quinta-feira, 11 de setembro de 2014

Entrevista


Os desafios para a paz na Ucrânia


           

Desde maio, cerca de 3 mil pessoas, a metade de civis, morreram na Ucrânia em decorrência da crise que se seguiu ao afastamento do então presidente Viktor Yanukovych, de posicionamento favorável a Moscou. Como consequência dos combates entre forças regulares do governo de Kiev e unidades paramilitares integradas por ucranianos de origem russa e de inspiração separatista, calcula-se que mais de 344 mil pessoas já foram desalojadas.
            Ainda que seja um exagero dizer que o jogo de poder que alimenta a questão ucraniana é uma continuação da Guerra Fria, é inegável que o conflito contém muito de seus ingredientes – senão ideológicos ao menos históricos, econômicos, étnicos e culturais. 
Na opinião de Mario Augusto Santos, diplomata, embaixador do Brasil em Kiev durante quase quatro anos, até 2001, a meta daqueles que “planejaram a crise é a desvinculação energética entre Rússia e Europa Ocidental”.  Na entrevista ao Blog Meta Mensagem que segue abaixo, Mario Santos adverte que o Brasil deve considerar os seus interesses nacionais – o que nem sempre tem ocorrido –, caso seja instado a se pronunciar sobre a questão no contexto das Nações Unidas.  
Ex-embaixador também na Holanda, na Namíbia e no Quênia, e assessor internacional do Ministério da Educação (de 1985 a 1990) e do Ministério das Minas e Energia (de 2001 a 2004), esclarece que, no caso, a melhor opção, neste momento, seria o Brasil se abster de condenar qualquer das partes.
Sobre o risco de prolongamento do conflito que dilacera o país do Leste europeu, lembra que, se a guerra é a continuação da política (ou da diplomacia) por outros meios, como decretava Clausewitz, “a diplomacia é, por sua vez, a continuação da guerra”. Ou seja, há sempre uma forma de se chegar à paz negociada. E, se a ética é demasiadamente subjetiva e pouco instrutiva como guia diplomático, como ele próprio alerta, só nos cabe valorizar e fortalecer o papel da ONU.
A entrevista é fundamental para entender o embate de interesses internacionais, certamente não declinados, que tem hoje a Ucrânia como palco.
 

           Mario Augusto Santos
 
Blog Meta Mensagem - Assistimos a uma crise na Ucrânia sem saber ao certo se a neutralidade, no caso, seria ética. O que de fato está em jogo no conflito envolvendo ucranianos e separatistas pró-Rússia?
Mario Santos – Ucranianos e russos conviveram durante séculos, não obstante repressão russa da língua e cultura ucranianas. A repressão ora se intensificava, ora relaxava, mas nunca logrou extingui-las completamente. Lenin, afinal, era a favor de incentivar a cultura dos povos que compunham a União Soviética. Stalin restringiu muito esses propósitos.
O desmonte de um império é sempre complicado. Durante o império soviético, muitos russos estabeleceram residência na Ucrânia, sobretudo na parte oriental, onde várias indústrias estratégicas foram localizadas. A Crimea, por exemplo, base naval soviética, foi adotada como lar de milhares de oficiais russos reformados e suas famílias. Com o tempo, passaram a ser a maioria da população. Do mesmo modo, muitos ucranianos foram morar na Rússia. O desenvolvimento da indústria de petróleo da Rússia deve muito a ucranianos. Na União Soviética, todos eram soviéticos.
A independência transformou subitamente esses contingentes de russos em estrangeiros. A convivência, então, assumiu aspecto político, uma vez que contigente grande de estrangeiros em qualquer país é sempre complicador. Estima-se que de 30% a 40% da população da Ucrânia são russos ou de origem russa. No entanto, sendo ambos povos eslavos, com línguas quase idênticas, o convívio não foi difícil. Diria que foi bem mais fácil do que nos países balticos, onde a população local não-eslava manifestou rejeição aos russos subitamente estrangeiros. No entanto, acredito que fator econômico pode estar contribuindo para criar a atual desarmonia entre ucranianos e russos. A Ucrânia perdeu cerca de 60% de sua economia com a independência. As conseqüências sociais foram dramáticas. Na Rússia, a situação econômica logo depois do desmonte da União Soviética era também desastrosa, o que retirou dos russos na Ucrânia qualquer possibilidade de esperar socorro externo. Ucranianos e russos sofreram juntos enormes dificuldades. A situação hoje é diferente. A Rússia cresce economicamente e a Ucrânia continua estagnada por causa da configuração negativa de sua política interna, dominada por clãs herdados do período soviético. Na Rússia, essa mesma situação, se não superada, foi satisfatoriamente controlada por obra de Vladimir Putin. Hoje, a população russa na Ucrânia pode esperar socorro de seu país de origem. Portanto, o descompasso no crescimento econômico da Rússia e da Ucrânia pode ter ativado problema latente.
 
