terça-feira, 15 de fevereiro de 2022

Geopolítica

                                                            Putin, o enxadrista



Nilson Mello

Putin joga xadrez diplomático. É hábil e estrategista. Fabricou esta crise com a Ucrânia para consolidar seu prestígio e para tentar restaurar à Rússia o papel de potência Global, ou ao menos não relegá-la de vez a um segundo plano. A possibilidade de esse movimento de fato terminar em guerra (algo que não interessa a ninguém) sempre foi remota, mas ainda assim a jogada foi arriscadíssima - justamente porque o conflito armado não interessa a nenhuma das partes, muito menos à Rússia.

A motivação do conflito seria o fato de a aliança ocidental (OTAN) estar nas fronteiras russas, hoje acomodando ex-estados satélites soviéticos, o que, reitera Putin, com muita eloquência e inteligência, é uma “projeção de poder”, uma ameaça permanente. Seria quase como se a Venezuela, Cuba ou o México ingressassem numa aliança militar liderada pela Rússia e permitissem, em seu território, mísseis apontados para os Estados Unidos.

Ocorre que esses ex-satélites aderiram à OTAN justamente porque se sentiam ameaçados por Moscou. Outro dado relevante é que os Estados Unidos não abocanharam, ao menos recentemente, territórios dos vizinhos. Recentemente, pois, no Século XIX, tomaram do México uma vasta área que hoje engloba Califórnia, Arizona, Nova México, Montana, Colorado e parte de outros estados, sem contar o que foi conquistado da França, desde o Sul do Golfo do México até o Norte do Missouri.

Muito bem, foi a possibilidade de invasão russa – e não o contrário - que fez o governo de Kiev procurar o mesmo caminho que seus vizinhos, ensaiando ingressar na aliança do Atlântico Norte, o que serviu de estopim para a atual crise, lembrando que outro dia mesmo (2014) a Ucrânia teve parte de seu território (na Crimeia) (re) tomada pela Rússia. Na Crimeia está uma antiga base naval soviética. O território faz parte de uma grande região cedida por Moscou a Kiev em meio à estruturação da URSS promovida pelos primeiros líderes soviéticos. Há também na Ucrânia uma considerável parcela da população de origem russa, além de atuantes movimentos separatistas pró-Rússia.

Nenhum desses aspectos históricos e políticos, contudo, é argumento suficiente para impedir o governo da Ucrânia, democraticamente escolhido pela maioria de sua população, de escolher qual aliança integrar. Putin está ciente disso, mas, se aceitasse calado a entrada da Ucrânia (a mais importante das antigas Repúblicas soviéticas) na OTAN, seria como se a Rússia renunciasse de vez a um papel geopolítico de relevância. Como enxadrista diplomático, preferiu o risco.

No cálculo político, até para o seu “público interno”, ficar inerte traria um prejuízo maior, para si e para o país que governa. Agiu ciente de que não precisaria ir às vias de fato. E por essa razão, não deve haver qualquer surpresa em relação ao seu sutil recuo desta terça-feira, que distendeu tensões e aliviou mercados.

quinta-feira, 10 de fevereiro de 2022

RJ perde líder empresarial

 

Ruy Barreto,

construtor do entendimento



(Obs: artigo publicado em conjunto com o site da Sociedade Nacional de Agricultura - SNA)

Nilson Mello*

            O Rio de Janeiro perdeu neste início de fevereiro um de seus mais vibrantes e corajosos empresários. Ruy Barreto, presidente da Associação Comercial do Rio de Janeiro (ACRJ) por três mandatos, entre 1978 e 1985, e seu grande benemérito, e também presidente, fundador e membro de uma série de outras entidades dos setores agrícola, comercial e industrial, faleceu na madrugada do último sábado, dia 05, aos 95 anos, deixando um grande vazio num Estado e numa cidade que cada vez mais carecem de homens com o seu perfil de liderança.

Mineiro de Muriaé, na Zona da Mata, Ruy Barreto foi um incansável defensor da economia fluminense, mesmo quando do lado oposto estavam os interesses de seu também querido estado de Minas Gerais ou de várias unidades da Federação em conjunto. Não importava o desafio, se a causa fosse justa, nela se engajava com todo o seu engenho e talento. Foi assim, por exemplo, nos difíceis embates pela devida distribuição dos royalties do petróleo no Rio de Janeiro ou pela cobrança do ICMS sobre o produto nos estados produtores.

Aguerrido em suas posições, sempre combativo, mas leal nas disputas, teve o respeito dos adversários. Contribuiu para tanto o fato de nunca se negar ao diálogo e ao entendimento. Ao contrário, ao longo de sua trajetória, dedicou-se a construir relacionamentos, a ampliar alianças, e a aglutinar forças. Foi um “construtor de pontes” e, neste sentido, um homem público na melhor acepção do termo, traço que, somado ao empreendedorismo, o coloca no rol das grandes lideranças empresariais do país, cuja referência é Irineu Evangelista de Sousa, o Barão de Mauá.

O espírito pioneiro e a certeza de que era preciso estabelecer pontes, o levavam permanentemente a desbravar mercados. Durante o período militar, e em Plena Guerra Fria, foi a Cuba, um movimento de aproximação inimaginável para os empresários brasileiros da época. Na visita, foi recebido pessoalmente por Fidel Castro, numa longa e produtiva audiência da qual costumava se recordar com bom humor. Outros tantos destinos e objetivos foram conquistados com o mesmo pioneirismo. Entre outras empresas, foi sócio controlador e diretor-presidente da Bhering e do Café Solúvel Brasília (CSB), cujas exportações alcançaram 72 países, a maioria “fronteiras” as quais o grão brasileiro ainda não havia chegado.

Um apaixonado pela cultura do café, dizia que a riqueza cafeeira no Brasil “se fez – em grande parte e durante muito tempo – com base numa fórmula muito simples: na palavra, na confiança”. O comentário consta de Os Sinos de São João – a vida e os tempos de Raphael Barreto, livro de sua autoria que narra a epopeia de seu pai e de sua família como produtores rurais e comerciantes e que é também um impressionante relato sobre o desenvolvimento da cafeicultura no Brasil. Pois bem, confiança era o que Ruy Barreto inspirava em todos que com ele trabalharam.

Além da ACRJ, presidiu a Confederação das Associações Comerciais do Brasil (CACB), a Federação das Câmaras de Comércio Exterior e a Federação das Associações Comerciais, Industriais e Agropastoris do Rio de Janeiro (Faciarj). Foi ainda vice-presidente da Associação Brasileira da Indústria do Café, bem como fundador e membro dos Conselhos Empresariais Brasil-Portugal e Brasil-Argentina e da Fundação Nacional do Câncer. Deixa a esposa, Rosa Maria, os filhos Maria Cecília, Raphael e Ruy Barreto Filho, seis netos e um legado de empreendedorismo e humanidade.

