O pensamento político em Norberto Bobbio
Introdução
Há razões consistentes para o estudo de
Norberto Bobbio e o emprego de seus ensinamentos para a compreensão do fenômeno
político. Permito-me escolher, entre as muitas, o fato de o filósofo e jurista
italiano ter estado entre os mais importantes interlocutores dos embates
ideológicos travados na Europa do século XX. Acrescente-se a sua fecunda
produção intelectual, com notável abrangência.
Os estudos desenvolvidos por Norberto Bobbio
ao longo de seus 78 anos de intensa atividade intelectual (de vida, foram nove
décadas e meia) abrangeram, com
profundidade, os campos da Filosofia Política e da Ciência Política, bem como
da Filosofia do Direito e da Teoria do Direito.
Concisão foi uma de suas principais características. O que não
significa, de forma alguma, que sua obra esteja condensada em poucos volumes.
Ao contrário, seus biógrafos contabilizam mais de 2000 títulos entre ensaios, artigos publicados em jornais e em
periódicos acadêmicos e livros, nos quais seu pensamento emerge de forma
simples, porém, com absoluto rigor
científico, e intuitivo. Seus comentaristas ainda exaltam a sua erudição e o
seu classicismo
Entre as principais obras publicadas,
devemos citar Estado, Governo e Sociedade
- Para um teoria geral da política; Teoria das Formas de Governo; Teoria do Ordenamento Jurídico; Teoria da Norma Jurídica; Dicionário de
Política (escrito com Nicola Mattenti e Gianfanco Pasquino); Igualdade e Liberdade; O
Positivismo Jurídico; Direito
e Estado no Pensamento de Immanuel Kant;
Ensaios
sobre Gramsci e Nem com Marx, nem
contra Marx.
Na presente monografia, percorreremos os
conceitos de Filosofia Política - e, assessoriamente, de Teoria do Estado - na
visão de Bobbio. Devido à amplitude de sua produção filosófica, duas obras
ganharão destaque: Estado, Governo e
Sociedade - Para um teoria geral da política, e A Teoria das Formas de Governo, justamente pela ênfase que dão à
temática que aqui nos interessa (Estruturação político-filosófica do Estado).
Biografia e Contexto intelectual
Cabe
salientar, apenas como referência, que Bobbio nasceu em Turim em 1909, capital
do Piemonte, na Itália, cidade em que também veio a falecer em 2004. Filho de um médico cirurgião, teve uma
educação liberal. Disse ele, certa vez:
"Em minha família nunca tive a
impressão de conflito de classes entre burguesia e proletariado. Fomos educados
a considerar todos os homens iguais. E recordei esta educação para um estilo de
vida democrático". Mais tarde, iria reconhecer que o estilo de vida de sua
família era o que, na Itália da primeira metade do século passado, poderia ser
considerado um "filo-fascismo familiar". Recebeu uma educação
liberal, no sentido político do termo. Não obstante o berço
"burguês", foi, sempre, um forte defensor da pluralidade do
pensamento e, mais que isso, um grande oponente do fascismo. Chegou a ser preso
na década de 1930, recebendo pena de advertência, quando rebelou-se contra as
primeiras leis fascistas do regime de Mussolini.
Graduou-se na Faculdade de Jurisprudência
de Turim, em 1927. Sete anos mais tarde, já assumia um
posto de docente na Universidade de Camerino. Integrou o movimento
Socialista-Liberal na década de 1930 - uma rede de oposição ao regime
mussoliniano, que reunia acadêmicos,
associações religiosas e organismos culturais. Também denominado "Degelo
de Consciência", este foi o primeiro movimento da juventude intelectual de
inspiração não-marxista contra o governo fascista.
Em 1948, após a Segunda Guerra, vai para
Turim, onde passa a lecionar não apenas Filosofia do Direito como Filosofia
Política. Mais tarde, ministra também aulas específicas de Ciência Política.
Exprime, desde os primeiros anos de docência, a dupla paixão pelo Direito e
pela Filosofia. Teve como mentor e mestre Gieoli Salori. E foi profundo
conhecedor de Gortius, Spinoza, Locke, Kant, Rousseau, Hegel e Weber, sofrendo
influência de todos eles.
Em 1979, para de lecionar, mas mantém
intensa atividade publicando livros, ensaios e artigos, e participando do
debate político italiano. Em 1984, é nomeado
senador vitalício pelo presidente Sandro Pertini. Fez ao logo de sua
vida a defesa das regras do jogo democrático, a partir dos seguintes valores:
sociedade livre, tolerante, laica e plural.
A concepção de Estado, Governo e Sociedade em
perspectiva descritiva e analítica
A obra de
Bobbio encontra-se na confluência - não pacífica, evidentemente - das três
grandes correntes ideológicas do século passado: o comunismo, o fascismo (e,
por extensão, o nazismo) e o liberalismo democrático com suas várias nuances,
representados e sob a vigorosa influência, na conjuntura política italiana de
seus primeiros anos na Academia, respectivamente, por Antonio Gramsci
(1891-1937), Giovanne Gentile (1875-1944) e Beneditto Groce (1866-1952). Ao se opor a Mussolini, rejeita Gentile
intelectualmente e coloca-se como síntese entre os outros dois pensadores
contemporâneos e conterrâneos.
No campo
jurídico, Bobbio é um positivista legal ou, como prefere Celso Laffer[1], um
normativista. Difere de Hans Kelsen[2],
porém, porque, ao contrário deste, não reduz o Estado ao Ordenamento Jurídico.
Se para o positivista alemão a distinção
entre Direito Público e Direito Privado é ideológica, para Bobbio ela é
sobretudo científica. Como Max Weber[3],
incorpora, em suas análises, o ponto de vista Jurídico e o ponto de vista
Sociológico. Pode-se dizer que, em certo sentido, é um pós-naturalista como
Hegel, ou seja, vislumbra e reconhece outras dimensões para o Estado além
daquela restrita à fundação que lhe atribui o Contrato Social hobbesiano.
Enfrenta em seus ensaios, desde o início, os
principais questionamentos dos postulados teóricos do debate filosófico, tais
como liberdade, igualdade, tolerância, pluralismo. No Direito, seus estudos
enquadram-se em três campos. O primeiro, o Ontológico, ou seja, o da Teoria do
Direito que se ocupa com o Direito como este existe, procurando alcançar uma
compreensão "consensualizada" da Ciência Jurídica, da Sociologia
Jurídica e da História do Direito; o segundo seria o Metodológico, que foca o
estudo dos procedimentos lógicos usados na argumentação jurídica e na aplicação do Direito; e, por
fim, um terceiro campo de estudo filosófico do Direito em que busca uma análise
com valoração ideológica da interpretação e aplicação das normas jurídicas, ou
seja, incorporando uma crítica ao Direito Positivo.
Como bem salienta Laffer[4], para Bobbio o problema principal da Teoria do
Direito é a determinação do conceito de direito e a diferenciação do fenômeno
jurídico de outros fenômenos, como a moral e os costumes.Vê, portanto, o
Direito como um conjunto de normas a serem estudadas sistematicamente por
meio do conceito de ordenamento
jurídico, compreendendo: 1. a composição
(conceito de normas e seus vários tipos); 2. a formação (a teoria das fontes do
direito); 3. a unidade do ordenamento (ou seja, a questão da hierarquia das
normas); 4. a inteireza (ou seja, a integração das lacunas); 5. a coerência (o
problema das antinomias); 6. as relações espaciais, materiais e temporais
derivadas do inter-relacionamento do ordenamento.
Na visão de Bobbio, existem três pontos de
vista a partir dos quais se pode avaliar uma norma: o da Justiça; o da
validade; e o da eficácia. Daí porque a experiência jurídica deve levar em
conta as ideais de Justiça a se realizar e as normas que exprimem a reação dos
homens a essas ideias. O normativismo de Bobbio não exclui a Filosofia do
Direito, ou seja, a lei positiva não é justa pelo simples fato de ser Lei e
resultar de uma convenção. Isso significa que a sua Teoria do Direito exige uma
Teoria da Justiça, com abordagem necessariamente filosófica.
A sua Teoria da Justiça requer uma reflexão
não apenas analítica - daquela do tipo feita por Kelsen ou Perelman[5] -
mas também um estudo que passe igualmente pela história do Direito e considere
uma investigação axiológica (de valor moral) e sociológico. Por esta razão,
para alguns comentaristas, Bobbio seria um historicista que combina a
deontologia (aquilo que o Direito deve ser) com a sociologia jurídica, ou seja,
a evolução do direito na sociedade e as relações do direito com a sociedade e o
indivíduo. O critério que deve orientar o estudo do Direito, segundo ele, é o
conceito de Justiça, entendido como um conjunto de valores e interesses cuja proteção interessa,
de forma nem sempre consensual, aos indivíduos de uma sociedade.
