quinta-feira, 25 de setembro de 2014

Em tempo

                                                                Marco Aurélio Garcia


Sem pé nem cabeça – Que interesse pode ter o Brasil em condenar ações internacionais que visam a combater o grupo terrorista que eufemisticamente se autoproclama Estado Islâmico, quando o mundo inteiro se une para repudiá-lo, é uma questão que desafia a razoabilidade.  A presidente Dilma Rousseff afirmou, no discurso de abertura da Assembleia Geral da ONU ontem, que intervenções militares como a recém-iniciada na Síria esta semana, sob a liderança dos Estados Unidos, só levam a mais “barbárie” – e defendeu o diálogo. O EI, antes denominado Isil ou Isis, a julgar pelos métodos que adota, pelo discurso que emprega e pelas ações emblemáticas – entre as quais as decapitações de reféns inocentes transmitidas via satélite e as sumárias execuções de pessoas pela simples razão de não compartilharem a sua crença, seja essa qual for – não dá sinais de querer resolver divergências na base do bate-papo. O horror não é o seu meio, mas a sua própria finalidade. O grau de demência religiosa e ideológica que inspira o grupo não tem precedente. Em todo caso, para que a fala da presidente não caia (mais uma vez) no ridículo e no vazio diplomático, talvez seja o caso de enviar o assessor especial da Presidência da República para Assuntos Internacionais, o historiador Marco Aurélio Garcia, para um tète-à-tète com os líderes do EI, no Levante. Quem sabe se com esta iniciativa não teremos, finalmente, uma boa notícia vinda do Oriente Médio.

 
Choque de concorrência – No artigo desta quarta-feira 24 (O papel da imprensa, mais abaixo) foi dito que os meios de comunicação precisam de plena liberdade para exercer a sua função de “Quarto Poder”, como definiu Bobbio, e atuar como o “olhar onipresente dos cidadãos sobre os seus líderes e governantes”, como ressaltou Marx.
 
 
          Se a imprensa cometer abusos, no livre exercício desta função – que, vale lembrar, é primordial para a democracia – estará sujeita às penalidades previstas em Lei. O Judiciário decidirá, respeitando, claro, os princípios do contraditório e da ampla defesa.

O que não se pode é, em nome do falso intuito de se estabelecer uma cobertura jornalística perfeita, livre de erros (e, portanto, inatingível), submeter jornalistas e meios de comunicação a regras de conduta, cerceando o seu trabalho. Disciplinar a liberdade de expressão é eufemismo da palavra censura.

Repassado este ponto, é preciso abordar outro aspecto da questão. A plena liberdade para jornalistas e meios de comunicação atuar é indispensável, porém, não é o suficiente. Para que haja uma imprensa livre e democrática é necessário que exista também pluralidade de opiniões.

Neste sentido, não há como negar que falta, no Brasil, um choque regulatório que ponha fim à grande concentração de mercado que hoje prevalece no segmento de empresas jornalísticas. Um choque de mercado que amplie o número de veículos de informação independentes, diversificando e multiplicando opiniões e visões de mundo.

Um único grupo de comunicação não pode concentrar TV aberta em nível nacional, TV por assinatura, rede de emissoras de rádio AM e FM, três grandes jornais de circulação diária, além de revista semanal e uma série de outras publicações.

Por mais que reconheçamos que esta concentração decorreu da competência de seus artífices e dos profissionais que ajudaram a construir e consolidar o grupo jornalístico, ela não faz sentido do ponto de vista regulatório. E não é compatível com a democracia, na medida em que compromete a diversificação de opiniões. O segmento de comunicação no Brasil merece sofrer um choque regulatório que promova a ampla concorrência, a exemplo do que ocorre nos demais segmentos da economia. (NM)

 

 

quarta-feira, 24 de setembro de 2014

Artigo


O papel da imprensa

Em um de seus mais recentes rompantes, expresso, como de costume, ao sabor da têmpora, e da forma categórica que lhe é mais peculiar, a presidente Dilma Rousseff afirmou que o trabalho da imprensa não é o de investigar, mas o de informar.  Os meios de comunicação, segundo ela, não podem ser comparados ao Judiciário, ao Ministério Público e à Polícia Federal.

O intuito foi o de expressar o seu descontentamento com o fato de a imprensa trazer à tona detalhes das investigações em torno dos desvios praticados na estatal Petrobras, em particular, as informações contidas nos depoimentos do ex-diretor da empresa Paulo Roberto Costa, agora delator dos descaminhos que ajudou a promover.

Na opinião da presidente, claramente irritada com o episódio, não está certo a imprensa noticiar fatos, relacionados a investigações em curso, antes mesmo que o seu gabinete seja informado dos pormenores do caso.

Ora, as notícias constrangedoras devem antes passar pelo crivo da autoridade pública? De que diabos estamos aqui falando, de censura prévia do Executivo a informações que lhe possam ser negativas ou potencialmente nocivas?  A regra valeria também para as demais instâncias e esferas do Poder Público?

A presidente não consegue entender que o pressuposto da informação jornalística é a investigação – ou a apuração dos fatos, para usarmos o jargão profissional. Leviano seria noticiar sem levantar fatos e ouvir versões, não importando as fontes. E isso não significa que o trabalho seja sempre bem executado, que a investigação, por vezes, não contenha imperfeições. 

Jornalistas e meios de comunicação, que fique bem claro, também erram, e por diferentes razões. Muitas vezes erram por falta de qualificação de seus profissionais para abordar temática mais técnica no calor dos acontecimentos. Erram ainda pela imperativa busca da síntese, que elimina nuances. Erram também pelo fato de o jornalismo ser uma atividade intelectual inserida num processo industrial de alta intensidade, com premência de prazos, o que propicia falhas de toda ordem. E, claro, erram até por má-fé. Mas erra-se em todas as profissões, por que com o jornalismo haveria de ser diferente?

