento substancial
do número dessas ações. Não restam dúvidas de que decisões atípicas do próprio
Supremo nos últimos tempos, dando interpretação muito própria ao texto constitucional,
tenham contribuindo para disseminar esse temor.
A
rigor, por óbvio, a decisão final, se reconhecer que a TR não é idônea para
corrigir o FGTS, porque não reflete a inflação, deverá beneficiar a todos que
tenham saldos nas contas vinculadas na Caixa Econômica Federal (CEF), ainda que
não estejam trabalhando ou que já tenham sacado valores quando da demissão.
Uma
dúvida frequente entre os interessados na época era se, sendo uma decisão com
repercussão geral, que atinge a todas as pessoas com depósitos nas contas
vinculadas de FGTS, bastaria esperar que a própria CEF, após o julgamento com
decisão pela correção por índice de inflação, providenciasse de ofício a
atualização dos saldos, disponibilizando os recursos. Ou se um pedido
administrativo, junto ao banco público, seria suficiente para resolver a
questão.
Essas
possibilidades simplesmente não existem, o que significa que, a partir de uma
decisão favorável aos trabalhadores, será preciso ajuizar ação para executar o
título judicial. Isso vale tanto para aqueles que estão em ações coletivas,
lideradas por sindicatos, ou em litisconsórcio facultativo ativo (pessoas com
direitos homogêneos que decidem ingressar em grupo) ou demandantes individuais.
Outra questão relevante em torno do julgamento é quanto ao prazo prescricional.
Neste
particular, cabe esclarecer que essas ações não são de cunho trabalhista, mas,
sim, administrativo. Não se trata aqui
de trabalhadores em face de empregadores, mas de correntistas em face da Caixa
Econômica Federal. Uma vez que essas ações não estão questionando os valores
dos depósitos feitos, mas, sim, a correção do saldo, o prazo prescricional não
é de cinco anos, mas de 30. Esse é um dos pontos a serem firmados no julgamento
da ADI no Supremo.
Sem dúvida, o melhor
entendimento a respeito é o que se baseia no verbete sumular nº 210, do
Superior Tribunal de Justiça (STJ), dispondo que “a ação de cobrança de
contribuições para o FGTS prescreve em trinta anos”, bem como na decisão
proferida no Recurso Especial 1.112.520, julgado sob o regime de recurso
repetitivo, determinando ser trintenária a prescrição para a cobrança de
correção monetária de contas vinculadas ao FGTS, no caso de expurgos
inflacionários referentes aos índices de junho/1987 a fevereiro/1991.
Não
apenas neste particular, mas de forma geral, do ponto de vista doutrinário e
também considerando a jurisprudência do Supremo, o pleito é francamente
favorável aos trabalhadores, o que deverá significar grande desembolso para o
Tesouro – o que explica a demora de seu julgamento em meio a graves incertezas
quanto ao equilíbrio fiscal e as dificuldades orçamentárias do país. A
propósito, o Banco Central figura como amicus
curiae (amigo da corte) na ADIN 5090, devido às implicações fiscais do
processo.
Salientemos
a seguir, resumidamente, alguns aspectos doutrinários favoráveis à arguição dos
demandantes. Em primeiro lugar, como já ficou evidente, as ações se justificam em virtude da necessidade
de aplicação de índice de correção monetária que reflita de forma fidedigna a
inflação incidente sobre os depósitos efetuados a partir de janeiro de 1999.
Com isso, pretende-se obter provimento jurisdicional que condene a CEF à
“obrigação de fazer” de aplicar o índice de correção que melhor reflita a
inflação a partir do período mencionado, de forma a atender o poder aquisitivo
da moeda.
A Lei nº 8.036/1990, em seu
art. 2º, prevê a atualização do FGTS mediante a aplicação da Taxa Referencial
(TR) mais a capitalização anual de juros de 3%.
Esse índice de correção apresentou grande defasagem a partir do ano de
1999, devido a alterações realizadas pelo Banco Central. Tal situação perdura até os dias de hoje.
Basta dizer que, em 2013, ano que precedeu o ajuizamento da ADIN 5090, a TR foi
de 0,19%, enquanto o INPC e o IPCA foram, respectivamente, de 5,84% e 5,56%.
Portanto, a ausência de uma
taxa de atualização monetária que se mostre capaz de manter o poder de compra
da moeda, no caso do saldo da conta vinculada do FGTS, é uma nítida afronta ao
sistema jurídico vigente. Mantida a TR como índice de atualização, subsiste uma
clara violação do art. 2º e do art. 9º, § 2º, da Lei nº 8.036/90, que propugna
pela manutenção do poder aquisitivo do trabalhador.
A manutenção da aplicação
da TR afasta o indispensável equilíbrio econômico entre as partes, tendo em
vista que, no momento dos saques dos valores, estes poderão ter valor de troca
inferior ao quantum inicialmente depositado – os chamados juros
negativos. Além disso, o que é mais grave, a aplicação da TR acarreta séria violação
ao art. 5º, inciso XXII, da Constituição da República, preceito garantidor do
direito de propriedade. Em outras palavras, ao não corrigir o saldo do FGTS por
índice que efetivamente reflita a inflação, a CEF se apropria de recursos dos
trabalhadores, o que caracteriza “enriquecimento ilícito”.
Ressalte-se que o saldo do
FGTS integra o patrimônio do trabalhador, e a sua não correção ou uma correção
que não acompanhe a inflação implica a redução do direito de propriedade do
trabalhador. Diante disso, padecem de constitucionalidade o art. 13, da Lei nº
8.036/1990, bem como o art. 17, da Lei nº 8.117/1991, dispositivos esses
atacados pela ADIN 5090, porque determinam que a TR deve ser o índice de
correção a ser aplicado a todos os depósitos do FGTS.
Cabe ainda salientar, em
favor dos trabalhadores, que o próprio Supremo já fixou entendimento de que a
TR não corrige a inflação em diferentes julgamentos, entre os quais os das
ADINs 4357, 4327, 4400, 4425. Além disso, a taxa foi considerada inconstitucional
em outros julgados, como as ADINs 5867 e 6021. Vale ainda lembrar que o próprio
Poder Executivo reconheceu que a TR não é índice capaz de corrigir a inflação
ao estabelecer, na Lei de Diretrizes Orçamentárias 12919/2013, na em seu art.
27, que os Precatórios do ano de 2014 seriam corrigidos pelo IPCA-E do IBGE.
Esses são, portanto, os
pontos mais relevantes do julgamento da ADIN 5090 e das ações revisionais do
saldo das contas vinculadas do FGTS.
*(Nilson
Mello é advogado formado pela PUC-Rio, sócio do Ferreira de Mello Advocacia
(FMA). Tem pós-graduações em Direito Financeiro e Tributário pela FGV e em
Economia/Análise de Conjuntura pela UFRJ. É também Mestre em Filosofia do
Direito (PUC) e membro do Instituto Brasileiro dos Advogados (IAB), onde integra
as Comissões de Direito Financeiro e Tributário, Direito Aduaneiro e Marítimo,
de Infraestrutura e de Filosofia do Direito. É autor de “Direito e Política na
Filosofia convergente de Norberto Bobbio”)
”
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