A convergência entre Filosofia Política e
Filosofia do Direito implica uma discussão acerca do inter-relacionamento entre
Direito e Poder. No campo político, Bobbio propugna um socialismo não-marxista
e, portanto, democrático, tanto no sentido formalista quanto substancial do
termo, livre da "ditadura do proletariado". Rejeita a confusão entre
partido político e movimento social, assim como qualquer forma de reducionismo
político, o que faz com que seja contrário à absolutização da política. Seu
"socialismo-liberal" é mais uma atitude de espírito do que uma ação
partidária.
Afirma Bobbio em Estado, Governo, Sociedade -
Para um teoria geral da política, em uma passagem que constitui um preciso
diagnóstico dos conflitos que levam à instabilidade política em qualquer nação:
"Uma sociedade torna-se tanto mais
ingovernável quanto mais aumentam as demandas da sociedade civil sem que
aumente, correspondentemente, a capacidade das instituições oficiais de a elas
responder, ou melhor, com a capacidade de resposta do Estado alcançando limites
talvez não mais superáveis (donde o tema, por exemplo, da "crise
fiscal"). A ingovernabilidade gera crise de legitimidade"[6].
Em Estado, Governo, Sociedade obra didática
que é ao mesmo tempo descritiva e analítica, o pensador de Turim expõe em
quatro capítulos temas cruciais para a compreensão e estruturação dos conceitos
de Política, Poder e Estado. São eles: I. A Grande dicotomia: público/privado;
II. A sociedade civil; III. Estado, Poder e Governo; e IV. Democracia e
Ditadura.
Em relação ao primeiro tema, ensina Bobbio
que há três distinções que dominam o debate acerca da Dicotomia
Público-Privado. A primeira diz respeito ao confronto entre Sociedade de Iguais
e Sociedade de Desiguais. A segunda detém-se no exame da Lei, ou seja Lex,
Direito Público propriamente dito, e Contrato, o Direito privado em espécie. E
a terceira volta-se para a contraposição entre Justiça comutativa e Justiça
distributiva. O enfrentamento da dicotomia requer o emprego das três dimensões.
Salienta que, na linguagem jurídica, a
preeminência da distinção entre direito privado e direito público sobre todas
as outras distinções chegou a ser de tal ordem que alguns filósofos passaram a
considerar esses conceitos como duas categorias a priori do pensamento jurídico. Os dois termos podem ser
considerados de forma independente ou isoladamente, quando apenas um é definido
e outro ganha, de forma indireta, uma definição negativa. Também é correto
dizer que ambos condicionam-se reciprocamente, no sentido que se reclamam
continuamente um ao outro. Escreve Bobbio:
"Um dos lugares-comuns do secular debate
sobre a relação entre esfera do público e a do privado é que, aumentando a
esfera do público, diminui a do privado, e aumentando a esfera do privado
diminui a do público, uma constatação que é geralmente acompanhada e complicada
por juízos de valores contrapostos".[7]
Neste sentido, não se deve esquecer a
célebre distinção de Cícero de res
publica, segundo a qual essa é uma "coisa do povo", entendido
aqui não como uma agregação de homens, mas uma sociedade mantida junta, mais do
que por vínculo jurídico, por interesses comuns ou recíprocos. Para a Dicotomia
tradicional entre Público e Privado, convergem outras complementares e
acessórias, estruturadas ao longo da história das Ciências Sociais. Assim
temos, como primeira duplicação, as sociedades de iguais e as sociedades de
desiguais; a Sociedade de detentores do Poder e de destinatários do Poder, ou
seja, agentes do dever de obediência, refletindo a relação de subordinação
entre governantes e governados (essas, portanto, caracterizadas como relações
entre desiguais).
Já a sociedade natural, como descrita pelos
jusnaturalistas, ou a sociedade de mercado, na pretensa idealização dos
economistas clássicos, seriam caracterizadas por relações entre iguais ou de
coordenação. E aqui, cabe ressaltar,
trata-se apenas de trazer para o exame da questão modelos idealizados que sirvam
ao propósito da distinção, sem qualquer juízo de valor.
Tanto que Bobbio salienta que, com o
nascimento da economia política, da qual acaba derivando a diferenciação entre
a esfera das relações econômicas e a esfera das relações políticas, entendida
as relações econômicas como relações substancialmente de desiguais por efeito
da divisão do trabalho, mas formalmente iguais no mercado, a dicotomia
público-privado apresenta-se sob a forma de distinção entre sociedade política
e sociedade econômica. Ou ainda, entre a sociedade do citoyen, que atende ao interesse público, e a sociedade do bourgeois, que cuida dos próprios interesses privados, seja em
concorrência ou em colaboração com outros indivíduos.
"Assim também a distinção jusnaturalista
entre estado de natureza e estado civil se recompõe, através do nascimento da
economia política, na distinção entre sociedade econômica (e enquanto tal não
política) e sociedade política; e posteriormente, entre sociedade civil
(entendida hegelianamente, ou melhor,
marxianamente, como sistemas das
necessidades) e estado político: donde então se deve notar que a linha de
separação entre estado da natureza, esfera econômica, sociedade civil, de um
lado, e estado civil, esfera política, de outro lado, passa sempre entre sociedade
de iguais (ao menos formalmente) e sociedade de desiguais". [8]
Outra distinção conceitualmente relevante
para a Dicotomia entre Público e Privado é a relativa à fonte, no sentido
técnico-jurídico do termo, respectivamente do Direito público e do Direito
privado, ou seja, a Lei estrito senso e o Contrato, "negócio
jurídico". O Direito público, como sabemos, sendo aquele posto pela
autoridade política detentora do Poder e habitualmente reforçado pela coação. O
Direito privado, ou o "direito dos privados", como registra o Bobbio,
como o conjunto de normas que os singulares estabelecem para regular suas
recíprocas relações, em especial as patrimoniais, mediante acordos bilaterais.
A superposição das duas Dicotomias,
privado/público e Contrato/Lei, revela, de acordo com Bobbio, toda a sua força
explicativa da doutrina moderna do direito natural, pela qual o contrato é a
forma típica com que os indivíduos singulares regulam suas relações no estado
de natureza, ou seja, no estado em que ainda não existe poder público, enquanto
a Lei, definida como a expressão mais alta do poder soberano (voluntas superioris), é a forma com a
qual são reguladas as relações dos súditos entre si, e entre o Estado e os
súditos, na sociedade civil, isto é, "naquela sociedade que é mantida
junta por uma autoridade superior". [9]
Para Bobbio, a expressão desta dupla
Dicotomia é convalidada por Kant, para quem o Direito privado ou dos privados é
o direito do estado da natureza, cujos principais institutos são a propriedade
e o contrato entre as partes, enquanto o direito público é o que emana da Lei,
estabelecida pelo Estado, constituído por meio da supressão do estado de
natureza e o qual estabelece o direito positivo no sentido próprio da palavra.
Este direito positivo tem força vinculatória passível de coerção. Vale
dizer, seguindo os passos de Bobbio, que para Hegel, um pensador
pós-naturalista, um instituto de direito privado como o contrato não pode ser
elevado a fundamento legítimo do Estado. O vínculo contratual é revogável pelas
partes, enquanto o vínculo que une Estado e cidadãos é irrevogável. Além disso,
assinala Hegel, o Estado pode pretender dos cidadãos até o sacrifício do bem
maior, que é a vida (no caso de guerra, por exemplo).
A terceira expressão da Dicotomia Público/Privado,
conforme os ensinamentos de Bobbio, revela-se na confrontação entre Justiça
comutativa e justiça distributiva. Haveria duas formas clássicas de Justiça,
segundo o pensador italiano. A Justiça comutativa é aquela que preside as
trocas, e para que uma troca seja justa as coisas trocadas devem ser de igual
valor. A Justiça distributiva é aquela que se inspira a autoridade pública na
distribuição de obrigações ou benefícios.
Neste caso, a pretensão do Poder Público é
que a cada um seja dado o que lhe cabe com base em critérios que podem mudar
segundo a diversidade das situações e dos pontos de vista. Exemplos: "a
cada um segundo o seu mérito", "a cada um segundo a sua
necessidade", ou "a cada um segundo o seu esforço e trabalho",
podendo-se identificar, em cada um desses critérios uma inspiração ou um
fundamento de caráter ideológico. Em resumo, a Justiça comutativa é definida
como a que tem lugar entre as partes; a distributiva, como a que tem lugar
entre o todo e as partes.