O possível erro não pode justificar a censura genérica, que seria inconstitucional. Nunca é demais lembrar que o Brasil é signatário do Tratado de Chapultepec, segundo o qual a imprensa livre é condição fundamental para que as sociedades promovam o bem estar de seus povos. 

Sempre que cometem erros e abusos, jornalistas e meios de comunicação estão sujeitos à Lei, e não poderia ser diferente. Respondem, civil e penalmente, por danos causados à imagem e mesmo ao patrimônio dos ofendidos. Cabe lembrar que a liberdade de expressão, direito fundamental (previsto em nossa Constituição e nas constituições de mais de 90 nações democráticas) do qual deriva a liberdade de imprensa, não autoriza a injúria, a calúnia e a difamação. E isso por si só é um poderoso mecanismo de prevenção ao erro, de contenção dos excessos.

Quando divulga as falcatruas na Petrobras, a imprensa está exercendo livremente o seu papel, ainda que possa, em paralelo, estar cometendo erros. Então, que permaneça livre. Se a presidente da República queria ter acesso prévio ao depoimento do delator, paciência. O que a sociedade quer é transparência, pouco importando o seu melindre. A propósito, o que temer?

Convém dizer que, num país que preza a sua democracia (o que não é inequívoco entre nós), a preocupação não deve ser apenas quanto a possíveis tentativas de cerceamento feitas pelo Executivo. Deve-se também zelar para que não haja uma escalada da “judicialização” da censura.  Se hoje não estamos sujeitos à censura formal que caracterizou períodos de exceção política, assistimos a um preocupante aumento dos vetos judiciais por antecipação (censura prévia decorrente de processos), com 28 novos casos apenas no período de agosto de 2011 a agosto deste ano, de acordo com a ANJ – Associação Nacional dos Jornais (para mais detalhes sobre o cerceamento do trabalho da imprensa, ver quadro em anexo e texto da ANJ no link abaixo deste artigo). 

Voltemos ao Executivo. Da maneira como expressou seu, digamos, raciocínio, a presidente Dilma Rousseff deu a entender que o trabalho da imprensa deve se restringir ao “repeteco” de versões oficiais. A imprensa deveria, por essa ótica canhestra, se restringir ao press release produzido pelas assessorias de imprensa dos Ministérios e diferentes órgãos governamentais. Mas o jornalista não pode – e não deve – ser um mero repetidor de versões oficiais, um compilador de declarações entre aspas.  

A impressão que fica da declaração, portanto, é que, no entendimento deste governo, jornalismo é divulgação, ou seja, é um trabalho atrelado à propaganda, ao marketing e às relações públicas. Nada contra essas atividades – muito ao contrário – mas jornalismo, definitivamente, não é isso. A propósito, alguém já disse, com certo exagero, que jornalismo é tudo que contraria os governantes – o resto é propaganda.

Karl Marx dizia que a imprensa era o “olhar onipresente do povo sobre seus líderes e governantes”. A sentença permanece verdadeira, mas, nos países marxistas, valeu apenas enquanto a “burguesia” não era desalojada do Poder. Depois, prevaleceu a regulação da liberdade de expressão e outros eufemismos que querem nos impingir. Em Cuba, um único jornal de abrangência nacional, o Granma, órgão oficial do Comitê Central do Partido Comunista, incumbe-se da “propaganda”. Mas, convenhamos, Cuba não pode ser um modelo para o Brasil.

Antes de Marx, Thomas Coolley, constitucionalista americano, dizia que a importância capital da imprensa era “trazer perante o tribunal da opinião pública qualquer autoridade, corporação ou repartição”. Sim, porque, se verdadeiramente livre, a imprensa garante transparência aos atos do Poder Público, exercendo um papel preponderante sobre as estruturas institucionais e políticas, sendo a sua importância funcional comparável aos Poderes constituídos, como bem lembrou Norberto Bobbio, ao cunhar o termo “Quarto Poder”.  Goste ou não a presidente Dilma Rousseff!

Por Nilson Mello

Link para texto da ANJ sobre cerceamento do trabalho da imprensa:     

Críticas e comentários 

 Ø  “Excelente!” – Luís Otávio Façanha, economista, professor universitário.

 Ø  “Muito bom” – Sergio Barreto Motta, jornalista.

 Ø “Acrescentaria particularidade importante do tempo histórico em que vivemos. A imprensa é tudo aquilo que Marx disse, e algo mais. No Brasil de hoje, ela tem relevância especial, pois o Congresso, que deveria fiscalizar politicamente o executivo, esta comprometido com ele, inclusive pela corrupção, e a oposição simplesmente não se faz presente. Quem, então, garantiria a transparência dos atos governamentais? Só a imprensa. Mas a imprensa tem de ser livre, independente e, sobretudo, cônscia de seu papel de fiscalização. Temos uma imprensa com essas características?  Não adianta falar de liberdade de imprensa, como se ela estivesse sendo ameaçada pelos poderes, inclusive pelo poder do executivo, e sair em defesa dessa liberdade. Temos de olhar também a imprensa para ver se ela esta cumprindo plenamente seu papel de fiscalização, e não apenas quando lhe interessa.  Nada é perfeito, mas entre a perfeição e o estagio em que nos encontramos, ha um caminho longo que deve ser percorrido” – Mario Augusto Santos,  diplomata.  

Em tempo

 
O embaixador Mario Santos corrige a data do Tratado de Westfalia, mencionado em sua entrevista do dia 11, com o seguinte comentário:
“O Tratado de Westfalia aconteceu em 1648, e não em 1640. Na realidade, foram vários tratados que, no conjunto, ficaram conhecidos com o Tratado de Westfalia.”

 

quarta-feira, 17 de setembro de 2014

Comentário e Entrevista


A inflação é como uma gravidez


                            Jan   Fev   Mar  Abr   Mai   Jun   Jul    Ago   Set    Out   Nov   Dez

Combate à inflação tem a ver com expectativas – e, por óbvio, com credibilidade. Agentes econômicos – pessoas e empresas – comportam-se no que se refere ao consumo e a outros aspectos da economia, como os investimentos, levando em conta o grau de confiança naqueles que detêm o comando da política econômica.