*Advogado e jornalista

           

sexta-feira, 4 de fevereiro de 2022

O Julgamento do RE 949.297 no Supremo

 

O vício de origem da Lei da CSLL,

a "coisa julgada" e os contribuintes

 


 Nilson Mello

            Entre os julgamentos relevantes previstos para este ano no Supremo Tribunal Federal (STF), dois na esfera tributária merecem destaque pela repercussão geral de seus efeitos na sociedade e, consequentemente, pelo forte impacto que poderão causar aos contribuintes - ou aos cofres públicos. São os Recursos Extraordinários (RE) 949.297 e 955.227, cujos julgamentos estão agendados para a sessão de 11 de maio, tendo como relatores, respectivamente, os ministros Edson Fachin e Luís Roberto Barroso. O julgamento estava na pauta da sessão do dia 15 de dezembro, mas acabou sendo adiado.

Calcula-se que cada um desses processos afetará diretamente cerca de 1 milhão de contribuintes pessoas jurídicas, além de trazer um novo entendimento teórico para temas de enorme importância para o mundo jurídico. O que está em jogo nos dois processos são os limites da coisa julgada em matéria tributária, a partir do controle concentrado e abstrato feito pelo Supremo em que houve declaração de constitucionalidade de tributo anteriormente considerado inconstitucional.

            Em outras palavras, trata-se de saber se as decisões do STF fazem cessar os efeitos futuros da coisa julgada em matéria tributária, quando a sentença tiver se baseado na constitucionalidade ou inconstitucionalidade do tributo. Ambos os casos se arrastam por décadas e colocam em colisão alguns dos mais importantes princípios norteadores do direito tributário e do direito administrativo, em especial o da isonomia e o do interesse público. Por essa razão, os dois processos se tornaram paradigmas (leading cases) da questão em foco, cabendo ao RE 949.297/CE o Tema 881 e ao RE 955.227/BA, o Tema 885, no Supremo.

            O presente artigo toma como foco o RE 949.297/CE, por ter sido este objeto de debate no Instituto dos Advogados Brasileiros (IAB), ocasião em que fui designado para elaborar parecer a respeito, com pedido vinculado para que a instituição ingresse como amicus curiae (amigo da Corte) na causa – pedido este ainda não examinado. Cabe lembrar, preliminarmente, a relevância da coisa julgada, também verdadeiro princípio de nosso arcabouço jurídico, expressamente protegido pelo art. 5º, inciso XXXVI.  Na coisa julgada alicerça-se a eficácia das decisões judiciais e, portanto, a própria segurança jurídica, indispensável à preservação do Estado Democrático de Direito.

            Igualmente oportuno é salientar a diferença entre o controle de constitucionalidade concentrado e abstrato e o controle difuso. O controle concentrado exercido pelo Supremo e proferido em Ação Direta de Inconstitucionalidade, Ação Declaratória de Constitucionalidade, Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão ou Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental produz os seus efeitos para toda a sociedade. Esse controle é feito em relação a uma causa específica (como a atinente ao RE 949.297/CE), mas tem um caráter abstrato no sentido de que a tese assentada ali repercute de forma geral e a todos vincula. No controle difuso, ao contrário, a decisão produzirá efeitos apenas entre as partes envolvidas, embora possa servir de referência jurisprudencial em outros julgamentos.

Para avançarmos na discussão teórica, é preciso proceder a um breve histórico do RE 949.297/CE e de seus precedentes. Em 2007, o Supremo julgou a Ação Direta de Inconstitucionalidade 15-2 (ADI 15-2), que questionava a constitucionalidade da Lei 7.689/1988, instituidora da Contribuição sobre o Lucro Líquido (CSLL). Declarou a ADI improcedente por considerar que não haveria necessidade de Lei Complementar para instituir o referido tributo. Como vemos, a questão fática de fundo do Tema 881 refere-se à constitucionalidade da CSLL. A contribuição tem claro vício de origem, uma vez que foi instituída por norma ordinária (Lei 7.689/1988), e não por Lei Complementar, como determina a Constituição (art. 146 caput e inciso III).

No caso em tela, num espaço de pouco mais de duas décadas, o Supremo alterou significativamente o seu entendimento sobre a constitucionalidade da CSLL. Em sede de controle difuso, em 1992, vinculando diretamente apenas dois contribuintes, entendeu que o tributo era inconstitucional, mas não por vício de origem e, sim, porque ofendia o princípio da irretroatividade tributária. Mais tarde, em 2007, em controle concentrado de constitucionalidade, a Corte alterou sua jurisprudência e declarou, implicitamente, a constitucionalidade da CSLL, surpreendendo os contribuintes que acompanhavam a jurisprudência do tribunal. A questão do flagrante vício de origem da lei que institui o tributo não foi devidamente enfrentada nas duas ocasiões.

            Agora, portanto, o objetivo do Tema 881 é saber se a decisão com trânsito em julgado declarando a inexistência de relação jurídico-tributária, sob o fundamento de inconstitucionalidade incidental do tributo, perde a sua eficácia em razão de superveniente declaração de constitucionalidade de sua norma introdutora, na via de controle incidental pelo Supremo. Secundariamente, cabe saber também qual será a modulação de seus efeitos: serão retroativos (ex tunc) e prospectivos (ex nunc), ou apenas retroativos? Mais: seria preciso Ação Revisional da sentença com trânsito em julgado para fazer valer cobrança pela Fazenda Nacional a partir do novo entendimento definido pelo Supremo em controle de constitucionalidade ou a aplicação seria automática? Eis as questões teóricas que dão ainda mais relevo ao julgamento de 11 de maio.

Por óbvio, figura como reclamante no RE 949.297 a União, por meio da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional. O reclamado é a empresa TBM – Têxtil Bezerra de Menezes, de Fortaleza. O Acórdão do Tribunal Regional da 5ª Região manteve a sentença em ação mandamental ajuizada em 1989 pela TBM, com trânsito em julgado em agosto de 1992, declarando a inconstitucionalidade da Lei 7.688/89. Dessa forma, eximiu a autora do recolhimento do referido tributo.

A exemplo da TBM, muitos contribuintes obtiveram decisões que já transitaram em julgado reconhecendo a inconstitucionalidade da lei que instituiu a CSLL, por vício formal, e, neste sentido, passaram a não mais recolher o tributo. O argumento da Fazenda Nacional é de que o tratamento dado pelo Judiciário a esses contribuintes fere o princípio da isonomia, expresso na Constituição, e também ultrapassa o limite da coisa julgada afastando, por sua vez, a possibilidade de reconhecimento da “supremacia do interesse público”.