Além dos significados descritivos, há um
aspecto axiológico na grande Dicotomia Público/Privado. Seus dois termos ganham
um peso valorativo, no sentido de que, no emprego, são contraditórios, um ente
não podendo ser simultaneamente público e privado, e muito menos nem público
nem privado. Isso significa, conforme nos alerta Bobbio, que estaremos sempre
nos deparando com o primado do privado sobre o público ou com o primado do
público sobre o privado, e essas variações dar-se-ão por razões históricas,
sociológicas, econômicas e até culturais que estão na base da formação das
sociedades.
Hegel alertava para o risco de degeneração
do Estado com um novo feudalismo, que ocorreria quando o direito privado
tomasse a dianteira do direito público. Adverte Bobbio, no fim do primeiro
capítulo de Estado, Governo, Sociedade,
que os processos de integração da Dicotomia,
se assim podemos dizer, ou seja de "publicização" do privado e de privatização do público, não são
incompatíveis, e complementam-se um ao outro.
"O Estado pode ser corretamente
representado como o lugar onde se desenvolvam e se compõem, para novamente
decompor-se e recompor-se, estes conflitos, através do instrumento jurídico de
um acordo continuamente renovado, representação moderna da tradicional figura
do Contrato Social".[10]
Nesta passagem, sobre a dinâmica dos
conflitos entre Direito Público e Privado, parece emergir a crença de Bobbio no
permanente aperfeiçoamento do sistema. Em outras palavras, divergindo de uma
visão marxista, que preconiza o fim do sistema para a inauguração de uma nova
realidade, Bobbio deixa transparecer a
sua convicção na evolução do próprio sistema para o melhor, tendo como instrumento
o Direito democraticamente estabelecido.
O segundo Capítulo de Governo, Estado, Sociedade passa a discorrer sobre a Sociedade
Civil, esclarecendo que na linguagem política contemporânea, sociedade civil é
expressão geralmente empregada como um dos termos da grande dicotomia Sociedade
Civil/Estado. Negativamente, por sociedade civil entender-se-ia a esfera das
relações sociais não reguladas pelo Estado, enquanto este seria o conjunto dos
aparatos instituídos por um sistema organizado com poder coercitivo. Mas as
definições não estão livres de controvérsia.
Para o mundo constituído a partir da visão
burguesa pós-Revolução Francesa, o Estado tem uma noção restritiva: a
afirmação dos direitos naturais que
pertencem ao indivíduo e aos grupos sociais independentemente do Estado e que
como tais limitam e restringem a esfera do poder político, aliada à descoberta
de uma esfera de relações
inter-individuais, como são as relações econômicas, para cuja regulação não se
faz necessária a existência de um poder coativo, posto que elas se
auto-regulariam. Sintetizaria esta percepção, segundo Bobbio, a célebre frase
de Thomas Paine[11]
de que "a sociedade é criada por nossas necessidades e o Estado por nossa
maldade".
Por este entendimento, todo o homem é naturalmente
bom e toda sociedade, para conservar-se e prosperar, precisa limitar o emprego
das Leis civis impostas com a coação, a fim de permitir a máxima explicitação
das leis naturais que não carecem de leis positivas para ser aplicadas.
Conforme ensina Bobbio, esta visão extrema propugna a dilatação do direito
privado para que os indivíduos venham a regular suas relações recíprocas
guiados por seus reais interesses.
O termo sociedade civil nasce da
contraposição entre uma esfera política e uma
esfera não política. Então seria tudo aquilo que sobra uma vez que já
foi delimitado o âmbito no qual se exerce o poder estatal, ou seja, o conjunto
de relações não diretamente reguladas pelo Estado. Mas as acepções para o termo
são variáveis. Pode-se dizer que a sociedade civil seria a infra-estrutura e o
Estado, a superestrutura. Se há várias formas de associações que os indivíduos
formam entre si para satisfazer os seus interesses, o Estado se superpõe para
regulá-las, mas cumpre também esta função em nome (ao menos em tese) da coletividade, do interesse
comum desses indivíduos.
Numa conotação axiologicamente positiva,
sociedade civil passa a indicar o lugar onde se manifestam todas as instâncias
de modificação das relações de dominação, forma-se os grupos que lutam pela
emancipação do poder político, adquirem força os chamados contra-poderes. A
esta acepção pode-se também atribuir uma conotação negativa, de germe da
degradação social. Numa terceira acepção bastante utilizada, "sociedade
civil" tem ao mesmo tempo um significado cronológico e axiológico,
representando o ideal de uma sociedade sem Estado, destinada a surgir da
dissolução do Poder Político. Esta visão está presente no pensamento de
Gramsci, conforme ressalta Bobbio, sobretudo nas passagens em que o ideal
característico de todo o pensamento marxista sobre extinção do Estado é
descrito como "reabsorção da sociedade política pela sociedade
civil".[12]
Nessas três acepções elencadas pelo pensador italiano o não-estatal assume três
diversas figuras, a saber, a de pré-condição de Estado, ou seja daquilo que
ainda não é estatal; a da antítese do Estado, ou melhor, daquilo que se coloca
como alternativa ao Estado; e, por fim, a da dissolução e do fim do Estado.
Sociedade civil seria aquilo que
circunscreveria o âmbito do Estado. Pode-se dizer que é o lugar onde surgem e
se desenvolvem os conflitos econômicos, sociais, ideológicos, religiosos que as instituições
estatais têm o dever de resolver, seja por mediação ou repressão. Neste
sentido, os partidos teriam um pé na sociedade civil e um pé nas instituições
governamentais, pertencentes ao Estado. Nas recentes teorias sistêmicas, a
sociedade civil ocupa o espaço reservado à formação das demandas (input) que se dirigem ao sistema
político e às quais o sistema político tem o dever de responder (output). O confronto entre sociedade
civil e Estado dá-se então pelo contraste entre quantidade e qualidade das
demandas e capacidade das instituições governamentais de dar respostas
adequadas e tempestivas.
Cabe lembrar que a sociedade civil
representa o lugar onde se formam,
especialmente nos períodos de crise institucional, os poderes de fato que
tendem a obter uma legitimação própria. Daí, explica Bobbio, emerge "a
frequente afirmação de que a solução de uma grave crise que ameaça a
sobrevivência de um sistema político deve ser procurada, antes de tudo, na
sociedade civil, na qual podem ser encontradas as novas fontes de legitimação
e, portanto, novas áreas de consenso". [13]
Conforme fica claro, na esfera da sociedade civil inclui-se também o fenômeno
da opinião pública. O Estado totalitário
é aquele em que a sociedade civil perdeu a sua expressão e foi inteiramente
absorvida pelo organismo estatal. Não tem, portanto, opinião pública, que é o
que lhe garante formalmente distanciamento crítico do Estado.
Bobbio ressalta que o uso atual da expressão
"sociedade civil" como um termo indissoluvelmente ligado a Estado, ou
ao sistema político, é de derivação marxiana. A partir desta visão, a anatomia da sociedade
civil deve ser buscada na economia política, o que significa que, para Marx, a
sociedade civil é o lugar das relações econômicas, ou, mais precisamente, o
lugar onde se constituem "a base real sobre a qual se eleva uma
superestrutura política e jurídica".[14] O
que significa dizer que as instituições políticas e jurídicas têm suas raízes
nas relações materiais (comerciais) de existência. O jusnaturalismo coloca a
sociedade fora do Estado, é tudo o que não é o Estado. Mas, como alerta Bobbio,
a sociedade civil de Marx - ou melhor, a sociedade por ele examinada e
diagnosticada - é a sociedade burguesa - a
bürgerlische Gesellschaft -, que, paradoxalmente, tem em comum com a
sociedade da tradição jusnaturalista o homem egoísta como sujeito.
Enquanto para Marx o momento da sociedade
civil coincide com a base material, para Gramsci o momento da sociedade civil
é superestrutural. Trata-se da esfera na
qual agem os aparatos ideológicos que buscam exercer a hegemonia e, através da
hegemonia, obter o consenso. Bobbio esclarece que, no pensamento
jusnaturalista, para o qual a legitimidade do poder político depende de estar
ele fundado sobre o contato social, a sociedade do consenso por excelência
é o Estado, enquanto no pensamento
gramsciano a sociedade do consenso é apenas aquela destinada a surgir da
extinção do Estado.