BMM – Os russos da Ucrânia tomaram a iniciativa de pedir ajuda à Rússia, passando por cima de Kiev, ou essa súbita desarmonia tem outra causa?
 
Mario Santos – Em minha opinião, o impulso que detonou a crise vem da Ucrânia Ocidental. Essa região, antes polonesa, foi incorporada à força à União Soviética como conseqüência do tratado Molotov-Ribbentrop. Consequentemente, sempre abrigou forte sentimento antirusso e um ultranacionalismo reflexo. Yeltsin buscou nessa região apoio para impulsionar o movimento libertador que resultou na independência da Ucrânia e que levou, simultaneamente, ao desmonte da União Soviética. Era a facção da Ucrânia Ocidental que, como participante do governo de, digamos, união nacional, pleiteava aproximação com a União Européia logo depois da independência. Na época, esses esforços não tiveram resultado por causa do enorme peso que seria para a Europa Ocidental soerguer um país do tamanho da Ucrânia, sobretudo em vista do fato de que o único setor civil organizado politicamente era poderosos clãs, cujos interesses nem sempre coincidiam com os do país e muito menos com a agenda econômica que o FMI e outras instituições europeias pretendiam impor. A situação hoje mudou bastante. A Ucrânia continua estagnada e os clãs ainda controlam a política interna, mas a facção da Ucrânia Ocidental assumiu o poder em Kiev depois de organizar longas manifestações que resultaram na expulsão de presidente pró-russo, e detém esse poder com ajuda do Ocidente, que aparentemente se mostra disposto agora a bancar o ônus ucraniano. O que noto, atualmente, de um lado, é o governo de Kiev que rejeita sistematicamente qualquer entendimento com a Rússia e, do outro lado, seguidas tentativas de Moscou para levar Kiev a chegar a uma composição de interesses com a Rússia através de oferta de vantagens econômicas acopladas a fomento de revolta entre os russos ucranianos, a formação de quadros para-militares e ao estímulo implícito a propostas de desmembramento de partes da Ucrânia Oriental. O tradicional bate e sopra. Esse é um jogo que Putin não pode perder. Mostrou que joga para valer ao anexar a Crimea. Deixo para a resposta à sterceira pergunta a análise sobre o que, em minha opinião, está em jogo nesse conflito. Antes, porém, cabem alguns comentários sobre ética e neutralidade, mencionadas na primeira pergunta.
Uma política externa pode ser guiada por princípios éticos ou por interesses nacionais. Ou ambos. Muitas vezes tambem tem por traz motivos escusos. Em minha opinião, interesses nacionais legítimos devem sempre prevalecer. A ética é demasiadamente subjetiva e pouco instrutiva como guia diplomático. A parte acordos, convênios e tratados e outros instrumentos em vigor, relações internacionais são um campo sem regras onde o poder geralmente comanda. Nesse contexto, defender e promover os interesses nacionais deve ter prioridade porque são pontos de referência claros e inequívocos, tanto para o planejador como para o público interno. Por outro lado, são poucos os princípios éticos que têm aceitação universal, mas esses quase todos respeitam. Os violadores geralmente sofrem opróbrio geral. Conflitos entre estados têm uma pluralidade de motivos, geralmente legítimos do ponto de vista dos protagonistas, mas também passíveis de solução negociada. É o caso do conflito entre a Rússia e a Ucrânia. Ambos os lados têm suas razões, e me parece claro que interesses nacionais estão em jogo. Como deve então o Brasil se posicionar diante desse conflito? Se o Brasil for chamado a se pronunciar, por exemplo, num contexto de Nações Unidas, o Brasil deve também levar em conta os seus interesses nacionais, e nesse caso eu diria que a abstenção seria a melhor opção. O Brasil mantém boas relações com ambos os países e não é de seu interesse prejudicá-los tomando partido. As relações com a Rússia são mais robustas do que as com a Ucrânia, isso porque a Rússia cresce e a Ucrânia não. Mas nem por isso o Brasil deve favorecer a Rússia em detrimento da Ucrânia. A evolução da crise pode levar, porém, a uma mudança de atitude. Por exemplo, se o governo ucraniano der provas de que não negocia com a Rússia para manter viva a crise, o Brasil deve se manifestar advertindo a Ucrânia de que está pondo em risco a paz internacional. Essa mesma advertência pode ser dirigida à Rússia se ela, no evoluir da crise, invadir a Ucrânia, por exemplo.
 