Ao contrário do que possa parecer, não se trata de mero impulso, mas de racionalidade. Porque credibilidade é algo que tem a ver com a razão – com ratio – e não apenas com a emoção. As ações e as omissões individuais que movimentam (ou não) a economia tornam-se ainda mais curiosas – e complexas – se observadas em conjunto.

A manifestação individual projeta-se na sociedade e ganha medida coletiva, comprovando que a Economia não é “apenas” uma Ciência Exata – é também uma área de conhecimento sob uma forte e direta influência da subjetividade.

Com os índices de inflação persistindo em patamares elevados, próximos a romper o que seria o teto da meta (em alguns índices, já acima de 6,5% no acumulado de 12 meses), é razoável questionar o que não deu certo, no governo Dilma Rousseff, no que diz respeito ao controle de preços.

 A pergunta ganha maior relevância se considerarmos que, na retórica (de palanque e de gabinete), o atual governo sempre foi categórico em afirmar que não seria complacente com a alta do custo de vida. O assunto chegou à campanha eleitoral, merecendo destaque em alguns debates, mas, sem, contudo, mobilizar totalmente a opinião pública.

Na entrevista abaixo, Salomão Quadros, um dos maiores especialistas em inflação do país, apresenta alguns diagnósticos para explicar a, digamos, ousada trajetória da inflação.  Recorre a John Maynard Keynes para lembrar que “uma pequena inflação é como uma pequena gravidez”. A gestação, via de regra, prossegue e aumenta.

Há 12 anos coordenador de índices de preços na Fundação Getúlio Vargas, no Rio, onde foi professor de macroeconomia nos MBAs, há 30 um estudioso do assunto, autor de “Muito além dos índices – crônica, história e entrelinhas da inflação” (2008) e de uma infinidade de artigos publicados nos principais jornais do país, ele ressalta ainda que a estabilidade “resulta de um ambiente macroeconômico equilibrado” – o que já nos esclarece muita coisa. 

Abaixo, a íntegra da entrevista, que expressa a sua opinião, não necessariamente coincidente com a da FGV. Por Nilson Mello


ENTREVISTA SALOMÃO QUADROS

                                                               

Blog Meta Mensagem – A expectativa dos consumidores para a inflação nos próximos 12 meses, de acordo com a sondagem da Fundação Getúlio Vargas, é de alta de 7,2%.  Há uma clara expectativa inflacionária na sociedade.


Salomão Quadros – A taxa em 12 meses pelo IPCA está no teto do intervalo de tolerância da meta de inflação, que é de 6,5%. Está aí há três meses e aí deve permanecer pelo menos até o fim de setembro. Nos meses finais do ano, a taxa deve recuar ligeiramente, para algo perto de 6,3%. Ainda está pendente a decisão sobre o aumento da gasolina, que pode ser a repetição do que ocorreu em 2013. No ano passado, o aumento entrou em vigor em dezembro e o percentual autorizado de reajuste possivelmente foi calculado de modo a evitar que a inflação superasse a de 2012. Agora este cálculo precisa ser mais preciso porque o risco é de ultrapassagem do teto da meta. Esta longa consideração sobre o reajuste da gasolina mostra que o governo ainda se vale de mecanismos superados no combate à inflação, como o controle de preços.


BMM - Ao mesmo tempo em que o BC mantém a Selic em 11% ao ano, há menos de um mês o governo baixou medidas que dão novos estímulos ao crédito, além de promover novos impulsos fiscais. Você diria que essas são medidas contraditórias, que dificultam a política monetária (reduzindo o seu efeito) e que contribuem para a piora de expectativas econômicas, em especial quanto ao controle da inflação?


Salomão Quadros – Na política monetária, este ano os juros voltaram a subir, mas em 2012 eles haviam recuado para 7,25%, o equivalente a menos de 2% em termos reais. A política de hoje desestimula o consumo que a política de ontem estimulou. Normalmente, a política monetária, trabalha com uma visão de médio a longo prazos, e o objetivo é a convergência para o centro da meta (em países que adotam o sistema de metas de inflação). No Brasil, a inflação tem ficado sistematicamente acima do centro da meta e isto alimenta expectativas de taxas mais elevadas, dificultando o controle. Não devemos esquecer que a política fiscal, por ter sido expansionista, adiciona um viés inflacionário a este quadro.


BMM - Medidas anticíclicas (para estimular o crescimento em momentos de crise) devem ser sempre vistas com desconfiança, ou foi o governo que não soube agir dentro de parâmetros técnicos mais rigorosos, errando a receita ou a sua dose?


        Salomão Quadros - Medidas anticíclicas são legítimas e podem ser úteis para impedir que um país mergulhe numa recessão. Mas devem ser usadas com moderação, caso contrário caem em descrédito e podem gerar o efeito contrário ao desejado. O governo brasileiro seguiu políticas anticíclicas eficazes durante a crise de 2008 e, a partir de então, passou a lançar mão delas de maneira mais corriqueira. Vale lembrar que nem tudo se resolve com política anticíclica. Se uma pessoa tem medo de perder o emprego, ela não se endividará. Um estímulo creditício nestas circunstâncias terá efeito pouco relevante.


BMM - Em que medida a credibilidade (ou a falta dela) de um governo na condução da política econômica e do combate á inflação?