Já a interpretação hegeliana da sociedade
civil como o lugar cuja anatomia deve ser buscada na economia política é
parcial. A sociedade civil de Hegel representa o primeiro momento de formação
do Estado - o Estado jurídico-administrativo, cuja tarefa é regular relações
externas. A essência do Estado não se exaure, portanto, na sociedade civil. O
que caracteriza o Estado com respeito à sociedade civil são as relações que
apenas o Estado, e não a sociedade civil, estabelece com os outros Estados.
Afirma Bobbio que o Estado propriamente dito representa o momento
ético-político, cuja tarefa é realizar a adesão íntima do cidadão à totalidade
de que parte, tanto que poderia ser chamado de Estado interno ou interior.
Explica ainda o professor de Turim que o
Estado civil hegeliano é, assim, uma forma inferior de Estado, correspondendo
ao significado tradicional de societas
civilis, e no qual civilis (ou civitas) figura como sinônimo de pólis. O emprego da palavra pólis
como origem e precedente histórico de Estado remonta a Aristóteles em A Política. No modelo aristotélico, o
Estado é o prosseguimento natural da sociedade familiar, da sociedade
doméstica. É sempre portanto uma sociedade natural, que corresponde
perfeitamente à natureza social do homem (politikon
zoon). O termo societas civilis também
vai ser empregado por Hobbes, mas com sentido diverso, que seria a antítese do Estado de natureza, ou seja, uma sociedade
instituída artificialmente mediante acordos de indivíduos que abrem mão de
direitos em nome da segurança. Assim, se em Hegel o Estado é um desdobramento
da natureza, um fato natural, em Hobbes ele surge justamente como anteparo aos
conflitos naturais.
Ao longo da modernidade, acabou por
prevalecer, no uso da expressão "sociedade civil", o significado de
"sociedade artificial", e também de sociedade política e Estado. No
debate atual, a contraposição entre sociedade civil e Estado permanece. Explica
Bobbio:
"A ideia de que a sociedade civil é o
anteato do Estado entrou de tal maneira na prática cotidiana que é preciso
fazer um grande esforço para se convencer de que, durante séculos, a mesma
expressão foi usada para descrever aquele conjunto de instituições e de normas
que hoje constituem exatamente o que se chama de Estado, e que ninguém poderia
mais chamar de sociedade civil sem correr o risco de um completo mal entendido.
" [15]
Prossegue dizendo que poderia ser correto
que o Estado continuasse a ser definido como uma forma de sociedade enquanto
durou a controvérsia entre Poder Político e Igreja (em especial até a Idade
Média) sobre a delimitação dos seus respectivos limites - uma controvérsia que
foi representada, em grande parte da história, como um conflito entre duas
sociedades. Bobbio salienta, contudo, que a partir de Maquiavel o Estado não
pode mais de forma alguma ser assemelhado a uma forma de sociedade. Quando
Maquiavel fala de Estado, pretende falar do máximo poder que se exerce sobre os
habitantes de um determinando território e do aparato de que alguns indivíduos
do grupo se valem para adquiri-lo e conservá-lo. Um Estado-máquina, segundo
Bobbio, e não um Estado-sociedade.
Após o autor de O Príncipe, portanto, passa a ser incoerente empregar o termo societas civilis para designar ou
definir Estado. Nas palavras de Bobbio, seria "incrongruente e
desviante". O autor de Estado,
Governo, Sociedade esclarece que a partir do Século XIX, mas marcadamente
no Século XX, do processo de emancipação da sociedade do Estado seguiu-se um
processo inverso de reapropriação da sociedade por parte do Estado, que
transformado em Estado de Direito ensejou por sua vez o Estado social. E este,
por ser social, por vezes mal se distingue da sociedade subjacente que ele
acaba invadindo por inteiro através da intervenção e da regulação das relações
econômicas. Houve também um processo inverso, e a expressão Estado social,
hoje, pode ser entendida não apenas no sentido do Estado que permeou a
sociedade como também no sentido de Estado permeado pela sociedade, pela maior
participação de indivíduos e organizações nas ações, políticas e decisões que
emanam da esfera governamental.
Aparentemente, esses dois processos,
contraditórios, poderiam conduzir, depois de um certo tempo, de um lado a um
Estado totalitário, em que a sociedade estaria eliminada, e de outro, no
extremo oposto, a novamente uma sociedade sem Estado. Contudo, esses dois
processos estariam muito distantes de uma conclusão - e provavelmente jamais tenham um desfecho -,
conforme ensina Bobbio, que sintetiza ao final do segundo capítulo Estado, Governo, Sociedade:
"Sociedade e Estado atuam como dois
momentos necessários, separados, mas contíguos, distintos mas interdependentes,
do sistema social em sua complexidade em
sua articulação interna". [16]
Na sequência de Estado, Governo, Sociedade, no Capítulo Terceiro, o nosso pensador
parte para o exame específico da relação entre poder, governo e Estado, não
necessariamente nesta ordem. Reafirma que as duas fontes principais e
irrecorríveis para o estudo do Estado são as histórias das instituições
políticas e a história das doutrinas políticas. A história das instituições
pode ser extraída da história das doutrinas, mas ambas não devem ser
confundidas. Numa perspectiva histórica, indica que Hobbes foi identificado com
o Estado absoluto, Locke com a monarquia parlamentar, Montesquieu com o Estado
limitado, Rousseau com a democracia, Hegel com a monarquia constitucional e
assim por diante,
Esclarece que a primeira fonte para o estudo
das doutrinas é fornecida pelos historiadores. Por exemplo, para estruturar sua
teoria de Poder, Maquiavel reconstrói a história e o ordenamento das
instituições da república romana comentando Lívio. Ao estudo da história,
adverte Bobbio, deve seguir o estudo das Leis que regulam as relações entre
governantes e governados, o conjunto das normas que constituem o direito
público. Porém, mais do que em seu
desenvolvimento histórico, o Estado deve ser estudado em si mesmo, em suas
estruturas, funções, elementos constitutivos, mecanismos, órgãos etc,
"como um sistema complexo considerado em si mesmo e nas relações com os
demais sistemas". Hoje, o campo de observação está dividido, segundo ele,
entre duas disciplinas distintas: a Filosofia Política e a Ciência Política.
Didaticamente, Bobbio atribui à Filosofia
Política três tipos de investigação: a) da melhor forma de governo; b) do
fundamento do Estado; c) da essência da categoria de político, considerando o
aspecto ético. Essas três vertentes de investigação podem ser exemplificadas,
segundo Bobbio, por três obras marcantes do pensamento político da modernidade:
a Utopia, de Thomas More (1516), que desenha a República ideal; o Leviatã
(1651), de Hobbes, que pretende dar uma justificação racional e universal para
o Estado e a razão para que os comandos sejam obedecidos; e O Príncipe (1513),
de Maquiavel, em que é demonstrado no que consiste a propriedade da atividade
política e o que a distingue da moral.
Por sua vez, no que tange a Ciência
Política, a investigação nos dias de
hoje considera um campo capaz de satisfazer três condições: o princípio da verificação ou da falsificação como
critério da aceitabilidade dos seus resultados; b) o uso de técnicas de razão
que permitam dar uma explicação causal em sentido forte ou mesmo em sentido
fraco do fenômeno investigado; c) a abstenção ou abstinência (e aqui eu me
permito dizer que é o mais difícil a ser feito, algo que raramente os analistas
políticos conseguem) dos juízos de valor - ou "avaloratividade".
Mas, além dos dois campos convencionalmente denominados,
da Filosofia e da Ciência Política, o tema Estado pode ser abordado de
diferentes pontos de vista, como o sociológico e o estritamente jurídico, como
preconiza Weber. Aqui Bobbio alerta que é importante fazer uma distinção: a doutrina social do Estado, da
qual se ocupa a sociologia, tem por conteúdo a existência objetiva, histórica
ou natural do Estado, enquanto a doutrina jurídica se ocupa das "normas
jurídicas que naquela existência real devem se manifestar". Já para
Kelsen, conforme referido de início, o Estado será resolvido totalmente no Ordenamento Jurídico, dispensando uma
análise sociológica.
Neste sentido, o Direito é visto como o
regulador da atividade do Estado dedicada à produção de normas. Contudo, esta
percepção teria sido de certa forma suplantada pelo Estado social. Como já percebemos, a sociologia jurídica tem como
objeto o Estado como forma complexa de organização social, do qual o Direito é
apenas um dos muitos elementos constitutivos.[17]
Grosso modo, desde o século passado, as teorias sociológicas do Estado
dividem-se, conforme os ensinamentos de Bobbio, em uma visão funcionalista,
dominante na Political Scince
americana e com forte influência na Europa ocidental, e uma visão marxista.