BMM – Esse conflito opõe a Ucrânia à Rússia ou, na verdade, opõe a Rússia aos Estados Unidos e à Europa Ocidental?
 
Mario Santos – A Guerra Fria acabou, mas o jogo de poder entre potências continua. Os Estados Unidos são a maior potência mundial e pretendem manter esse status. Para isso, necessita, entre outras preocupações, impedir o surgimento de potências ou focos de poder que possam lhes ameaçar ou enfraquecer a sua posição hegemônica. A China visa claramente superar os Estados Unidos, mas estes ainda não encontraram a fórmula para travar o crescimento chinês. Fator que dificulta sobremaneira enfrentar o crescente poderio chinês é a estreita interdependência econômica entre os dois. Não existe interdependência entre a Rússia e os Estados Unidos.
A Rússia é velha inimiga dos Estados Unidos. A inimizade continua não obstante o desaparecimento da rivalidade ideológica, mas a rivalidade de poder permanece. A Rússia é o único país que possui armas nucleares que podem destruir os Estados Unidos e, graças à riqueza que acumula exportando energia para a Europa Ocidental, renovou e modernizou suas forças armadas e as alicerçou sobre forte base de desenvolvimento tecnológico. Os armamentos dessas forças equivalem ao dos americanos e, em certos aspectos, são superiores.
Embora a Rússia não represente ameaça direta aos Estados Unidos, ela é, do ponto de vista estratégico, uma ameaça à Europa Ocidental, do mesmo modo que a Europa Ocidental é, através da OTAN, uma ameaça à Russia. Essa ameaça agudizou-se com a incorporação à OTAN das ex-repúblicas populares da Europa Oriental. Para um país extremamente traumatizado com três invasões nos últimos 200 anos, sendo que a última deixou cerca de 28 milhões de mortos e um país devastado, nada mais ominoso do que a aproximação da OTAN às suas fronteiras. Para Putin, o governo russo e o povo da Rússia, a linha vermelha seria a adesão da Ucrânia à aliança militar ocidental. A Ucrânia é entidade muito diferente da Polônia ou Bulgária. Para começar, a Ucrânia fez parte da Rússia desde 1654 quando, pelo Tratado de Pereiaslav, Bogdan Hmelnitski hipotecou fidelidade ao Czar e pediu-lhe proteção contra a Polônia e a Turquia. (Para festejar os 300 anos de união, Krushev presenteou a Ucrânia com a Crimea. Pode-se entender a anexação da Crimea como conseqüência da atitude do atual governo ucraniano de virar as costas à Rússia). Além desse aspecto histórico de muita importância, outros fatores, de igual ou maior relevância, tornam a Ucrânia vital para a Rússia. Para citar alguns, chamo a atenção para o fator geo-político, de que os dois países compartilham fronteira comum de mais de 2 mil quilômetros. Uma analogia do lado ocidental seria a fronteira Estados Unidos e Canadá. Para o Canada, não há alternativa se não a de manter estreito entendimento com os Estados Unidos sobre questões de vital interesse destes. Outro exemplo é a Finlândia, antiga província do império czarista, que, mesmo durante a Guerra Fria e membro do campo ocidental, jamais tomou iniciativa que ameaçasse a segurança soviética, apesar da guerra que os dois travaram nos anos 40 e da perda de território pela Finlândia em consequência daquele conflito. Posso imaginar o pesadelo que seria para os planejadores militares russos terem de classificar essa longa fronteira sem defesas naturais como potencialmente hostil. Mas é o fator econômico que causa mais impacto de imediato. A Ucrânia sempre foi o celeiro da Rússia e da União Soviética. Possui terras negras, das quais mais de terço situam-se lá, e estas sempre representaram segurança alimentar para o conjunto, pois o vasto