Em março de 2016, o Supremo reconheceu a repercussão geral da controvérsia relacionada aos limites da coisa julgada em matéria tributária, nos casos em que o próprio tribunal declara, em controle concentrado, a constitucionalidade de tributo que havia sido considerado inconstitucional em controle incidental e com decisão transitada em julgado.

Como resultado, o Fisco Nacional passou a exigir a CSLL das empresas que até aquele momento estavam isentas por força de decisão judicial transitada em julgado, assumindo o entendimento de que houve a alteração da Lei 7.688/1989 e que seria aplicável a Súmula 239 do Supremo, segundo a qual “decisão que declara indevida a cobrança de imposto em determinado exercício não faz coisa julgada em relação a [exercícios] posteriores”. Portanto, bilhões de recursos de milhares de empresas estão envolvidos na questão. Por outro lado, no Resp 1.118.893/2011, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) reconheceu a ausência da alteração da Lei e a inaplicabilidade da Súmula 239, quando se trata de declaração de inconstitucionalidade de norma instituidora de tributo, trazendo ainda mais controvérsia ao tema.

Para não perdemos de vista o referencial histórico-cronológico da questão, cumpre lembrar que, diante do imbróglio fiscal e na iminência de ser obrigada a pagar quantias vultosas, a TBM do Ceará impetrou mandado de segurança arguindo a inconstitucionalidade da Contribuição sobre o Lucro Líquido (CSLL), salientando que a criação do tributo requer a edição de Lei Complementar, cercada de maior rigor no processo de produção legislativa, nos termos do art. 146, inciso III, alínea “a” da Constituição. Em 14 de agosto de 1992, houve o trânsito em julgado da decisão que reconheceu a existência desse vício formal e determinou a inexigibilidade do tributo. A partir daí, a empresa contribuinte deixou de recolher a CSLL, assim como outras centenas de contribuintes em todo o país.

            Contudo, como em 14 de junho de 2007, no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 15-2, o Supremo Tribunal Federal, em contradição ao que expressamente determina a Constituição, decidiu que não haveria obrigatoriedade de edição de Lei Complementar para a instituição da CSLL, a Receita Federal instaurou processo de fiscalização contra a TBM. A empresa, por sua vez, impetrou novo mandado de segurança (preventivo) para impedir a lavratura de Autos de Infração que objetivassem a cobrança da CSLL, com fundamento no trânsito em julgado da decisão que lhe era favorável (Acórdão do Tribunal da 5ª Região).

Deste segundo mandado de segurança originou-se a discussão no âmbito do RE 949.297. Após a prolação de decisão favorável ao Contribuinte pelo Tribunal Regional Federal da 5ª Região, a União interpôs o Recurso Extraordinário alegando afronta aos princípios da instrumentalidade, legalidade, proporcionalidade, isonomia e supremacia do interesse público sobre o particular.

Argumentou ainda que seria vedada a extensão dos efeitos da decisão que declarou a inconstitucionalidade da CSLL aos exercícios seguintes, sob pena de afronta à Súmula nº 239 do STF. Os Pareceres da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional nº 432/2011 e da Procuradoria-Geral da República nº 138597/2016 corroboraram os argumentos União no sentido de que a decisão do Supremo, por meio de controle concentrado de constitucionalidade, alterou o ordenamento jurídico, modificando circunstâncias jurídicas da relação de trato sucessivo entre contribuinte-Fisco tendo em vista a cobrança do CSLL, o que originou, assim, uma nova relação jurídica.

Todo o contexto considerado, devemos ter em mente para o enfrentamento crítico da matéria alguns eixos de significativa repercussão no mundo jurídico que acabam por gerar mais controvérsias do que pacificação, mas que são incontornáveis no seu exame. O principal deles, do qual se desdobram todos os demais, é se o Supremo tem o poder de transformar lei flagrantemente inconstitucional, porque contrária a dispositivo constitucional expresso, em norma válida em face da própria Lei Maior. Nos referimos aqui, evidentemente, à exigência constitucional para a instituição de tributo, que requer a edição de Lei Complementar (art. 146, incisos II e III da Constituição de 1988).

Na prática, atuando consoante o espírito de “mutação constitucional” que tem caracterizado a sua atuação e motivado as suas decisões nos últimos anos, o Supremo ignorou a regra prevista na Carta de 1988 para validar, por meio da ADI 15-2, a Lei 7.689/1988, da CSLL. Portanto, a partir deste momento, sem que o processo legislativo regular venha a revogar a referida Lei, não há medida cabível da qual contribuintes ou sociedade possa lançar mão para invalidar a norma. A crítica quanto ao “judicialismo anômalo” da qual decorre uma clara invasão de competência de Poder é legitima, porém, torna-se um embate inglório no mundo prático da operação jurisdicional. Afinal, a Corte Constitucional reconheceu a validade da Lei: a Lei é constitucional, para todos os efeitos.

Emergem daí, como consequência, os outros princípios em clara colisão, tendo a questão fática de fundo como palco do embate. Se a norma é válida, porque o órgão de cúpula do Judiciário assim o decidiu, não há mais de se falar em inconstitucionalidade, e o princípio da legalidade passa a estar presente. Sendo assim, ninguém, ou nenhum contribuinte, pode se eximir de fazer aquilo que a lei determina. Aqui, em sentido inverso, aplica-se, o disposto art. 5º, inciso II. É norma, tem que ser cumprida, não se pode deixar de fazer.

Do que se desdobra a questão da isonomia, expressa pelo inciso I do mesmo artigo 5º. Se um contribuinte está adstrito ao cumprimento da exigência fiscal, todos os demais, em igual situação, ou seja, todos aqueles que realizam o mesmo fato gerador, de idêntica incidência, também devem cumprir, do contrário estar-se-ia dando guarida a um tratamento anti-isonômico, em ataque frontal ao dispositivo constitucional. A questão é de natureza constitucional. Não se trata aqui de discutir se a CSLL é um tributo de boa qualidade, que cumpre os melhores requisitos da técnica tributária. Por outro lado, não se pode mais discutir a constitucionalidade da lei que instituiu o referido tributo, pois os “guardiões da Constituição” já a consideraram válida – goste-se ou não da decisão.

Contudo, ainda que se reconhecendo a imutabilidade da constitucionalidade da Lei 7.689/1988 pela Corte (a não ser que a própria Corte venha a mudar o seu entendimento, ou que o Legislativo a revogue ou derrogue), nosso entendimento é no sentido de que não se poderia exigir o recolhimento do tributo de forma retrospectiva, por força da garantia à coisa julgada, expressa no inciso XXXVI, do art. 5º da Constituição da República: “a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada”.