Esta segundo distingue em cada sociedade dois momentos históricos, que seriam a
base econômica e a superestrutura, sendo que as instituições políticas, ou
seja, o Estado propriamente dito, pertenceriam à Superestrutura, cujo o momento
subjacente, as relações econômicas,
estaria determinados pela forma de produção, se capitalista o
centralizada.
Na concepção funcionalista, não existem
diversidades de planos, e a função política, exercida pelo conjunto das
instituições do Estado, é uma das funções fundamentais do próprio sistema
social. Aqui o subsistema preeminente não é o econômico, como na abordagem
marxiana, mas o cultural, pois a máxima força coesiva de todo o grupo social
dependeria da adesão aos valores e às normas pré-estabelecidas, o que deixa
claro o caráter hobbesiano da Teoria Funcionalista. A Teoria Marxiana, enfatiza
Bobbio, é dominada pelo tema da ruptura
da ordem estabelecida, onde a passagem de uma ordem à outra dá-se através da
exploração das contradições inerentes ao sistema.
"Pode-se acrescentar que a concepção
funcionalista é sob certos aspectos análoga àquela contra qual Marx travou uma
de suas batalhas teóricas mais célebres, a concepção da economia clássica
segundo a qual a sociedade civil, não obstante os conflitos que a agitam,
obedece a uma espécie de ordem preestabelecida e goza da vantagem de um
mecanismo - o mercado - destinado a manter o equilíbrio através de um contínuo
ajustamento dos interesses concorrentes", afirma Bobbio.[18]
Portanto, resume o pensador, enquanto a
primeira (a Teoria Funcionalista) ocupa-se do problema da coesão e da
conservação, a segunda (visão Marxiana) preocupa-se estritamente com o problema
da mudança social. Os marxistas - e é Bobbio quem o diz, de forma taxativa -
preconizam "a grande mudança", aquela que coloca o sistema em crise
para estabelecer uma nova ordem.
Porém, na segunda metade do século XX, o
ponto de vista que passou a prevalecer o enfrentamento desta questão teórica da
sociedade foi o sistêmico, decorrente da Teoria dos Sistemas, cujos principais
representantes, lembra Bobbio, são David Eaton e Gabriel Amond. Assim, a função das instituições políticas é
a de dar respostas às demandas provenientes do ambiente social ou, segundo
uma terminologia corrente, de converter
as demandas em respostas. Esta
representação sistêmica, assinala Bobbio, é compatível com ambas as teorias
gerais da sociedade, na medida em que propõe um esquema conceitual para
analisar como as instituições políticas funcionam, como exercem a função que
lhes cabe, seja qual for a interpretação que delas se faça.
Com a emancipação da sociedade industrial
inverteu-se a relação entre instituições políticas e sociedade. Hoje, a
sociologia política é uma das ciências sociais.
O Estado, como sistema político, aparece, em relação ao sistema social,
como um subsistema. Mas quando exatamente nasceu o Estado? A tese recorrente
que percorre toda a história do pensamento político afirma que o Estado,
entendido como ordenamento político de uma determinada comunidade, nasce da
dissolução da comunidade primitiva formada pelos laços de parentesco e da
formação de comunidades mais amplas derivadas da união de vários grupos
familiares, geralmente por razões de sobrevivência.
Se para os pensadores contemporâneos o
Estado nasce com o início da Era Moderna (o advento do Contrato Social), a
concepção mais antiga, referida acima, indica o seu nascimento pela passagem da
idade primitiva, selvagem e bárbara, à idade civil - entendendo-se como civil o
cidadão civilizado. Teoricamente, portanto, é possível haver sociedades sem
Estado, ao menos do ponto de vista antropológico. Seriam aquelas desprovidas de
uma organização política.
Independentemente da existência do Estado,
formas de poder - e, portanto, de poder
político - estão presentes ao longo da trajetória da humanidade. De Aristóteles
vem a tipologia clássica, que distingue três tipos: o poder do pai sobre os
filhos, do senhor sobre os escravos, do governante sobre os governados. A
partir de Hobbes, o poder político assume uma conotação que permanece estável
até os nossos dias, e tem no uso
exclusivo da força por parte do Estado como a sua principal característica. Na
verdade, devemos dizer que a força empregada sobre determinado território de
forma soberano é a expressão própria do Estado moderno até os dias de hoje. Nas
suas lições, Bobbio lembra das três formas de poder que marcaram a constituição
do Estado na história e que seriam o econômico, o ideológico e o político. O
Estado moderno ocidental é o do primado do poder político.
Consoante a Filosofia Política clássica,
salienta Bobbio que um poder fundado apenas na força não tem legitimidade. O
que significa que as forças políticas sempre buscarão em maior ou menor grau
uma base moral para o exercício do poder. Contudo, com o advento do positivismo
jurídico, Bobbio ressalta que o tema da legitimidade foi completamente
subvertido. Enquanto em todas as teorias precedentes o poder deve estar
sustentado por uma justificação ética para ser perene, e portanto a
legitimidade é necessária para a sua efetividade, com as teorias positivistas
"abre-se o caminho para a tese de que apenas o poder efetivo é
legítimo" .[19]
Lembre-se que, para Kelsen, "uma autoridade de fato constituída é o governo legítimo, o
ordenamento coercitivo imposto por esse governo é um ordenamento jurídico, e a
comunidade constituída por tal ordenamento é um estado no sentido do direito
internacional ".
Mas Bobbio adverte, em contraponto, que um
ordenamento jurídico legítimo na medida em que eficaz e como tal reconhecido
pelo ordenamento internacional pode e deve ser submetido a um juízos
axiológicos, juízos esses que sejam capazes até de pôr fim à eficácia de um
ordenamento moralmente ilegítimo. Percebemos aqui que Bobbio procura
compatibilizar a legitimidade da regra efetiva do ordenamento positivo não
apenas com critérios axiológicos das quais poderia derivar a legitimidade.
Recorre a Weber, neste sentido, para lembrar
que há três tipos puros de poder, que seriam o Tradicional, que tem base na
natureza ou na religião e cuja característica marcante é a sacralidade; o
Racional/Legal, que advém de uma Constituição, caracterizado pelo comportamento
em conformidade com a Lei; e o Carismático, que tem como traço o populismo e
que dependerá, sempre, dos dotes do chefe. Esses foram ao longo da história os
fundamentos reais do poder, não os formais, presumidos ou declarados.
Para sintetizar o que foi dito até aqui,
podemos dizer que o Estado é um ordenamento (jurídico) por excelência destinado
a exercer o poder soberano sobre um dado território, no qual estão subordinados
os sujeitos a eles pertencentes, tomando o cuidado, como ensina Bobbio, de não
ceder ao reducionismo de Kelsen. Como não existe Estado sem Poder governante,
deve-se perguntar, como Platão[20] o
fizera, o que seria melhor, o governo das Leis ou o governo dos homens? Ora,
responde o próprio Platão, "onde a Lei é súdita dos governantes e privada
de autoridade, vejo pronta a ruína da cidade (do Estado); e onde, ao contrário,
a Lei é senhora dos governantes e os governantes seus escravos, vejo a salvação
da cidade e a acumulação nela de todos os bens que os Deuses costumam dar às
cidades".
Aristóteles retoma o problema, como lembra
Bobbio, quando inicia o discurso sobre as diversas constituições monárquicas:
"é mais conveniente ser governando pelo melhor dos homens ou pelas
melhores leis?" , indaga de forma retórica. Bobbio realça a resposta do
filósofo de Estagira: "A Lei não tem paixões, que ao contrário
encontram-se necessariamente em toda a alma humana". A questão é que, no início de todo bom ordenamento, além do fundamento na tradição, das Leis
naturais, deve existir um homem sábio, "um legislador
extraordinário", como se referiu Rousseau. E aqui nos deparamos mais uma
vez com a questão da legitimidade.
Afirma Bobbio, recorrendo a Bodin:
"O
problema das Leis fundamentais e da sua força vinculatória é um tema que
aparece em todos os tratados dos juristas que se preocupam em fixar, com normas
claras e precisas, os limites do poder do rei: são as normas daquela
constituição não escrita que regula as relações entre governantes e governados.