território russo é escasso em boas terras agricultáveis. Não poder ter acesso seguro aos grãos ucranianos iria agravar uma das três fraquezas da Russia. A primeira delas é a dependência na importação de alimentos do exterior. É realmente surpreendente que um país do tamanho da Rússia não consiga se alimentar, nem desenvolver tecnologia agrícola capaz de aumentar o rendimento das plantações de grãos. Essa dependência foi muito explorada pelo Ocidente durante a Guerra Fria, quando periodicamente Moscou se via obrigada a despender valiosas divisas importando trigo dos Estados Unidos e do Canadá. A segunda fraqueza é a precariedade dos vínculos que unem os povos que compunham a União Soviética. O colapso da União mostrou claramente que a política repressiva de Stalin falhou no longo prazo. No entanto, o movimento de independência ainda não terminou. Tomou agora o aspecto de extrair as ex-repúblicas soviéticas da zona de influência de Moscou. No entanto, qualquer movimento de neutralização da influência de Moscou sobre os países do seu near abroad só poderá ter êxito com ajuda externa. Explorar a animosidade remanescente entre russos e, por exemplo, ucranianos, é a opção válida para quem visa a enfraquecer e isolar a Rússia. E é o que está acontecendo no momento.  O antecedente da Georgia mostra que se trata de uma linha de conduta estratégica do Ocidente. Putin está pagando pelos erros de Stalin. A Terceira fraqueza é a dependência da economia russa na exportação de energia para a Europa Ocidental. Acredito que a meta daqueles que planejaram essa crise é a eventual desvinculação energética, total ou parcial, entre a Rússia e a Europa Ocidental, a qual seria substituída por energia americana proveniente do xisto. Se a crise não for resolvida, a política de sanções avançará ate atingir as importações de gás e petróleo. Se tal eventualidade ocorrer, não seria surpreendente se Moscou a interpretar como causus belli, como seria tambem ato hostil a adesão da Ucrânia à OTAN. Tudo dependerá, nesses casos, da atitude final da Europa Ocidental, de concordar ou não em ter uma Rússia enfurecida nas suas fronteiras.
Voltando à importância da Ucrânia para a Russia, o fator demográfico tem de ser citado. Os ucranianos são eslavos muito próximos aos russos e, no conjunto de povos que compõem a Rússia, os únicos outros eslavos, com exceção dos da Bielorússia. Em toda sua história, a Rússia sempre cultivou forte afinidade com outros povos eslavos. O Pan-Eslavismo, como doutrina política russa, ainda não morreu. Por fim, mas ainda deixando a lista incompleta, há de se levar em conta que a Ucrânia abriga número grande de indústrias estratégicas, como a de mísseis balísticos intercontinentais (o foguete que lançaria satélites de Alcântara é russo, mas fabricado na Ucrânia), turbinas de avião, armamentos de vários tipos, inclusive blindados, aeronáutica (Antonov) e centros de pesquisa militar. Depois da independência, Rússia e Ucrânia acordaram que tais indústrias não seriam prejudicadas pelos acontecimentos políticos, uma vez que são do interesse dos dois países. Não posso dizer se essa situação prevalece hoje, mas foi aquele espírito que predominou quando os dois países dividiram a frota do Mar Negro.
Como se pode ver, a Rússia tem várias facetas de vulnerabilidade e, em minha opinião, elas estão sendo exploradas nesse jogo de poder pelo Ocidente, tendo à frente os Estados Unidos, e com a ajuda interna do governo ucraniano. Portanto, enquanto o Ocidente apoiar esse governo, Kiev não sentará na mesa de negociações, permitindo assim que o Ocidente eleve progressivamente o nível das sanções. 
 