          Salomão Quadros - Credibilidade é o atributo daquilo em que se acredita, que é possível. Se um governo anuncia um objetivo, como o de conter a inflação, mas segue políticas incompatíveis com este objetivo, ele não desfruta de credibilidade e certamente não alcançará os resultados pretendidos. A credibilidade é construída, é um investimento que requer algum esforço e coerência ao longo do tempo. Como todo investimento, também oferece retorno. Um banco central que goze de grande credibilidade provavelmente controlará a inflação mais depressa e com menores custos em termos de juros altos e desemprego do que outro que não possua a mesma reputação. Neste caso, será preciso um esforço adicional para a construção de um grau mínimo de credibilidade. A independência é um mecanismo institucional que em muito contribui para a credibilidade do banco central e para a eficiência da política monetária. 


BMM – O governo continua a gastar muito, acima do que arrecada. Sem sequer entrarmos no mérito quanto à qualidade desses gastos, qual é o papel da política fiscal e, mais especificamente, qual a importância dos superávits primários na busca de uma economia estabilizada?


        Salomão Quadros – O superávit primário (o resultado das contas do governo excluídas as despesas com o pagamento de juros) é necessário para que o endividamento público não cresça. De outro modo, se o endividamento público for crescente, cresce o risco daqueles que financiam o governo, e aí se incluem não apenas os grandes investidores, mas também os pequenos poupadores que têm aplicações lastreadas em títulos públicos. Uma conta de juros alta requer superávits mais altos e assim por diante. Outro ponto que merece atenção é que o superávit fiscal deve ser sustentável. Não adianta muito se fazer um enorme esforço que depois seja revertido.


BMM – É possível combater inflação sem que se tenha uma política fiscal alinhada com a política monetária?


          Salomão Quadros – Quando a política fiscal se harmoniza com a monetária numa fase em que é preciso combater a inflação, os juros não precisam subir tanto. Uma política fiscal contracionista reduz a demanda e favorece o controle inflacionário.


BMM – O que o próximo governo, não importando o partido, e mesmo que seja o atual, reeleito, deve fazer para recolocar a inflação dentro da meta? E em quanto tempo isso pode ser feito?


        Salomão Quadros – Antes de voltar para o centro da meta, a inflação possivelmente se afastará dele por conta do necessário ajuste dos preços administrados. Mas este movimento é reversível. Vai requerer uma dose adicional de juros por um tempo razoável de modo a evitar que o choque provocado pelo ajuste dos administrados contamine o conjunto dos preços. Além disto, é importante que a política fiscal se torne menos expansiva. Mesmo que tudo isto aconteça, não veremos a inflação próxima do centro da meta antes de dois ou três anos.


BMM – Por fim, há crescimento sustentável sem estabilidade de preços?


          Salomão Quadros – A evidência histórica já demonstrou que a inflação controlada é uma condição necessária ainda que não suficiente para o crescimento de longo prazo. É possível compatibilizar inflação e baixo desemprego por algum tempo, mas, lembrando Keynes, uma pequena inflação é como uma pequena gravidez. É importante ressaltar que a estabilidade de preços não ocorre isolada e espontaneamente. Ela é decorrência de um ambiente macroeconômico equilibrado, resultado de políticas fiscal e monetária coerentes e harmonizadas, onde indivíduos, empresas e o próprio setor público possam por em prática o seu potencial de realizações econômicas.


FIM

sábado, 13 de setembro de 2014

Comentário do Dia

O ex-presidente Lula, em comício de apoio a candidatos governistas esta semana no Amazonas, disse que dos 11 postulantes à Presidência da República este ano apenas Aécio Neves e pastor Everaldo não saíram do PT. Fica então a dica.

quinta-feira, 11 de setembro de 2014

Correção

No artigo da terça-feira dia 09, "O Estado empresário e a corrupção" (mais abaixo), onde se lê, "a corrupção vinha correndo solta na Petrobras há mais de oito anos", o certo é "...há mais de dez anos...".

Entrevista


Os desafios para a paz na Ucrânia


           

Desde maio, cerca de 3 mil pessoas, a metade de civis, morreram na Ucrânia em decorrência da crise que se seguiu ao afastamento do então presidente Viktor Yanukovych, de posicionamento favorável a Moscou. Como consequência dos combates entre forças regulares do governo de Kiev e unidades paramilitares integradas por ucranianos de origem russa e de inspiração separatista, calcula-se que mais de 344 mil pessoas já foram desalojadas.
            Ainda que seja um exagero dizer que o jogo de poder que alimenta a questão ucraniana é uma continuação da Guerra Fria, é inegável que o conflito contém muito de seus ingredientes – senão ideológicos ao menos históricos, econômicos, étnicos e culturais. 
Na opinião de Mario Augusto Santos, diplomata, embaixador do Brasil em Kiev durante quase quatro anos, até 2001, a meta daqueles que “planejaram a crise é a desvinculação energética entre Rússia e Europa Ocidental”.  Na entrevista ao Blog Meta Mensagem que segue abaixo, Mario Santos adverte que o Brasil deve considerar os seus interesses nacionais – o que nem sempre tem ocorrido –, caso seja instado a se pronunciar sobre a questão no contexto das Nações Unidas.  
Ex-embaixador também na Holanda, na Namíbia e no Quênia, e assessor internacional do Ministério da Educação (de 1985 a 1990) e do Ministério das Minas e Energia (de 2001 a 2004), esclarece que, no caso, a melhor opção, neste momento, seria o Brasil se abster de condenar qualquer das partes.
Sobre o risco de prolongamento do conflito que dilacera o país do Leste europeu, lembra que, se a guerra é a continuação da política (ou da diplomacia) por outros meios, como decretava Clausewitz, “a diplomacia é, por sua vez, a continuação da guerra”. Ou seja, há sempre uma forma de se chegar à paz negociada. E, se a ética é demasiadamente subjetiva e pouco instrutiva como guia diplomático, como ele próprio alerta, só nos cabe valorizar e fortalecer o papel da ONU.
A entrevista é fundamental para entender o embate de interesses internacionais, certamente não declinados, que tem hoje a Ucrânia como palco.
 