O rei (ou governante) que viola as leis naturais e divinas torna-se um tirano;
o rei que viola as normas fundamentais é um usurpador". [21]
No quarto e último capítulo de Estado, Governo, Sociedade, intitulado
Democracia e Ditadura, Bobbio trata das teorias das formas de governo, de
Platão e Aristóteles a Políbio. Discorre sobre as democracias formais e as
democracias substanciais, e faz um detido exame sobre as diferentes formas de
ditadura, desde os antigos até os nossos dias, mostrando a distinção entre
ditadura e tirania, entre ditadura soberana ou comissária e a ditadura dos
tempos modernos. A matéria é detalhada em A
Teoria das Formas de Governo, que ora passamos a examinar.
O
Exame de Bobbio sobre as Formas clássicas de Governo
Em A
Teoria das Formas de Governo, Bobbio faz um mergulho profundo e analítico
nas formas de estruturação de governo em suas diferentes variantes, recorrendo
às conceituações clássicas elaboradas primeiramente por Platão e Aristóteles,
depois por Políbio e Maquiavel, passando
por Montesquieu e Hegel até chegar a
Marx. Discorre ainda, por extensão, e sempre analiticamente, sobre ditadura e
suas diferentes acepções, sobre despotismo e sobre democracia (a formal e a substancial,
uma diferenciação cada vez mais relevante no mundo de hoje). A obra constitui
assim um notável curso de teoria das formas de governo. Com efeito,é exatamente
do que se trata: a compilação de uma série de aulas de Filosofia Política
ministradas pelo autor na Faculdade de Ciências Políticas de Turim nos anos de
1975 e 1976.
Dividido em capítulos correspondentes aos
pensadores que representam marcos na evolução do pensamento político ocidental, o livro é ao "mesmo tempo uma
investigação histórica e conceitual da teoria das formas de governo" na
trajetória do pensamento político, como
oportunamente esclarece a apresentação de seu editor (UnB) na 10a Edição.[22] "Se há uma razão que justifique um
curso de filosofia política, distinto dos cursos sobre história das doutrinas
políticas e da ciência política, é a necessidade de estudar e analisar os
chamados "temas recorrentes", quer dizer, os temas que têm sido
propostos e discutidos pela maioria dos escritores políticos...", adianta
Bobbio, em nota de Abertura de A Teoria
das Formas de Governo.[23]
Didático na justificativa, passa, de imediato, ao exame da temática.
Jurista positivista mas, antes de tudo,
filósofo do Direito, Hans Kelsen afirma, na sua investigação para uma Teoria do
Estado que: "Democráticas são as formas de governo em que as leis são
feitas sobre os quais elas se aplicam. Ou seja, onde o povo faz as leis que o
governam". [24]
Partindo desta premissa positivista, Bobbio
vai questionar em A Teoria das
Formas de Governo (assim como o faz também em Estado, Governo, Sociedade)
se um Estado democrático pode sobreviver numa sociedade que não é democrática.
Este questionamento, ao meu ver, perpassa toda a análise e descrição que
elabora em seu curso sobre Teoria das Formas de Governo. Portanto, o Poder é o
que realmente importa, segundo Bobbio, em qualquer diagnóstico político. Aliás,
mais precisamente, o maneira como este poder se estrutura e se justifica. É
isso é que vai determinar, em última instância, o caráter de um governo, muito
mais do que qualquer aspecto formal, por mais relevante que este possa vir a
ser. Para um filósofo e jurista que está classificado como um positivista - ou
um normativista -, este ponto de vista tem ainda maior relevância.
Se para Marx o despotismo se encarna no Estado,
para Bobbio esta visão é insuficiente para a elaboração de uma precisa doutrina
acerca do Estado (uma doutrina socialista, que seja), posto que se preocupa
mais com a tradição histórica do que com a organização do Poder político - ou
de que forma o poder político se organiza. Portanto, o problema da democracia
no mundo moderno não é apenas em quem se vota, mas onde se vota e se delibera
coletivamente, visando o controle democrático do Poder Econômico. Bobbio não
ignora as dificuldades da democracia, mas prefere insistir em seus méritos, e o
freio ao poder econômico revela a sua preocupação social, ou seja, atinente a uma democracia distributiva.
O estudo das formas de governo - e, por
extensão, das formas possíveis de democracia -, com abordagem ao mesmo tempo
histórica, descritiva e analítica, como dito acima, nos permite pisar com segurança no terreno da
política, distinguido o que está apenas na forma (e na superficialidade)
daquilo que se encontra na substância. O pensador político não deve se iludir
com as formas de governo. Estabelecido
contato com a aparência, deve prospectar o seu conteúdo, identificando a sua
origem.
Portanto, a tipologia das formas de governo
pode ser empregada de forma axiológica ou meramente sistemática, ensina Bobbio
em A Teoria das Formas de Governo.
Diante da variedade das formas de governo, existem três posições possíveis: 1.
Todas são boas; 2. Todas são más; 3.Algumas são boas e algumas são más. Todas
as formas de governo seriam apropriadas à situação histórica concreta que a
produziu. Platão assume a segunda posição: a rigor, todas as formas são más,
pois representariam a corrupção da única forma boa. A visão aristotélica
privilegia a descrição, o que faz com que possamos alinhá-lo na terceira
posição, ou seja, algumas formas são boas, outras, más. Vejamos essas variações de conceitos mais
detalhadamente a partir do estudo da obra em tela.
A rigor, nenhuma teoria pode ter apenas uma
função descritiva, como reconhece o próprio Bobbio, embora seja possível fazer,
para uma abordagem didática da matéria, uma clara divisão entre os dois
aspectos: o Descritivo e o Prescritivo. Qualquer teoria apontará, em maior ou
menor grau, quais seriam as melhores e quais seriam as piores formas de
governo. As primeiras grandes classificações das formas de governo, como as de
Heródoto, Platão e Aristóteles, são extraídas da observação histórica,
considerando os vários tipos de constituição política.
Mas não há tipologia que se esgote
exclusivamente na função meramente descritiva. Bobbio alerta em seu curso que
uma tipologia pode igualmente ser empregada de modo sistemático e axiológico, o
primeiro servindo para ordenar os dados colhidos na investigação, o segundo
para definir uma ordem de preferência entre os tipos de classe dispostos sistematicamente.
Esta distinção é relevante, haja vista que o pensador - e mais precisamente o
cientista social - apresenta, no desenvolvimento de sua atividade, e ainda que
de forma subjacente, projetos de revisão da sociedade.
Na definição clássica que é o ponto de
partida de todas as outras, e que, conforme Bobbio, remonta a Heródoto em sua História, temos o governo de muitos, o
governo de poucos e o governo de um só,
o que poderia corresponder, embora as expressões ainda não fossem
empregadas então, à democracia, à aristocracia e à monarquia. Contudo, essas
três formas teoricamente boas, ou seja, governos de muitos, de poucos e de um
só, já em Heródoto encontram correspondentes más - as formas degeneradas.
Assim, monarquia, aristocracia e
democracia podem transformar-se em, respectivamente, tirania, oligarquia e
demagogia.
Para se chegar à classificação sêxtupla, com
três formas más que correspondem à deturpação das três formas boas é preciso
fazer o cruzamento de dois critérios, o
primeiro dos quais reponde à pergunta "quem governa" e o segundo,
"como se governa". No esquema aristotélico, de caráter mais
descritivo, a monarquia, a aristocracia e a democracia podem ser boas ou más.
No esquema de Políbio, observador e historiador da República romana e não
apenas das cidades-estado gregas, o modelo se apresenta, resumidamente, da
seguinte forma: se um (quem?) governa (como?)
bem, é uma monarquia; se um governa mal, é uma tirania, a mesma tábua de
aferição podendo ser empregada para o governo de poucos (aristocracia versus a
sua forma degenerada oligarquia) e para o governo de muitos (democracia X
oclocracia).
Em A
República, Platão (428-347 a.C)
busca descrever a república ideal que tem como objetivo a realização de
justiça, o que, adverte Bobbio
"significa atribuir a cada o que lhe cabe de acordo com as suas
aptidões".[25]
A visão platônica, porém, é desencorajadora, no sentido de que as três formas
clássicas de governo só ocorrem na variante má porque nenhuma delas estaria
ajustada ao que ele considera uma constituição política ideal, conforme
esclarece Bobbio no segundo capítulo de A
Teoria das Formas de Governo.