 
BMM – Seria correto dizer que ucranianos de origem russa têm direito a permanecer russos e a criar um novo Estado, soberano, no leste da Ucrânia, pró-Rússia, assim como os ucranianos, com o colapso da URSS, tiveram direito ao seu território e ao seu Estado independente?
 
Mario Santos – Como disse anteriormente, os cidadãos soviéticos de origem russa que vivem na Ucrânia tornaram-se subitamente estrangeiros, mas não perderam o direito de permanecerem russos. Não creio, porém, que tenham direito de formar, por isso, um estado independente, nem solicitar anexação à Rússia. Constituem, no entanto, sério problema para Kiev que, por considerar que o convívio das duas nacionalidades foi sempre historicamente pacífico, nunca tomou providências para enquadrar jurídica e corretamente a situação. É preciso não esquecer que o colapso da União Soviética teve origem no movimento quase simultâneo de separação de várias das repúblicas constitutivas, entre elas a Ucrânia, cuja independência concorreu para provocar o colapso. A independência não veio depois dele. Yeltsin, que na época era presidente da Rússia, também apoiou a separação de sua republica da União.
 
BMM – Essa saída (de um território para os ucranianos pró-Rússia na Ucrânia) seria plausível do ponto de vista diplomático ou isso sequer deve ser colocado em discussão no momento?
 
Mario Santos – Do ponto de vista diplomático, tudo é possível, ou quase. Basta negociar. Mas o desmembramento da Ucrânia não me parece hipótese realista. As regiões de Lugansk e Donetz são territórios historicamente ucranianos e nenhum governo ucraniano, mesmo um governo pró-russo, concordaria em abrir mão deles em nome de um fato produzido pela União Soviética. Essas regiões não têm o mesmo status que a Crimea. E por isso, creio, que Moscou é tão enigmático e esquivo quanto à sua anexação. Dá a entender que anexaria, mas está plenamente ciente de suas consequências. Tem-se falado numa espécie de federação, na qual as regiões com maioria russa gozaria de status especial, mas se isso representará solução imediata para a crise, certamente se transformará em novo problema no futuro.  Uma saída negociada é sempre possível, mas é preciso que haja ambiente para isso. Como disse antes, um governo antirusso em Kiev está sendo apoiado pelo Ocidente para conduzir um jogo de poder com a Rússia. Enquanto esse apoio durar, a Ucrânia não sentará na mesa de negociações. Uma agenda comum não é difícil de imaginar. Figurariam o status da população russa, negligenciada até agora, e entendimentos básicos sobre o relacionamento entre os dois países. De forma simplificada, imaginaria que Moscou diria à Ucrânia o seguinte: você tem a liberdade de fazer o que quiser, desde que não prejudique minha segurança. A questão é saber até que ponto o Ocidente pretende levar esse jogo e se a Europa Ocidental concordaria em ficar do lado dos Estados Unidos ate o fim.
 
BMM – Quais as consequências para a Europa e o mundo de um eventual aprofundamento e prolongamento deste conflito?
 
Mario Santos – A Rússia não pode sair perdedor desse jogo. Seus interesses vitais estão em questão. O Governo russo é o que vai determinar o ponto de ruptura, que pode levar a uma invasão da Ucrânia. As conseqüências disso são imprevisíveis. Os Estados Unidos estão dando mostras de que se preparam para uma nova rodada de ações militares. Os acontecimentos no Oriente Médio abriram a porta para isso. Foi anunciado que os pontos fortes da ISIS na Síria serão bombardeados, com o sem o consentimento do governo sírio. Isso de certa forma rompe o entendimento entre a Rússia e os Estados Unidos de não intervenção na guerra civil daquele país. O fato de que a Rússia não tenha sido consultada sobre o assunto revela o propósito de isolá-la também nessa questão, com sérios reflexos sobre a situação ucraniana.
 