           Mario Augusto Santos
 
Blog Meta Mensagem - Assistimos a uma crise na Ucrânia sem saber ao certo se a neutralidade, no caso, seria ética. O que de fato está em jogo no conflito envolvendo ucranianos e separatistas pró-Rússia?
Mario Santos – Ucranianos e russos conviveram durante séculos, não obstante repressão russa da língua e cultura ucranianas. A repressão ora se intensificava, ora relaxava, mas nunca logrou extingui-las completamente. Lenin, afinal, era a favor de incentivar a cultura dos povos que compunham a União Soviética. Stalin restringiu muito esses propósitos.
O desmonte de um império é sempre complicado. Durante o império soviético, muitos russos estabeleceram residência na Ucrânia, sobretudo na parte oriental, onde várias indústrias estratégicas foram localizadas. A Crimea, por exemplo, base naval soviética, foi adotada como lar de milhares de oficiais russos reformados e suas famílias. Com o tempo, passaram a ser a maioria da população. Do mesmo modo, muitos ucranianos foram morar na Rússia. O desenvolvimento da indústria de petróleo da Rússia deve muito a ucranianos. Na União Soviética, todos eram soviéticos.
A independência transformou subitamente esses contingentes de russos em estrangeiros. A convivência, então, assumiu aspecto político, uma vez que contigente grande de estrangeiros em qualquer país é sempre complicador. Estima-se que de 30% a 40% da população da Ucrânia são russos ou de origem russa. No entanto, sendo ambos povos eslavos, com línguas quase idênticas, o convívio não foi difícil. Diria que foi bem mais fácil do que nos países balticos, onde a população local não-eslava manifestou rejeição aos russos subitamente estrangeiros. No entanto, acredito que fator econômico pode estar contribuindo para criar a atual desarmonia entre ucranianos e russos. A Ucrânia perdeu cerca de 60% de sua economia com a independência. As conseqüências sociais foram dramáticas. Na Rússia, a situação econômica logo depois do desmonte da União Soviética era também desastrosa, o que retirou dos russos na Ucrânia qualquer possibilidade de esperar socorro externo. Ucranianos e russos sofreram juntos enormes dificuldades. A situação hoje é diferente. A Rússia cresce economicamente e a Ucrânia continua estagnada por causa da configuração negativa de sua política interna, dominada por clãs herdados do período soviético. Na Rússia, essa mesma situação, se não superada, foi satisfatoriamente controlada por obra de Vladimir Putin. Hoje, a população russa na Ucrânia pode esperar socorro de seu país de origem. Portanto, o descompasso no crescimento econômico da Rússia e da Ucrânia pode ter ativado problema latente.
 
BMM – Os russos da Ucrânia tomaram a iniciativa de pedir ajuda à Rússia, passando por cima de Kiev, ou essa súbita desarmonia tem outra causa?
 
Mario Santos – Em minha opinião, o impulso que detonou a crise vem da Ucrânia Ocidental. Essa região, antes polonesa, foi incorporada à força à União Soviética como conseqüência do tratado Molotov-Ribbentrop. Consequentemente, sempre abrigou forte sentimento antirusso e um ultranacionalismo reflexo. Yeltsin buscou nessa região apoio para impulsionar o movimento libertador que resultou na independência da Ucrânia e que levou, simultaneamente, ao desmonte da União Soviética. Era a facção da Ucrânia Ocidental que, como participante do governo de, digamos, união nacional, pleiteava aproximação com a União Européia logo depois da independência. Na época, esses esforços não tiveram resultado por causa do enorme peso que seria para a Europa Ocidental soerguer um país do tamanho da Ucrânia, sobretudo em vista do fato de que o único setor civil organizado politicamente era poderosos clãs, cujos interesses nem sempre coincidiam com os do país e muito menos com a agenda econômica que o FMI e outras instituições europeias pretendiam impor. A situação hoje mudou bastante. A Ucrânia continua estagnada e os clãs ainda controlam a política interna, mas a facção da Ucrânia Ocidental assumiu o poder em Kiev depois de organizar longas manifestações que resultaram na expulsão de presidente pró-russo, e detém esse poder com ajuda do Ocidente, que aparentemente se mostra disposto agora a bancar o ônus ucraniano. O que noto, atualmente, de um lado, é o governo de Kiev que rejeita sistematicamente qualquer entendimento com a Rússia e, do outro lado, seguidas tentativas de Moscou para levar Kiev a chegar a uma composição de interesses com a Rússia através de oferta de vantagens econômicas acopladas a fomento de revolta entre os russos ucranianos, a formação de quadros para-militares e ao estímulo implícito a propostas de desmembramento de partes da Ucrânia Oriental. O tradicional bate e sopra. Esse é um jogo que Putin não pode perder. Mostrou que joga para valer ao anexar a Crimea. Deixo para a resposta à sterceira pergunta a análise sobre o que, em minha opinião, está em jogo nesse conflito. Antes, porém, cabem alguns comentários sobre ética e neutralidade, mencionadas na primeira pergunta.
Uma política externa pode ser guiada por princípios éticos ou por interesses nacionais. Ou ambos. Muitas vezes tambem tem por traz motivos escusos. Em minha opinião, interesses nacionais legítimos devem sempre prevalecer. A ética é demasiadamente subjetiva e pouco instrutiva como guia diplomático. A parte acordos, convênios e tratados e outros instrumentos em vigor, relações internacionais são um campo sem regras onde o poder geralmente comanda. Nesse contexto, defender e promover os interesses nacionais deve ter prioridade porque são pontos de referência claros e inequívocos, tanto para o planejador como para o público interno. Por outro lado, são poucos os princípios éticos que têm aceitação universal, mas esses quase todos respeitam. Os violadores geralmente sofrem opróbrio geral. Conflitos entre estados têm uma pluralidade de motivos, geralmente legítimos do ponto de vista dos protagonistas, mas também passíveis de solução negociada. É o caso do conflito entre a Rússia e a Ucrânia. Ambos os lados têm suas razões, e me parece claro que interesses nacionais estão em jogo. Como deve então o Brasil se posicionar diante desse conflito? Se o Brasil for chamado a se pronunciar, por exemplo, num contexto de Nações Unidas, o Brasil deve também levar em conta os seus interesses nacionais, e nesse caso eu diria que a abstenção seria a melhor opção. O Brasil mantém boas relações com ambos os países e não é de seu interesse prejudicá-los tomando partido. As relações com a Rússia são mais robustas do que as com a Ucrânia, isso porque a Rússia cresce e a Ucrânia não. Mas nem por isso o Brasil deve favorecer a Rússia em detrimento da Ucrânia. A evolução da crise pode levar, porém, a uma mudança de atitude. Por exemplo, se o governo ucraniano der provas de que não negocia com a Rússia para manter viva a crise, o Brasil deve se manifestar advertindo a Ucrânia de que está pondo em risco a paz internacional. Essa mesma advertência pode ser dirigida à Rússia se ela, no evoluir da crise, invadir a Ucrânia, por exemplo.
 