"Na verdade, Platão - como todos os
grandes conservadores, que sempre vêem o passado com benevolência e o futuro
com espanto - tem uma acepção pessimista da história (uma concepção
"terrorista", como diria Kant). Vê a história não como progresso
indefinido mas, ao contrário, como regresso definido; não como uma passagem do
bem para o mal, mas como o regresso do mal
para o pior. Tendo vivido na decadência da gloriosa democracia
ateniense, examina, analise e denuncia a degradação da polis: não o seu
esplendor. É também - como todos os grandes conservadores - um historiador (e
um moralista) da decadência das nações, mais do que de sua grandeza. Diante da
degradação contínua da história, a solução só pode [na visão platônica,
identificada por Bobbio neste trecho] estar fora da história".[26]
Assim, as constituições corrompidas que
Platão examina detalhadamente no Livro VIII de A República são, em ordem decrescente, originariamente quatro:
timocracia, oligarquia, democracia e tirania. A timocracia (de timé, honra) é uma forma introduzida por
Platão em sua classificação para designar a transição entre a constituição
ideal e as três formas ruins tradicionais. No seu foco está os vícios e as
virtudes dos governantes, e portanto a teoria platônica concebe a sociedade
como um organismo à imagem do homem. A corrupção no Estado ocorre estritamente
devido à discórdia entre os indivíduos, a discórdia, sendo, por sua vez, uma
decorrência dos vícios. Da discórdia nascem os males da fragmentação das
nações. O tema central para Platão é, assim, segundo Bobbio, a
"unidade", e não a questão da liberdade do homem frente ao Estado.
Admirador de Esparta e seu espírito
guerreiro, Platão idealiza a sua
república como uma constituição de homens que primam pelas honrarias. O desejo
que prevaleceria dos indivíduos integrantes de uma timocracia seria exatamente
o de honraria (caráter espartano e guerreiro, portanto), enquanto na
oligarquia, o que se sobrepõe é a fome de riquezas; na democracia, um desejo
"imoderado" de liberdade (licenciosidade); e, na tirania, a violência
como recurso à obtenção e à manutenção do poder. Na concepção platônica de
República ideal, esmiuçada no exame de Bobbio, três tipos de alma humana
deverão se conjugar, a racional, a passional e apetitiva, cada uma em sua
atividade especifica correspondente de filósofo-governante, o guerreiro e o
homem produtor. A conjugação dessas característica poderá gerar a necessária
unidade de que a República carece para
prosperar. São seis as formas estabelecidas por Platão,como decorrência das
originais: timocracia (que seria a transição entre as diferentes formas), oligarquia,
democracia (vista, neste caso, com desconfiança por Platão, devido à possibilidade de demagogia),
tirania, monarquia e aristocracia, sendo as últimas duas, para o filósofo conservador, as ideais.
Esclarece, contudo, Bobbio que, se
colocarmos em ordem decrescente as três formas boas e más, a partir do
desdobramento da confrontação feita pelo próprio Platão em A República, quais sejam monarquia, aristocracia e democracia, com
as variantes tirania, oligarquia e demagogia (ou oclocracia, segundo a terminologia
posterior de Políbio), veremos que democracia seria a pior das formas boas (pelos critérios clássicos platônicos) e
a melhor das formas más. Bobbio salienta que, em qualquer hipótese, as formas
boas são aquelas em que o governo "não se baseia na violência, e sim no
consentimento dos cidadãos; onde ele atua de acordo com leis
estabelecidas" .[27]
Winston Churchill não foi, portanto, original nem inovou quando declarou, em
meados do século XX, que democracia era "a pior forma de governo, com exceção de todas as
demais". Ou seja, dentro das circunstâncias possíveis, é a democracia, a
despeito de suas falhas, que permite o governo do consentimento. Bobbio
estabelece, em acréscimo, uma ordem de aceitabilidade: monarquia, aristocracia,
democracia positiva, democracia negativa (demagogia), oligarquia, tirania.
A distinção entre os conceitos de tirania e
ditadura tem importância acadêmica, e é feita com precisão em A Teoria das Formas de Governo, (bem como em Estado, Governo, Sociedade, no Capítulo IV). Ditadura na concepção moderna e, sobretudo, contemporânea é
aquele regime em que o governo domina as três esferas de poder (Executivo,
Legislativo e Judiciário). Bobbio explica que à medida em que a democracia foi sendo considerada como a
melhor forma de governo (ou a menos pior, dentro das circunstâncias), mais
apropriada do ponto de vista econômico às sociedades "mais
evoluídas", a teoria das formas de governo simplificou a tipologia
tradicional e polarizou-a em torno da dicotomia democracia-autocracia. E
explica:
"Hoje está de tal maneira generalizado o
costume de chamar de 'ditaduras' todos
os governos que não são democratas, e que geralmente surgiram derrubando
democracias precedentes, que o termo tecnicamente mais correto ' autocracia'
acabou por ser relegado nos manuais de direito público, e a grande dicotomia
hoje dominante não é a que se funda sobre a contraposição entre democracia e
autocracia, mas a que contrapõe (embora com um uso distorcido do primeiro
termo) a ditadura à democracia". [28]
Bobbio esclarece que o termo ditadura
aplicado a todos os regimes que não são democráticos difundiu-se sobretudo após
a primeira guerra mundial, a partir do debate sobre a forma de governo
instaurada na União Soviética pelos
bolcheviques (a "ditadura do
proletariado") , e também para designar regimes fascistas, a começar
pelo italiano, com restrito espaço às liberdades individuais e ao anteparo
legal do cidadão face ao poder coercitivo penal do Estado.
Adverte Bobbio que tanto quanto tirania, despotismo e autocracia,
ditadura é um termo que vem da antiguidade clássica. Mas, ao contrário desses,
teve em sua origem e durante séculos, sobretudo durante a República romana, uma
conotação positiva. Lembra Bobbio que Roma, do século 500 a.C até o III século
de nossa era, deu a designação de dictator ao governante nomeado pelos
cônsules para, em circunstâncias extraordinárias (exemplo: guerras civis)
exercer o poder também de forma excepcional, e com tempo pré-determinado.
"A exorbitância do poder do dictator era contrabalançada pela sua temporalidade: o ditador era nomeado
apenas para a duração do dever extraordinário que lhe fora confiado. O ditador
era portanto um magistrado extraordinário, mas legítimo, pois sua instituição
era prevista pela constituição e o seu poder justificado pelo estado de
necessidade", explica Bobbio.[29]
Ressalte-se que, na conceituação
tradicional, bem captada tanto por Maquiavel quanto por Rousseau, o ditador
exerce funções estritamente executivas, não invadindo o espaço do Legislativo ou do Judiciário, ainda
que possa governar fazendo-se valer de determinados gêneros de decretos.
Somente na idade moderna, de acordo com Bobbio, o conceito de ditadura foi
estendido ao poder instaurador da nova ordem, isto é, um poder que como tal revoga
antigas ordens para estabelecer uma nova, por meio da força.
Conhecido
como o "jurista do nazi-fascismo" exatamente por revigorar o
conceito clássico de ditadura já inscrito na Constituição de Weimar (a qual ele
interpretou em favor do regime que ascendia o poder na Alemanha do pós-Prmeira
Guerra mundial) Carl Schimitt, em O
Guardião da Constituição[30],
distingue a ditadura clássica "comissária" da ditadura dos tempos
modernos, revolucionária, que ele denomina de "soberana". A "ditadura comissária" seria
aquela que obedece à ordem estabelecida
e se efetiva por meio de um dispositivo constitucional previamente definido,
enquanto que a soberana vê em todo o ordenamento existente um estado de coisas
a ser completamente reformulado, se necessário for, pelo uso da força.
De volta às conceituações clássicas, a pior
constituição, adverte Aristóteles, a exemplo de Platão, e de acordo com os
ensinamentos de Bobbio, é a forma degenerada que deriva da primeira. O critério
de Aristóteles é o interesse comum, e não o uso da força. A questão do público
versus o privado, que domina o debate
jurídico acerca do Estado,como vimos no início desta monografia, já estava
presente em Aristóteles. É o interesse
público que vai definir se uma constituição é boa ou ruim. Aristóteles analisa
cada uma das seis formas mencionadas acima (as três teoricamente boas com as
suas consequentes degenerações) em especificações históricas, subdividindo-os
em muitas espécies particulares, cuja determinação,
segundo Bobbio, faz com que o esquema geral pareça muito menos rígido do que
ficou consignado na tradição do pensamento político. Por exemplo, explica que a
democracia não se resume a um só gênero, mas, ao contrário, a muitos gêneros.