Que o Fisco cobre do contribuinte o recolhimento do tributo a partir do reconhecimento da constitucionalidade da lei que o instituiu parece ser uma decisão mais em consonância com os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade, orientadores da administração pública. A Fazenda estaria atuando de forma contrária a esses mesmos princípios, em afronta ao inciso XXXVI do art. 5º da Constituição, se fizer exigência de forma retrospectiva (ex-tunc), alcançando os valores que deixaram de ser recolhidos antes do reconhecimento da constitucionalidade da lei.

 Entendemos, assim, que a decisão transitada em julgado que declarou a inexistência da relação jurídico-tributária, beneficiando o contribuinte, perdeu sua eficácia apenas parcialmente. Em respeito aos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade e, principalmente, em respeito à “coisa julgada”, o contribuinte não deve ser cobrado pelo que deixou de recolher antes do reconhecimento da constitucionalidade da norma instituidora do tributo. Ainda assim, o impacto dessa solução para os contribuintes seria gigantesco, provocando, certamente, a falência de várias empresas, com inimagináveis prejuízos sociais.

Outra discussão teórica a ser enfrentada no julgamento do RE 949.297 em 11 de maio, considera que, uma vez que a coisa julgada individual se afigura imutável, a Ação Revisional (Código de Processo Civil, art. 505, inciso I) seria o único instrumento para interromper os seus efeitos. Neste caso, os contribuintes poderiam argumentar que, uma vez que a União teria perdido o prazo para tanto, a questão está definida, não havendo mais possibilidade de cobrança pelo Fisco, muito menos por meio de autuação administrativa.

Em contraposição a esse entendimento, o Fisco sustenta que desde 1992 os contribuintes não estavam mais autorizados a se valer das decisões contra a cobrança da CSLL, em face dos julgamentos pelo STF dos Res 146.733/SP, e 138.284/CE (decisões em controle difuso), declarando a constitucionalidade da Lei 7.689/1988. Além disso, alega que nenhum contribuinte pode se manter imune à cobrança da CSLL, porque isso representaria ofensas aos princípios da instrumentabilidade, proporcionalidade e supremacia do interesse público. Argui ainda ofensas aos arts. 3º, inciso V, e 5º caput e incisos II e XXXVI, que garantem o tratamento isonômico perante a Lei.

Neste sentido, os pareceres da Procuradoria Geral da República (nº 138597/2016) e da Procuradoria da Fazenda Nacional (nº 432/2011) salientam que a decisão do Supremo, por meio do controle concentrado de constitucionalidade, alterou o ordenamento jurídico, modificando circunstâncias jurídicas da relação no trato sucessivo Contribuinte-Fisco. A tese é de que uma nova relação jurídica se originou da alteração do ordenamento jurídico pelo controle concentrado, o que justificaria a cobrança inclusive de forma retroativa.

Se reconhecidos apenas os efeitos prospectivos (ex nunc), excluindo-se a possibilidade de retroatividade, será necessário ainda definir se esses efeitos incidiriam sobre fatos ocorridos após a decisão do Supremo na Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 15-2 até os dias de hoje, ou aqueles ocorridos (fatos geradores) após a decisão exarada no julgamento do próprio RE 949.297/CE, ou ainda em momento ulterior a ser definido na mesma decisão.

São essas, portanto, as grandes variáveis que exigirão dos julgadores do RE 949.297 o melhor de seus conhecimentos jurídicos, cientes da enorme repercussão que sua decisão colegiada terá para os contribuintes, a economia e a sociedade.

           

 

segunda-feira, 17 de janeiro de 2022

Perspectivas 2022

                              A inflação e os investimentos em infraestrutura

(Este artigo foi publicado orinalmente na revista Portos & Navios, em 17/01/2022: https://www.portosenavios.com.br/artigos/artigos-de-opiniao/a-inflacao-e-os-investimentos-em-infraestrutura)



Nilson Mello*

A aceleração dos juros pelo FED (Banco Central americano), com o objetivo de frear a inflação, é mais um obstáculo a ser enfrentado pelos países emergentes em 2022, em busca de crescimento. Nos Estados Unidos, assim como aqui e na maior parte do mundo, a alta da inflação, decorrente de uma súbita retomada após o período mais agudo de fechamento, com o aumento dos preços das commodities e o consequente estrangulamento das cadeias logísticas, obrigou as autoridades monetárias a adotar políticas mais agressivas (juros) na defesa de suas moedas.

Para os emergentes, taxas de juros mais altas nos EUA podem representar um problema adicional na medida em que alteram a lógica financeira e reduzem a disponibilidade de recursos: grande parte do capital que poderia ser investida nessas economias é redirecionada para a segurança dos títulos do Tesouro americano. Para nós, isso tem especial relevância tendo em vista o arrojado calendário de concessões na área de infraestrutura em 2022, com 58 grandes projetos listados (74% dos quais do governo federal), envolvendo licitações de portos, aeroportos, rodovias, ferrovias e saneamento, e previsão de R$ 219 bilhões em investimentos.

Em tese, se por um lado os recursos financeiros estarão mais arredios ao risco, por outro, investir no Brasil pode se tornar mais atrativo devido à própria desvalorização do real frente ao dólar, resultado, em grande medida, da política adotada pelo FED. De qualquer forma, não restam dúvidas de que o momento é atípico. Nos EUA, a inflação em 2021 foi de 7%, a maior alta em cerca de quatro décadas. No Brasil, o IPCA do ano passado fechou em 10,06%, resultado muito acima do teto da meta (de 5,25%) e mais ainda de seu centro (3,75%). Foi a maior alta em seis anos: em 2015, o índice havia chegado a 10,67%.

Considerando os necessários estímulos fiscais para enfrentar a pandemia (auxílio emergencial, isenções, desonerações etc), que se somam às mencionadas pressões externas, é razoável se perguntar se o Banco Central brasileiro (agora independente na prática e na forma da Lei) não teria demorado a agir para conter a alta dos preços. Boa parte dos analistas de mercado entende que, por ter perdido o timing lá atrás, na sequência, o BC precisou “pesar mais a mão” nos juros, com um custo maior para a economia.

Não é por outra razão que economistas de bancos de investimentos já alertam para o risco de “dominância fiscal”, situação em que juros altos não são mais tão eficazes no combate à inflação, embora não possam ser descartados, ao mesmo tempo em que agravam a situação das contas públicas (tornam mais caro o seu serviço) e inibem a atividade econômica, uma vez que aumentam o custo de financiamento das empresas. Baixo crescimento, inflação e juro alto compõem um cenário francamente desfavorável, mas é com esta realidade que o país terá que lidar no decorrer de todo o ano.