BMM – Uma tendência dos meios de comunicação no Brasil e no Ocidente de maneira geral é noticiar fatos na Ásia, no Oriente Médio ou mesmo no Leste europeu a partir da ótica americana, uma vez que boa parte do noticiário é gerada pelas agências americanas ou é produzida por jornalistas brasileiros que operam a partir dos Estados Unidos, sob a influência, portanto, de sua política externa.  Como diplomata, como você avalia o noticiário internacional que nos chega?
 
Mario Santos – Política internacional é assunto secundário na imprensa brasileira. Infelizmente! Por ter poucos jornalistas especializados em política externa, a imprensa brasileira se compraz em reproduzir o noticiário internacional sobre eventos que acontecem no nosso continente e nos demais. Isso é lamentável por três razões. Em primeiro lugar, informações completas sobre os eventos mais importantes sempre faltam e, em segundo lugar, o leitor raramente tem a seu dispor um histórico que lhe facultaria melhor entendimento do que se passa, a não ser que se dê ao trabalho de pesquisar no Google. A terceira razão é mais séria, a meu ver. O noticiário internacional que nos chega é uma versão dos acontecimentos, passada como verdadeira e correta. A tendência é o leitor aceitá-la como apresentada. Isso é desinformação.
Perpetuar o poder requer muito mais do que musculatura militar e econômica. Para os Estados Unidos, é essencial que os povos se identificam com a ideologia americana e incorporem sua cultura. O cinema é instrumento poderoso para tal. Num patamar mais discreto, a ação política das embaixadas americanas, e de seu departamento de imprensa, é crucial para manter governos e opinião pública alinhados com as posições dos Estados Unidos. Quando os Estados Unidos entra em conflito com outro país, a técnica utilizada é etiquetá-lo como vilão e criminoso. Será mesmo que todos os adversários dos Estados Unidos são vilões e criminosos? O leitor é quem deveria decidir, mas ele acaba adotando o que a “opinião pública” trombeteia. No que diz respeito a Vladimir Putin, artigo publicado em O Globo, em 4 do corrente, na seção Opinião, é típico desse processo de vilipendio. Listo alguns dos atributos negativos atribuídos ao chefe de governo russo. Putin é um Czar. Ele deseja recriar o antigo poderio da União Soviética. Baseia sua política externa no arsenal nuclear da Rússia. Putin é enxadrista e antigo espião. Foi ele quem criou a crise ucraniana. Ao referir-se aos territórios onde vive grande contingente de russos como Novaya Rossyia (Nova Russia, antigo termo czarista para a região) revela suas pretensões territoriais. E, para coroar a lista, Putin é um cínico e farsante. Realmente, o que fazer com um governante desse calibre? Esse artigo destina-se apenas a influenciar a opinião publica. Para o diplomata, no entanto, a sua leitura não traz nenhum fato ou análise relevantes. O que importa, para o diplomata brasileiro, é saber se Putin, na defesa dos interesses russos, está conduzindo a crise com a finalidade de evitar um conflito geral.
 
BMM – No momento em que conflitos armados devastam o Oriente Médio e atingem novamente a Europa, devemos continuar acreditando na diplomacia ou devemos nos resignar e prestar homenagem a Carl von Clausewitz?
 
Mario Santos – Carl von Clausewitz disse que a guerra é a continuação da diplomacia. Eu completaria esse pensamento dizendo que a diplomacia é a continuação da guerra. (O aditamento não é meu). Na sociedade internacional, conflitos sempre haverá, e guerras também. Conflitos e guerras podem durar anos, mas sempre chega o momento em que as partes decidem conversar, principalmente se o conflito as exauriu. É o momento da diplomacia. A história é bastante clara sobre esse processo. Por exemplo, a Guerra dos 30 Anos terminou com o Tratado de Westfalia (1640), um marco da diplomacia cujos dispositivos sobre o enquadramento das relações internacionais são válidos ate hoje.
 