BMM – Esse conflito opõe a Ucrânia à Rússia ou, na verdade, opõe a Rússia aos Estados Unidos e à Europa Ocidental?
 
Mario Santos – A Guerra Fria acabou, mas o jogo de poder entre potências continua. Os Estados Unidos são a maior potência mundial e pretendem manter esse status. Para isso, necessita, entre outras preocupações, impedir o surgimento de potências ou focos de poder que possam lhes ameaçar ou enfraquecer a sua posição hegemônica. A China visa claramente superar os Estados Unidos, mas estes ainda não encontraram a fórmula para travar o crescimento chinês. Fator que dificulta sobremaneira enfrentar o crescente poderio chinês é a estreita interdependência econômica entre os dois. Não existe interdependência entre a Rússia e os Estados Unidos.
A Rússia é velha inimiga dos Estados Unidos. A inimizade continua não obstante o desaparecimento da rivalidade ideológica, mas a rivalidade de poder permanece. A Rússia é o único país que possui armas nucleares que podem destruir os Estados Unidos e, graças à riqueza que acumula exportando energia para a Europa Ocidental, renovou e modernizou suas forças armadas e as alicerçou sobre forte base de desenvolvimento tecnológico. Os armamentos dessas forças equivalem ao dos americanos e, em certos aspectos, são superiores.
Embora a Rússia não represente ameaça direta aos Estados Unidos, ela é, do ponto de vista estratégico, uma ameaça à Europa Ocidental, do mesmo modo que a Europa Ocidental é, através da OTAN, uma ameaça à Russia. Essa ameaça agudizou-se com a incorporação à OTAN das ex-repúblicas populares da Europa Oriental. Para um país extremamente traumatizado com três invasões nos últimos 200 anos, sendo que a última deixou cerca de 28 milhões de mortos e um país devastado, nada mais ominoso do que a aproximação da OTAN às suas fronteiras. Para Putin, o governo russo e o povo da Rússia, a linha vermelha seria a adesão da Ucrânia à aliança militar ocidental. A Ucrânia é entidade muito diferente da Polônia ou Bulgária. Para começar, a Ucrânia fez parte da Rússia desde 1654 quando, pelo Tratado de Pereiaslav, Bogdan Hmelnitski hipotecou fidelidade ao Czar e pediu-lhe proteção contra a Polônia e a Turquia. (Para festejar os 300 anos de união, Krushev presenteou a Ucrânia com a Crimea. Pode-se entender a anexação da Crimea como conseqüência da atitude do atual governo ucraniano de virar as costas à Rússia). Além desse aspecto histórico de muita importância, outros fatores, de igual ou maior relevância, tornam a Ucrânia vital para a Rússia. Para citar alguns, chamo a atenção para o fator geo-político, de que os dois países compartilham fronteira comum de mais de 2 mil quilômetros. Uma analogia do lado ocidental seria a fronteira Estados Unidos e Canadá. Para o Canada, não há alternativa se não a de manter estreito entendimento com os Estados Unidos sobre questões de vital interesse destes. Outro exemplo é a Finlândia, antiga província do império czarista, que, mesmo durante a Guerra Fria e membro do campo ocidental, jamais tomou iniciativa que ameaçasse a segurança soviética, apesar da guerra que os dois travaram nos anos 40 e da perda de território pela Finlândia em consequência daquele conflito. Posso imaginar o pesadelo que seria para os planejadores militares russos terem de classificar essa longa fronteira sem defesas naturais como potencialmente hostil. Mas é o fator econômico que causa mais impacto de imediato. A Ucrânia sempre foi o celeiro da Rússia e da União Soviética. Possui terras negras, das quais mais de terço situam-se lá, e estas sempre representaram segurança alimentar para o conjunto, pois o vasto território russo é escasso em boas terras agricultáveis. Não poder ter acesso seguro aos grãos ucranianos iria agravar uma das três fraquezas da Russia. A primeira delas é a dependência na importação de alimentos do exterior. É realmente surpreendente que um país do tamanho da Rússia não consiga se alimentar, nem desenvolver tecnologia agrícola capaz de aumentar o rendimento das plantações de grãos. Essa dependência foi muito explorada pelo Ocidente durante a Guerra Fria, quando periodicamente Moscou se via obrigada a despender valiosas divisas importando trigo dos Estados Unidos e do Canadá. A segunda fraqueza é a precariedade dos vínculos que unem os povos que compunham a União Soviética. O colapso da União mostrou claramente que a política repressiva de Stalin falhou no longo prazo. No entanto, o movimento de independência ainda não terminou. Tomou agora o aspecto de extrair as ex-repúblicas soviéticas da zona de influência de Moscou. No entanto, qualquer movimento de neutralização da influência de Moscou sobre os países do seu near abroad só poderá ter êxito com ajuda externa. Explorar a animosidade remanescente entre russos e, por exemplo, ucranianos, é a opção válida para quem visa a enfraquecer e isolar a Rússia. E é o que está acontecendo no momento.  O antecedente da Georgia mostra que se trata de uma linha de conduta estratégica do Ocidente. Putin está pagando pelos erros de Stalin. A Terceira fraqueza é a dependência da economia russa na exportação de energia para a Europa Ocidental. Acredito que a meta daqueles que planejaram essa crise é a eventual desvinculação energética, total ou parcial, entre a Rússia e a Europa Ocidental, a qual seria substituída por energia americana proveniente do xisto. Se a crise não for resolvida, a política de sanções avançará ate atingir as importações de gás e petróleo. Se tal eventualidade ocorrer, não seria surpreendente se Moscou a interpretar como causus belli, como seria tambem ato hostil a adesão da Ucrânia à OTAN. Tudo dependerá, nesses casos, da atitude final da Europa Ocidental, de concordar ou não em ter uma Rússia enfurecida nas suas fronteiras.
Voltando à importância da Ucrânia para a Russia, o fator demográfico tem de ser citado. Os ucranianos são eslavos muito próximos aos russos e, no conjunto de povos que compõem a Rússia, os únicos outros eslavos, com exceção dos da Bielorússia. Em toda sua história, a Rússia sempre cultivou forte afinidade com outros povos eslavos. O Pan-Eslavismo, como doutrina política russa, ainda não morreu. Por fim, mas ainda deixando a lista incompleta, há de se levar em conta que a Ucrânia abriga número grande de indústrias estratégicas, como a de mísseis balísticos intercontinentais (o foguete que lançaria satélites de Alcântara é russo, mas fabricado na Ucrânia), turbinas de avião, armamentos de vários tipos, inclusive blindados, aeronáutica (Antonov) e centros de pesquisa militar. Depois da independência, Rússia e Ucrânia acordaram que tais indústrias não seriam prejudicadas pelos acontecimentos políticos, uma vez que são do interesse dos dois países. Não posso dizer se essa situação prevalece hoje, mas foi aquele espírito que predominou quando os dois países dividiram a frota do Mar Negro.
Como se pode ver, a Rússia tem várias facetas de vulnerabilidade e, em minha opinião, elas estão sendo exploradas nesse jogo de poder pelo Ocidente, tendo à frente os Estados Unidos, e com a ajuda interna do governo ucraniano. Portanto, enquanto o Ocidente apoiar esse governo, Kiev não sentará na mesa de negociações, permitindo assim que o Ocidente eleve progressivamente o nível das sanções. 
 