Embora penoso, é didático lembrar que a combinação “macabra” (inflação, juro alto e baixo crescimento) estava presente na recessão de 2015-2016. A taxa de desemprego no final daquele ano de 2016 chegou a 13,5%, contra 6,5% dois anos antes (IBGE) – e isso sem fechamento da economia, como ocorreu posteriormente por força da Covid-19. Para efeito de comparação, no auge da pandemia, em 2021, o desemprego no Brasil chegou a 14,9%, caindo para 12,1% ao término do terceiro trimestre. No ano passado, a despeito de todos os problemas econômicos enfrentados, o país abriu, até outubro, 10 milhões de vagas formais (carteira assinada), com crescimento do PIB (ainda uma estimativa) de 4,5%, acima das expectativas.

Para este ano, com todo o cenário adverso, a previsão de crescimento do PIB é bem mais modesta, até porque a base de comparação é 2021, em que o houve avanço e não queda, como em 2020 (de -3,9%). Pelo Boletim Focus, do Banco Central, que colhe estimativas do mercado, a projeção acaba de ser revisada para baixo: de 0,49% para meros 0,36%. Toda essa expectativa negativa está também sob forte influência do ano eleitoral, que lança dúvidas sobre as políticas públicas e os programas de longo prazo do país, em especial no que toca os compromissos do governo a ser eleito com o controle fiscal e as reformas estruturantes.

Tudo considerado, o principal trunfo com o qual a economia brasileira poderá contar é a sua própria resiliência: tem surpreendido a cada ano, com resultados melhores do que a previsão. Uma das razões para isso é a força do seu agronegócio, cujas exportações, sozinhas, totalizaram US$ 120,5 bilhões em 2021, com alta de 19,7%. No total, as exportações do país se saíram igualmente bem, alcançando US$ 280,4 bilhões e saldo comercial recorde de US$ 61 bilhões. A corrente de comércio (exportações e importações), de 499,8 bilhões, representou um crescimento de 35,8% em relação ao ano anterior, superando o recorde de 2011 (US$ 481,6 bilhões).

A propósito, cerca de 95% do comércio exterior brasileiro passam pelos portos e por isso é oportuno indagar por que o governo vetou a prorrogação do Reporto, o regime especial que garante a isenção de tributos na importação de equipamentos para investimentos em portos e ferroviais, no Projeto de Lei número 4.199, de estímulo à cabotagem (o chamado BR do Mar). O questionamento ganha relevância se considerarmos os investimentos esperados em portos e ferroviais, pelos cálculos do próprio governo.

Confirmando-se os investimentos em infraestrutura, o ano não será de todo perdido. A condição para que eles se concretizem é um mínimo de estabilidade política, a despeito da agenda eleitoral.  Por razões óbvias, o capital é avesso a turbulências institucionais. Neste sentido, o governo não pode tudo, mas pode muito. Se adotar um discurso equilibrado, responsável e transparente, sobretudo no que diz questões primordiais, como o equilíbrio das contas públicas e o combate à pandemia, já terá dado a sua efetiva contribuição. Será que consegue? É a nossa torcida.

A razão da Reforma Administrativa

    “Para remunerar 11,5 milhões de servidores públicos federais, estaduais e municipais, o Brasil gastou R$ 944 bilhões, em 2018 (dados disponíveis até aqui), o equivalente a 13,4% do PIB, um dos percentuais mais altos do mundo. Os EUA, por exemplo, gastam 9,2% do PIB para remunerar 22 milhões de servidores; a Alemanha, 7,5%; a Colômbia, 7,3%; a Coreia do Sul, 6,1%.
(…) Funcionalismo e Previdência representam cerca de 80% das despesas do Estado brasileiro, contra 60% na média de países relevantes.
(…) O salário no setor público brasileiro é 96% superior ao equivalente no setor privado (dados do Banco Mundial)… “ Carlos Rodolfo Schneider, Movimento Brasil Eficiente (BEM).

PS: Por falar em eficiência (ou falta disso e de outras coisas), o ministro Luiz Fux, do STF, gastou R$ 1,6 milhão em 2021 apenas com jatinhos nos fins de semana entre Brasília e Rio.

*Nilson Mello é advogado e jornalista, sócio-diretor do Ferreira de Mello Advocacia e da Meta Consultoria e Comunicação.

quarta-feira, 1 de dezembro de 2021

Pandemia e desenvolvimento

Das novas cepas aos investimentos



O surgimento da variante Ômicron, condicionando a volta de medidas restritivas em vários países, em especial na Europa, gerou na última semana incertezas quanto a uma recuperação sustentável da economia global nos próximos meses. As dúvidas aumentam em função da desaceleração da atividade na China, locomotiva do comércio internacional, nosso grande demandador de commodities. Ainda é difícil estabelecer o alcance e a duração das novas diretrizes sanitárias e, consequentemente, prever o real impacto sobre a atividade econômica no Brasil e no Mundo.

A Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), contudo, assumindo que a recuperação mundial perderá ímpeto, reviu a previsão de crescimento do PIB do Brasil em 2021, de 5,2% para 5%, assim como o fez em relação a outras economias. A OCDE já errou antes e a torcida é para que esteja novamente equivocada neste momento em que os dados do fluxo comercial revelam recuperação.

O comércio global deve atingir a marca de US$ 28 trilhões este ano, um aumento de 11% em relação aos níveis verificados antes da pandemia, de acordo com previsão da Agência das Nações Unidas para o Comércio e o Desenvolvimento (Uncatad). Em relação ao depressivo ano de 2020, o aumento foi de 23%, ou de US$ 5,2 trilhões em valor. Com pequena inserção internacional, se considerado o tamanho de sua economia, o Brasil também deverá alcançar um crescimento de 11% em suas trocas internacionais (exportações e importações) este ano em relação a 2019, aponta a agência.  

Em paralelo aos números e à luz da Teoria da Evolução, o que a Ciência pode nos dizer em relação à Covid-19 é que novas cepas tendem a ser mais contagiosas, porém, menos letais (o que vale para qualquer virose), tendo em vista a própria necessidade de sobrevivência do vírus invasor, cujo sucesso depende da sobrevivência do hospedeiro.

Convém lembrar que o desenvolvimento de vacinas - algo indispensável e prioritário - em meio a uma pandemia acaba potencializando variantes mais resistentes, razão pela qual cientistas salientam a importância de manutenção de ações preventivas (distanciamento, máscaras etc), bem como a adoção de outras estratégias de combate à doença, em especial o desenvolvimento de antivirais para o tratamento dos casos menos graves, gerados pelas novas cepas.