BBM – A ONU ainda cumpre o seu papel como promotora  da paz?
 
Mario Santos – A ONU cumpre o papel que lhe é permitido. Não devemos esquecer que a ONU está inserida num contexto em que uma grande potência exerce seu poder e tenta evitar que outras potências surjam e reduzam esse poder. A primeira lei do poder é exercê-lo plenamente. A segunda lei é não o repartir com ninguém. Assuntos de vital interesse dos Estados Unidos são tratados diretamente por ele. Seria uma abdicação de poder se os Estados Unidos pedissem à ONU para dar encaminhamento aos seus interesses. Esse poder hegemônico se exerce também sobre a ONU, no sentido de manter a organização sobre seu controle. A resistência em modificar a composição do Conselho de Segurança é claramente do interesse dos atuais membros permanentes. Mais importante do que lamentar a ausência de poder da ONU é imaginar um mundo sem ela. A ONU é, e continuará a ser, um poder moral num cenário internacional onde a moral é escassa. Ademais, a Organização desenvolve trabalho notável na área social, econômica e de assistência humanitária, basicamente isento de influências das grandes potências, e através de suas agências especializadas, estabelece padrões e elabora normas que se traduzem em metas para os países em desenvolvimento.  E é um polo de atração para todos aqueles que acreditam que um locus para o entendimento entre as nações serve melhor à paz internacional do que a onipresença de uma superpotência. O internacionalismo (não globalização) é ainda meta longínqua, mas não irrealista. O interessante aqui é que ele adentrou o cenário internacional através do Presidente Woodrow Wilson e seus 14 pontos.
FIM
 
   
 
 
 
 

 

3 comentários:

  1. Em nome dos ucranianos russos (aqueles ucranianos que não tem perdido sua identidade tradicional russa - no século 19 o poeta símbolo da Ucrânia nem sabia a palavra "ucraniano"), agradeço o Embaixador Mário Augusto Santos excelente analise de nossa situação! Foi grande prazer de ler o texto de uma pessoa cuja atividade de diplomata foi para mim um exemplo de altíssimo profissionalismo!

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  2. A entrevista é muito boa mas a tese sobre a “repressão” dos ucranianos pelos russos me parece uma exageração. Ninguem diz que hoje no Brasil existe discriminação do “povo nordestino” pelo “povo paulista”, mas pode dizer que a elite globalizada é negligente em relação às tradições do Nordeste. Assim mesmo as contradições entre a elite de Petersburgo e a população da Malorússia (nome da Ucrânia até os anos 20 do século XX) não tinham dimensão étnica. Aquela elite ocidentalizada (“europeizada”) discriminava tanto a população da plánicie de Dniepr como a de elevação de Volga, tanto os casacos de Dón como os aborígenes da Sibéria – foi um conflito ideológico-social. O próprio líder de nacionalistas ucranianos, Mikhail Hrushevskiy, lamentava a ausência do antagonismo étnico entre os malo- e velikorussos (segundo classificação atual, entre russos e ucranianos). Hove também o conflito religioso, entre os ortodoxos e os grego-católicos (descrito no “Taras Bulba” de Nikolay Gogol). O que acontece hoje na Novorússia reproduz as contradições antigas. Há milhares de ucranianos étnicos entre os combatentes de Donetsk e Lugansk, que defendem a religião ortodoxa, bem como há grande número de russos (“velikorussos”) com a consiência liberal e ateísta de “zapadnik” (“ocidentalista”) que apoiam o Maidão. Inclusive entre os lídres do Maidão há muitos que nem falam o ucraniano, que publicam seus posts no Facebook, radicalmente anti-Putin, exclusivamente em russo. Quer dizer, o conflito tem uma configuração mais complexa do que um conflito étnico, entre o povo “colonizado” e o “colonizador”. Os ucraninos representavam uma parte considerável da classe priveligiada do Império Russo e portanto eles podem ser considerados “colonizadores”. A interpretação do conflito em termos de contraposição étnica é um anacronismo ideologica e geopoliticamente motivado.

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    1. Obrigado pelo seu comentário, Arthur Rodyna. Abraços, Nilson Mello

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