 
BMM – Seria correto dizer que ucranianos de origem russa têm direito a permanecer russos e a criar um novo Estado, soberano, no leste da Ucrânia, pró-Rússia, assim como os ucranianos, com o colapso da URSS, tiveram direito ao seu território e ao seu Estado independente?
 
Mario Santos – Como disse anteriormente, os cidadãos soviéticos de origem russa que vivem na Ucrânia tornaram-se subitamente estrangeiros, mas não perderam o direito de permanecerem russos. Não creio, porém, que tenham direito de formar, por isso, um estado independente, nem solicitar anexação à Rússia. Constituem, no entanto, sério problema para Kiev que, por considerar que o convívio das duas nacionalidades foi sempre historicamente pacífico, nunca tomou providências para enquadrar jurídica e corretamente a situação. É preciso não esquecer que o colapso da União Soviética teve origem no movimento quase simultâneo de separação de várias das repúblicas constitutivas, entre elas a Ucrânia, cuja independência concorreu para provocar o colapso. A independência não veio depois dele. Yeltsin, que na época era presidente da Rússia, também apoiou a separação de sua republica da União.
 
BMM – Essa saída (de um território para os ucranianos pró-Rússia na Ucrânia) seria plausível do ponto de vista diplomático ou isso sequer deve ser colocado em discussão no momento?
 
Mario Santos – Do ponto de vista diplomático, tudo é possível, ou quase. Basta negociar. Mas o desmembramento da Ucrânia não me parece hipótese realista. As regiões de Lugansk e Donetz são territórios historicamente ucranianos e nenhum governo ucraniano, mesmo um governo pró-russo, concordaria em abrir mão deles em nome de um fato produzido pela União Soviética. Essas regiões não têm o mesmo status que a Crimea. E por isso, creio, que Moscou é tão enigmático e esquivo quanto à sua anexação. Dá a entender que anexaria, mas está plenamente ciente de suas consequências. Tem-se falado numa espécie de federação, na qual as regiões com maioria russa gozaria de status especial, mas se isso representará solução imediata para a crise, certamente se transformará em novo problema no futuro.  Uma saída negociada é sempre possível, mas é preciso que haja ambiente para isso. Como disse antes, um governo antirusso em Kiev está sendo apoiado pelo Ocidente para conduzir um jogo de poder com a Rússia. Enquanto esse apoio durar, a Ucrânia não sentará na mesa de negociações. Uma agenda comum não é difícil de imaginar. Figurariam o status da população russa, negligenciada até agora, e entendimentos básicos sobre o relacionamento entre os dois países. De forma simplificada, imaginaria que Moscou diria à Ucrânia o seguinte: você tem a liberdade de fazer o que quiser, desde que não prejudique minha segurança. A questão é saber até que ponto o Ocidente pretende levar esse jogo e se a Europa Ocidental concordaria em ficar do lado dos Estados Unidos ate o fim.
 
BMM – Quais as consequências para a Europa e o mundo de um eventual aprofundamento e prolongamento deste conflito?
 