Por outro lado, se a vacinação foi decisiva na contenção da pandemia, a imunização desigual entre países e continentes propiciou, igualmente, o desenvolvimento de variantes. Na África, como um todo, apenas 10% das pessoas estão vacinadas, sendo que, em algumas regiões, menos de 1% da população foi imunizada, estatísticas que escancaram não apenas as disparidades econômicas e sociais, como o fracasso das nações ricas (e da própria OMS/ONU) em estabelecer uma estratégia global e solidária para o enfrentamento da Covid-19.

O Brasil, onde 80% da população receberam ao menos uma dose e mais de 60% estão plenamente vacinados, registrou esta semana dois casos da Ômicron, com outros seis sob suspeita. A nova cepa chega em meio a dados relativamente mais positivos sobre o emprego e o déficit público. A boa notícia sobre o emprego é que há mais gente trabalhando no país, justamente como resultado da melhoria dos indicadores da pandemia, em função do avanço da vacinação. 

De acordo com o IBGE (PNAD/Contínua), a taxa de desemprego recuou de 14,2% para 12,6% no segundo trimestre, com nítida melhora das vagas formais, embora ainda haja 13,5 milhões de desempregados e 30 milhões de trabalhadores subutilizados. A recuperação foi relativamente rápida, sobretudo se considerado que os dados pré-pandemia, relativos e emprego, já não eram bons. Mesmo com o aumento das vagas, contudo, a renda mínima do brasileiro sofreu queda de 11,1%, como consequência da estagnação econômica e do aumento da inflação. Há mais gente trabalhando, mas sem melhora da massa salarial.

Nunca é demais ressaltar que, em relação ao mercado de trabalho, o Brasil enfrenta, a par de questões conjunturais (exemplo: pandemia), obstáculos de ordem estrutural, representados pelo ainda alto custo emprego (os altos encargos) e o excesso de burocracia, apesar de reformas paliativas e pontuais recentes, bem como pela baixa capacitação profissional, decorrente de um sistema de ensino deficiente e distante dos desafios econômicos. Esses fatores ajudam a explicar uma alta taxa de informalidade, de 40% da massa de trabalhadores (IBGE).

A análise deve ainda considerar que o Brasil teve, entre 2011 e 2020, a pior década para a economia em 120 anos (FGV), crescendo apenas 0,3% no período. No ano passado, por força da pandemia, o PIB brasileiro sofreu queda de 4,1%. Um recuo forte, mas ainda assim menor do que o anteriormente esperado e, nominalmente, desempenho melhor do que a maioria dos países com relevância econômica, entre os quais Espanha (-11%), Reino Unido (-9,9%), Itália (-8,8%), França (-8,1%), Alemanha (-5,3%), Japão (-4,8%).

Os dados relativos às contas públicas refletem igualmente o impacto da pandemia no ano passado e uma melhora este ano, apesar das incertezas em relação a uma efetiva ancoragem fiscal no orçamento de 2022, submetido a intenso debate no Congresso. O Banco Central informou esta semana que o setor público em conjunto, que inclui governo federal, estados, municípios e estatais, obteve superávit primário (resultado desconsiderando o pagamento de juros) de R$ 35,39 bilhões em outubro, contra R$ 2,9 bilhões no mesmo mês no ano passado.

Esse foi o melhor resultado para outubro desde 2016, graças à maior arrecadação tributária registrada em cinco anos para o período – o que também revela melhora da atividade econômica. Nos 12 meses contados até outubro, porém, o resultado continua amplamente negativo, com déficit nominal de R$ 398,7 bilhões, correspondendo a 4,72% do PIB, lembrando que no auge da pandemia, o déficit chegou a ser de R$ 703 bilhões (BC).

A exemplo dos Estados Unidos e da Zona do Euro, o Brasil enfrenta um “surto” inflacionário, o que pode determinar a manutenção de taxas de juros mais altas, dificultando não apenas a retomada da economia e como agravando a situação das consta públicas. Essa conjuntura, aliada às incertezas quanto à possibilidade de novas ondas de Covid-19, contribui para turvar o horizonte nesta reta final de ano.

Apesar de tudo, de um lado, o fato de a economia brasileira e mundial ter revelado mais resiliência do que se esperava nesta crise e, de outro, a certeza de que a Ciência está cada vez mais preparada para combater a pandemia ainda deixam margem para otimismo. Isso talvez explique por que as expectativas de investimentos por parte do mercado permanecem elevadas. Somente no setor portuário, esperam-se aportes totalizando R$ 16 bilhões com a privatização das Companhias Docas e de terminais isolados. Em saneamento, outros R$ 8 bilhões em investimentos são aguardados, como resultado do novo marco legal setorial. Não há saída: é continuar trabalhando.  

Por Nilson Mello

 

 

 

 

quinta-feira, 21 de outubro de 2021

Conjuntura

 

Da CPI da Covid à logística, da energia e do clima à comunicação


            No momento em que o mundo caminha para o controle da Covid-19, graças à imunização massiva, questões logísticas relevantes desafiam estrategistas, porém, perdem importância relativa face a problemas energéticos e climáticos críticos, que exigem não apenas enfrentamento urgente e imediato, como ações perenes, de longo prazo. No cenário interno, um ambiente político carregado continua a turvar o horizonte, dificultando os prognósticos.

No que toca a pandemia, é oportuno lembrar que a população mundial totalmente vacinada chegou, em outubro, a 2,86 bilhões de pessoas (36,6% do total), sendo que 6,7 bilhões de doses foram administradas, de acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS).  O dado contribui para um maior otimismo em relação à retomada da atividade global, a despeito de uma série de fatores que ainda geram incertezas.

Mesmo no Brasil, onde o início da imunização demorou mais do que seria o razoável – devido a questões burocráticas, mas também por evidente erro político – já é de 106 milhões o número de pessoas totalmente vacinadas (50% da população), com 258 milhões de doses aplicadas, o que faz com que o país seja o quarto que mais vacinou em números absolutos, atrás de China, Índia e Estados Unidos.

            Considerando a melhora das expectativas no mundo, em virtude do avanço da vacinação, é razoável se perguntar o que o governo Bolsonaro esperava ganhar ao adotar um discurso oficial, senão contrário, no mínimo indiferente à imunização em massa. Até aqui, pelo que se viu, o resultado do erro de comunicação – e de condução do problema – foi alimentar uma CPI que tomou muito tempo, aprofundou o desgaste político e aumentou as incertezas para o próprio governo, com prejuízo para a economia.

            Tem-se, hoje, como primeira consequência, a retroalimentação da instabilidade política. Se o presidente livrou-se da acusação de genocida e homicida no relatório final da CPI, por absoluta falta de fundamentação jurídica para tais acusações (afinal, como em todo o mundo o responsável por milhões de mortes seria um vírus letal e aqui um genocida?), não deixou de sofrer graves imputações, com pedido de indiciamento por uma dezena de crimes, entres eles, os de charlatanismo, de infração de medida sanitária e de prevaricação.  

Para um governante com os pés na realidade, algo desmoralizante. Para um país que precisa voltar a crescer, um motivo a mais de preocupação, sobretudo considerando-se a repercussão negativa no exterior, lembrando que, entre as outras mais de 60 pessoas cujo indiciamento será pedido, há integrantes do primeiro escalão do governo, entre eles o ministro da Defesa.

Grau de confiança

As chances de que um impeachment, como resultado da CPI, possa de fato tirar Bolsonaro do cargo continuam a ser reduzidas, devido ao pouco tempo que falta para o fim do mandato, combinado à morosidade inerente a esse tipo processo e, também, é preciso reconhecer, ao apoio político de que o presidente desfruta de parcela significativa do eleitorado, como provam as manifestações a seu favor – o que tem direta influência no Congresso.

Se o objetivo não era o afastamento imediato, qual foi o cálculo dos articuladores da CPI?  A preparação do terreno para as eleições do ano que vem? A reflexão é pertinente porque, ainda que se assuma que uma CPI em torno da pandemia era moralmente impositiva, para apurar responsabilidades, na prática, o país já saiu perdendo.

A recuperação da atividade econômica requer um ambiente de estabilidade política. A palavra chave é previsibilidade. Este ambiente pressupõe, por parte de quem tem o poder de tomar decisões, uma estratégia de comunicação não apenas eficiente, mas responsável. O objetivo deve ser sempre o de aumentar o grau de confiança de investidores, agentes econômicos e da sociedade de forma geral. Quando a comunicação não é minimamente responsável e eficiente, novas crises são gestadas, e prolongam-se as existentes.

Contêineres

A doutrina econômica é pródiga em demonstrar “silogismos” entre, por exemplo, instabilidade política, pressões sobre o câmbio e inflação. O que estamos vivendo hoje no Brasil não é mera coincidência. Este é o problema de fundo que merece, portanto, atenção muito maior do que os obstáculos logísticos pontuais, referidos de início. Até porque, o maior desses obstáculos começa a ser superado. A falta de contêineres para a circulação de mercadorias, resultado da repentina retomada da atividade econômica por parte de grandes exportadores de manufaturados, em especial Estados Unidos, Europa e países asiáticos, é progressivamente solucionada à medida que as próprias trocas internacionais vão se intensificando, normalizando o fluxo.

A notícia boa neste sentido é que o transporte marítimo, por onde passam mais de 90% de nosso comércio exterior, não sofreu ruptura durante a pandemia. Rotas não foram suspensas nem navios retirados de serviço pelos armadores de longo curso, o que foi decisivo para as exportações do agronegócio brasileiro e para a manutenção da atividade portuária. Vale dizer que de janeiro a agosto deste ano, foram movimentadas 809,8 milhões de toneladas nos portos nacionais, um avanço de 7,5% em relação ao mesmo período do ano passado, de acordo com a Antaq. De janeiro a julho, houve alta de 6% nas exportações e de 30% nas importações.

            Muito mais do que com contêineres, a preocupação global volta-se para a crise energética e a demanda por alimentos, questões interligadas e com impacto direto sobre o clima. Desde maio, houve aumento de 95% nos preços internacionais de petróleo, gás e carvão, em função do retorno repentino da demanda. Mesmo que os maiores exportadores aumentem a produção, o que vai ocorrer nos próximos meses, combustíveis fósseis, que são fontes não renováveis de energia, com impacto negativo sobre o ambiente, deixaram de ser uma opção no longo prazo, o que faz com que o mundo caminhe cada vez mais para a adoção de fontes alternativas sustentáveis.

Energia limpa e COP-26

Praticamente 50% da energia produzida no Brasil são provenientes de fontes renováveis, geradas principalmente a partir de usinas hidrelétricas, mas também provenientes de parques fotovoltaicos (captação da luz solar) e eólicos, cuja participação na matriz energética tem crescido de forma significativa nos últimos anos. O percentual de geração de energia sustentável no país (exatos 48% da produção) é três vezes superior à média global, o que, em tese, colocaria o país em lugar de destaque nas grandes discussões acerca da preservação do ambiente e do enfrentamento das mudanças climáticas.

            A situação privilegiada em relação à geração “limpa” de energia faz com que seja factível o compromisso que o país pretende assumir na COP-26 – a 26ª Conferência das Nações Unidas sobre Mudança Climática, a ser realizada de 31 de outubro a 12 de novembro, em Glasgow, na Escócia – de alcançar a neutralidade climática até 2050.  Consolidada no Acordo de Paris em 2015, do qual cerca de 200 nações foram signatárias, a neutralidade é, na verdade, uma meta compensatória que deve ser assumida por cada país em relação às emissões que agravam o efeito estufa, causado por fontes “sujas”, os combustíveis fósseis.  

Em linhas gerais, para cada tonelada de CO2 emitida, uma tonelada deve ser compensada com medida de proteção climática, como a geração de energia sustentável ou programas de reflorestamento. Outro compromisso a ser apresentado pelo Brasil na COP-26 é o de desmatamento zero até 2030. O maior aliado que o Brasil pode ter na luta contra o desmatamento é o seu agronegócio, hoje responsável por 26% do PIB, motor do comércio exterior e vetor fundamental do crescimento econômico.

Graças ao desenvolvimento da tecnologia aplicada à agropecuária nas últimas quatro décadas, o Brasil se tornou o grande fornecedor de alimentos do mundo. Um aspecto importante é que apenas cerca de 8% do território nacional são de área plantada, o que demonstra a alta produtividade do setor. O problema é que interesses comerciais contrários à agropecuária brasileira, justamente devido à sua produtividade, associam o seu desenvolvimento ao aumento do desmatamento, em particular na Amazônia.

A única forma de o Brasil combater campanhas internacionais contra o agronegócio é demonstrar um firme compromisso com a defesa do ambiente. Isso passa obviamente pela questão da comunicação eficiente, mas, sobretudo, pela adoção de ações e políticas efetivas de preservação de nossas florestas. A Amazônia legal perdeu 10.476 km2 de florestas entre agosto e julho, meses em que anualmente se faz a aferição, o que representa uma área 57% a maior do que o mesmo período do ano passado e o pior resultado dos últimos dez anos, de acordo com dados do Imazon. No ano passado, os dados oficiais de desmatamento, medidos pelo Inpe, já haviam sido os piores em 12 anos.