Mario Santos – A Rússia não pode sair perdedor desse jogo. Seus interesses vitais estão em questão. O Governo russo é o que vai determinar o ponto de ruptura, que pode levar a uma invasão da Ucrânia. As conseqüências disso são imprevisíveis. Os Estados Unidos estão dando mostras de que se preparam para uma nova rodada de ações militares. Os acontecimentos no Oriente Médio abriram a porta para isso. Foi anunciado que os pontos fortes da ISIS na Síria serão bombardeados, com o sem o consentimento do governo sírio. Isso de certa forma rompe o entendimento entre a Rússia e os Estados Unidos de não intervenção na guerra civil daquele país. O fato de que a Rússia não tenha sido consultada sobre o assunto revela o propósito de isolá-la também nessa questão, com sérios reflexos sobre a situação ucraniana.
 
BMM – Uma tendência dos meios de comunicação no Brasil e no Ocidente de maneira geral é noticiar fatos na Ásia, no Oriente Médio ou mesmo no Leste europeu a partir da ótica americana, uma vez que boa parte do noticiário é gerada pelas agências americanas ou é produzida por jornalistas brasileiros que operam a partir dos Estados Unidos, sob a influência, portanto, de sua política externa.  Como diplomata, como você avalia o noticiário internacional que nos chega?
 
Mario Santos – Política internacional é assunto secundário na imprensa brasileira. Infelizmente! Por ter poucos jornalistas especializados em política externa, a imprensa brasileira se compraz em reproduzir o noticiário internacional sobre eventos que acontecem no nosso continente e nos demais. Isso é lamentável por três razões. Em primeiro lugar, informações completas sobre os eventos mais importantes sempre faltam e, em segundo lugar, o leitor raramente tem a seu dispor um histórico que lhe facultaria melhor entendimento do que se passa, a não ser que se dê ao trabalho de pesquisar no Google. A terceira razão é mais séria, a meu ver. O noticiário internacional que nos chega é uma versão dos acontecimentos, passada como verdadeira e correta. A tendência é o leitor aceitá-la como apresentada. Isso é desinformação.
Perpetuar o poder requer muito mais do que musculatura militar e econômica. Para os Estados Unidos, é essencial que os povos se identificam com a ideologia americana e incorporem sua cultura. O cinema é instrumento poderoso para tal. Num patamar mais discreto, a ação política das embaixadas americanas, e de seu departamento de imprensa, é crucial para manter governos e opinião pública alinhados com as posições dos Estados Unidos. Quando os Estados Unidos entra em conflito com outro país, a técnica utilizada é etiquetá-lo como vilão e criminoso. Será mesmo que todos os adversários dos Estados Unidos são vilões e criminosos? O leitor é quem deveria decidir, mas ele acaba adotando o que a “opinião pública” trombeteia. No que diz respeito a Vladimir Putin, artigo publicado em O Globo, em 4 do corrente, na seção Opinião, é típico desse processo de vilipendio. Listo alguns dos atributos negativos atribuídos ao chefe de governo russo. Putin é um Czar. Ele deseja recriar o antigo poderio da União Soviética. Baseia sua política externa no arsenal nuclear da Rússia. Putin é enxadrista e antigo espião. Foi ele quem criou a crise ucraniana. Ao referir-se aos territórios onde vive grande contingente de russos como Novaya Rossyia (Nova Russia, antigo termo czarista para a região) revela suas pretensões territoriais. E, para coroar a lista, Putin é um cínico e farsante. Realmente, o que fazer com um governante desse calibre? Esse artigo destina-se apenas a influenciar a opinião publica. Para o diplomata, no entanto, a sua leitura não traz nenhum fato ou análise relevantes. O que importa, para o diplomata brasileiro, é saber se Putin, na defesa dos interesses russos, está conduzindo a crise com a finalidade de evitar um conflito geral.
 
BMM – No momento em que conflitos armados devastam o Oriente Médio e atingem novamente a Europa, devemos continuar acreditando na diplomacia ou devemos nos resignar e prestar homenagem a Carl von Clausewitz?
 
Mario Santos – Carl von Clausewitz disse que a guerra é a continuação da diplomacia. Eu completaria esse pensamento dizendo que a diplomacia é a continuação da guerra. (O aditamento não é meu). Na sociedade internacional, conflitos sempre haverá, e guerras também. Conflitos e guerras podem durar anos, mas sempre chega o momento em que as partes decidem conversar, principalmente se o conflito as exauriu. É o momento da diplomacia. A história é bastante clara sobre esse processo. Por exemplo, a Guerra dos 30 Anos terminou com o Tratado de Westfalia (1640), um marco da diplomacia cujos dispositivos sobre o enquadramento das relações internacionais são válidos ate hoje.
 
BBM – A ONU ainda cumpre o seu papel como promotora  da paz?
 
Mario Santos – A ONU cumpre o papel que lhe é permitido. Não devemos esquecer que a ONU está inserida num contexto em que uma grande potência exerce seu poder e tenta evitar que outras potências surjam e reduzam esse poder. A primeira lei do poder é exercê-lo plenamente. A segunda lei é não o repartir com ninguém. Assuntos de vital interesse dos Estados Unidos são tratados diretamente por ele. Seria uma abdicação de poder se os Estados Unidos pedissem à ONU para dar encaminhamento aos seus interesses. Esse poder hegemônico se exerce também sobre a ONU, no sentido de manter a organização sobre seu controle. A resistência em modificar a composição do Conselho de Segurança é claramente do interesse dos atuais membros permanentes. Mais importante do que lamentar a ausência de poder da ONU é imaginar um mundo sem ela. A ONU é, e continuará a ser, um poder moral num cenário internacional onde a moral é escassa. Ademais, a Organização desenvolve trabalho notável na área social, econômica e de assistência humanitária, basicamente isento de influências das grandes potências, e através de suas agências especializadas, estabelece padrões e elabora normas que se traduzem em metas para os países em desenvolvimento.  E é um polo de atração para todos aqueles que acreditam que um locus para o entendimento entre as nações serve melhor à paz internacional do que a onipresença de uma superpotência. O internacionalismo (não globalização) é ainda meta longínqua, mas não irrealista. O interessante aqui é que ele adentrou o cenário internacional através do Presidente Woodrow Wilson e seus 14 pontos.
FIM