O Brasil até é capaz de alcançar a meta ousada de desmatamento ilegal zero até 2030, mas para tanto o governo precisa começar logo a fazer o seu dever de casa. Por enquanto, pelos dados disponíveis, a promessa carece de credibilidade. Aliás, para as três frentes – energia, segurança alimentar e ambiente –, todas de caráter crítico, o país tem respostas a dar ao mundo, desde que, é claro, assuma, como dito, uma comunicação responsável – e adote práticas que venham a sustentar o discurso oficial. Como se vê, há muito que melhorar.

Por Nilson Mello

sexta-feira, 23 de julho de 2021

Marcos legais

 


PIB, ferrovias e o Reporto

(obs: artigo publicado simultaneamente com a revista Portos & Navios)

A preocupação de governos, deste e de anteriores, em ampliar os investimentos em infraestrutura logística e de transportes, por meio de privatizações e de novos marcos legais, é plenamente justificável considerando o grande potencial de crescimento desses setores, bem como a necessidade de retomada consistente e sustentável da economia no longo prazo. Investir em infraestrutura significa prevenir gargalos que aumentam custos e, no sentido inverso, reduzem a eficiência e a competitividade.

Tendo em vista as evidentes limitações orçamentárias que o país ainda enfrenta, em função da questão fiscal, é do setor privado que cada vez mais virão os investimentos necessários ao desenvolvimento. Um dado estimulante é que a taxa de investimento em máquinas, equipamentos e obras, que em média situava-se entre 16% desde 2015 e não ultrapassava os 18% desde 2000, em maio deste ano chegou a 22,1%, segundo a FGV. A economia dá claros sinais de revitalização: a previsão de avanço do PIB em 2021, de acordo com o mercado, passou a ser de 5,26%, contra 4,85% de poucas semanas atrás.

Os setores de portos e ferrovias têm clara participação no melhor desempenho dos investimentos. Nos portos, por onde passam mais de 95% de nossas exortações, desde 2019 foram concedidas 96 autorizações para terminais privados, que somam R$ 8,9 bilhões em contratos. Somente em 11 contratos firmados nos últimos dois anos foi garantido mais de R$ 1,4 bilhão em investimentos em terminais portuários, em oito estados.

Os investimentos no setor ganharão um impulso ainda maior com as desestatizações da Companhia Docas do Espírito Santo (Codesa), programado para o último trimestre do ano, e do Porto de Santos, em 2022. Somente para a Codesa, cujo modelo de privatização foi publicado no Diário Oficial da União no mês passado, espera-se mais R$ 1 bilhão em investimentos.

As ferroviais têm sido outro capítulo importante. Desde 2019, já foram contratados R$ 31 bilhões em investimentos, parte deles estruturada em governos anteriores. Vale dizer que os investimentos no setor saltaram de R$ 420 milhões em 1997 para R$ 6,9 bilhões, em 2020, um avanço de 1.400% no período, tendo alcançado o pico em 2015 (R$ 7,7 bilhões), de acordo com a Associação Nacional dos Transportadores Ferroviários (ANTF).

No período, a movimentação de carga geral pela malha ferroviária passou de 26,9 toneladas por quilômetro útil (TKU) para 110,2 TKU, uma variação de mais de 300%. Um fator que torna o setor potencialmente mais atrativo aos investimentos é a sua pequena participação na matriz de transportes, comparativamente a outros países.

            Dos seis maiores países em extensão territorial, o Brasil é o que mais emprega o modal rodoviário no transporte de carga e o segundo que menos emprega as ferrovias. Em regra, comparativamente aos modais ferroviário e aquaviário, o transporte por rodovias é mais poluente e menos seguro. Não havendo subsídio ao combustível, será invariavelmente também o mais caro.

Maior país do mundo, a Rússia utiliza a malha ferroviária para o transporte de 81% de sua carga. Apenas 8% desse transporte são feitos por rodovia. No Brasil, 68% da carga são transportados por rodovias, enquanto apenas 21,5% seguem por ferrovias (ANTF), cabendo o restante aos modais aquaviário e, em menor participação, aéreo.

Na Austrália e no Canadá, também de dimensões continentais, as ferrovias têm igualmente grande importância estratégica, respondendo por 55% e 34% do transporte de carga, respectivamente, contra 27% e 19% do modal rodoviário. Mesmo nos EUA, país rodoviário por excelência, as rodovias têm uma participação no transporte de cargas (43% de sua matriz) menor do que no Brasil, enquanto as ferrovias respondem 27% desse tipo de movimento.

Entre as seis maiores nações em extensão territorial, apenas a China transporta menos carga por trem (apenas 14% da matriz) do que o Brasil, dando ênfase ao modal aquaviário (51% da matriz, a maior entre os seis gigantes) e também às rodovias (35%). Cabe dizer que somos também, dentre os seis, o país que menos utiliza o modal aquaviário (cerca de 10%).

Portanto, propostas que venham a estimular uma maior participação desses dois modais na matriz de transportes nacionais são sempre bem-vindas. No caso das ferrovias, o governo pretende estimular, dentro do novo marco legal, o regime de autorizações, mais ágil do que o de concessões. A ideia pode funcionar. A dúvida é se o melhor caminho é, de fato, por meio de uma Medida Provisória, como anunciado esta semana, ou concentrando esforços para que o Projeto de Lei do Senado que trata da matéria (PLS 261/2018) ganhe prioridade na pauta.

Em tese, um Projeto de Lei amplia o debate, permitindo o aprimoramento do novo marco. Até porque, no caso, o PLS 261 já foi assimilado pelos parlamentares. A premissa vale para todos os modais, bem como para o setor de infraestrutura. Em meio a essa discussão, entre projeto de lei ou MP, nunca é demais lembrar que, muitas vezes, uma providência pontual tem mais efeito para os investimentos no curto prazo do que a elaboração, trâmite e aprovação de uma complexa legislação.

E esse é justamente o caso do Reporto, o regime especial de tributação para a importação de equipamentos para ferroviais e portos, que aguarda mobilização de Executivo e parlamentares para a sua prorrogação, antes de qualquer novo marco. Esse, sim, pela urgência e por já ser matéria conhecida, poderia vir por meio de MP específica. Afinal, sem o Reporto, os investimentos em portos e ferroviais ficam comprometidos, já em 2021. Fiquemos todos atentos à questão.

Por Nilson Mello*