Aristóteles é realista em sua análise,
reproduzida por Bobbio. Afirma o pensador grego:
"Na democracia governam os homens livres
e os pobres, que constituem a maioria; na oligarquia, governam os ricos e os
nobres, que representam a minoria". [31]
A
politia de Aristóteles seria,
portanto, um regime que faria a fusão das duas formas, remediando a luta
dos pobres contra os proprietários, promovendo a paz social. Aristóteles propõe
então nesta fusão a conciliação de procedimentos, a busca do meio-termo, a
integração das melhores características existentes nos dois sistemas. Afirma
também Aristóteles, de acordo com Bobbio, que a melhor comunidade política é
aquela que se baseia na classe média.
"Está claro que a forma intermediária é a
melhor, já que é a mais distante do perigo das revoluções; onde a classe média
é numerosa raramente ocorrem conspirações e revoltas", declara
Aristóteles, citado por Bobbio".[32]
A politia de Aristóteles portanto traduz a
ideia de que um bom governo seria fruto de uma mistura de diversas formas
("produto de uma mistura", segundo o pensador italiano), o que é relevante porque ainda
hoje trata-se de um dos grandes temas do pensamento político ocidental.
Aristóteles anteviu também a importância das separação dos poderes, ao
propugnar em sua Politia que os
poderes de uma nação se controlem
reciprocamente. Explica Bobbio que a
presença simultânea dos três poderes e seu controle recíproco preserva as
constituições mistas da degeneração a que estão sujeitos os governo simples.
Políbio, que viveu II séculos antes de nossa
era, em Roma, vai afirmar que deve-se considerar a constituição de um povo como
a causa primordial do êxito ou do insucesso de todas as ações. É ele que, em
sua classificação sobre as formas de governo, cria o termo oclocracia - de oclos, que significa multidão - para designar
governo das massas, como a forma degenerada de democracia. Há um fatalismo em
Políbio, segundo a análise de Bobbio, posto que o seu sistema de classificação
de governos vai sempre em direção ao pior, sendo irrevogável e imutável, no
sentido de que uma determinada forma só pode ser substituída por outra
específica.
Dizia Políbio, de acordo com os ensinamentos
de Bobbio, que há um mal natural em cada forma de governo, como há um mal no
ferro (ferrugem) e na madeira (traça). Políbio descreve um círculo perpétuo das
formas de governo, após observar o comportamento das cidades-gregas ao longo da
história. De acordo com este círculo (ou ciclos sucessivos), do reino passa-se à tirania, da tirania à
aristocracia, da aristocracia à oligarquia, da oligarquia à democracia, da
democracia à oclocracia, desta novamente ao reino, e sempre nesta ordem e de
forma sucessiva. Daí ele também parte para afirmar que as formas simples de
constituição são más, porque engendram este ciclo vicioso, e que o ideal é estabelecer
governos que reúnam o que há de melhor dos três tipos básicos de constituição
(monarquia, aristocracia e democracia).
Somente as formas mistas, como a adotada por Licurgo em Esparta, seriam
capazes de gerar estabilidade e prosperidade. Assim como Aristóteles, antecipa
a divisão de Poderes que seria sedimentada na Idade Moderna com Montesquieu, ao
preconizar que a legitimidade da monarquia está associada à figura do rei; à da
aristocracia, à do Senado; à do Parlamento à do povo, engendrando assim uma
forma composta de governo,conforme aponta Bobbio.
Afirma Bobbio que a presença simultânea dos
três Poderes e seu controle recíproco já eram entendidos no pensamento clássico
como uma forma de preservar as constituições das degenerações, uma vez que impediria
os excessos que desencadeiam a violência e provocam mudanças. Maquiavel[33],
com seu realismo, de certa forma rompe com a ideia de ciclos que se repetem de
forma infinita. E simplifica a classificação, conforme nos lembra Bobbio. Para
o pensador de Florença, todos Estados que existem ou são Repúblicas ou
Monarquias, uma vez que as nações ou são governadas por uma pessoa ou por
muitas - e é aí que estaria, segundo a concepção maquiavélica, a verdadeira
distinção. A conquista e a manutenção do
poder só pode se dar de quatro maneiras: pela virtude, pela fortuna (sorte),
pela violência ou pelo consentimento dos cidadãos. Principados conquistados
pela virtú (pela capacidade do
príncipe/governante) tendem a ser mais duradouros. O consentimento do
povo, por sua vez, também só pode
decorrer do reconhecimento da virtude do governante.
Bobbio chega ao fim de A Teoria das Formas de Governo dedicando um capítulo a Marx, antes
de discorrer sobre a Ditadura, no capítulo derradeiro (cujos conceitos foram
comentados acima). E afirma, de saída:
"Em nenhuma lugar de sua imensa obra
encontramos qualquer manifestação do interesse de Marx pelo problema da
tipologia das formas de governo - que, no entanto, esteve sempre presente nos
escritos políticos, de Platão a Hegel". [34]
Ressalta, didaticamente, que o autor de O Capital , ao contrário de Engels (que
escreveu A Origem da família, da
Propriedade e do Estado), não produziu nenhuma obra dedicada expressamente
ao problema do Estado e que sua teoria política "precisa ser extraída de
trechos, em geral curtos", de obras de economia, história, políticas,
letras etc.
"Penso que uma razão intrínseca do pouco
interesse de Marx pela tipologia das formas de governo é a sua concepção
caracteristicamente negativa de Estado". [35]
Em Marx, segundo Bobbio, esta concepção
negativa de Estado é ainda mais evidente quando se compara com a concepção
extremamente positiva feita por seu predecessor e antagonista, Hegel. Para a
maior parte dos filósofos clássicos, Hegel incluso, o Estado representa um
momento positivo na formação do homem civil. O objetivo do Estado é ora a
justiça (Platão), ora o bem comum (Aristóteles), ora a felicidade dos súditos
(Leibniz), ora a liberdade (Kant), ora a máxima expressão do ethos de um povo (Hegel), afirma Bobbio.
Marx, ao contrário, sustenta o autor de A Teoria das Formas de Governo, considera o Estado como um "puro e simples
instrumento" de poder e de domínio. Portanto, na concepção marxista, o Estado teria duas características
principais, de acordo com os ensinamentos de Bobbio: 1) Estado como pura e
simples superestrutura que reflete o estágio das relações sociais determinadas
pela base econômica; 2) identificado como aparelho de que se serve a classe
dominante para manter o seu domínio, motivo pelo qual o objetivo do Estado não seria, como
supõem os clássicos, um objetivo nobre, mas o interesse particular de um
segmento da sociedade. Sendo assim, para Marx, o Estado é sempre uma
instituição corrompida. Bobbio lembra uma passagem de A Sagrada Família (1845) em que o pensador alemão afirma que
somente a superstição política pode imaginar ainda hoje que a vida civil deve
existir dentro do Estado; e que na verdade é o Estado que existe dentro da vida
civil. Convergindo com Engels para quem o Estado é sempre o Estado da classe
mais poderosa.
Daí a estruturação do termo "Ditadura
do proletariado", que, segundo Bobbio, foi empregada pela primeira vez por
Marx em carta escrita a Joseph Weydemeyer, em março de 1852, e na qual o
pensador demonstra que: 1. a existência de classes só está ligada a determinada
fase do desenvolvimento histórico da produção; 2. a luta de classes leva
necessariamente à ditadura do proletariado; 3. esta ditadura constitui apenas
uma passagem para a fase de supressão de todas as classes, a uma sociedade sem
classes. [36]
Lênin teria considera, segundo Bobbio, a carta a Weydemeyer como um dos mais
importes documentos do pensamento marxista, e assinalaria que só seria marxista
quem estendesse o reconhecimento da luta de classes até a admissão da
"ditadura do proletariado", sendo esta a diferença mais profunda
entre o marxista e o pequeno burguês. O comunismo emergiria após a ditadura do
proletariado e caracterizar-se-ia pela ausência de um poder coator e opressivo
(Estado).
Rousseau[37]
elucubrou uma democracia direta, ao criticar, em Do Contrato Social, o modelo
em inglês. Assinala Bobbio que Marx não preconizou a democracia direta
propriamente dita, ou seja, a forma de governo pela qual todos participam
pessoalmente da deliberação coletiva, mas a democracia eletiva com a revogação
do mandato dos eleitos - uma forma de democracia em que os representantes têm
seu mandato limitado às instruções recebidas dos eleitores.
"Não há dúvida de que para Marx, ao
contrário de todos os escritores políticos que o precederam, a melhor forma de
governo é aquela que agiliza o processo de extinção do Estado - e que permite a
transformação da sociedade estatal em sociedade não-estatal. A essa melhor
forma de governo corresponde a fase que Marx chama de transição (de Estado para
a ausência de Estado) e que é, do ponto de vista do domínio de classe, o
período da 'ditadura do proletariado'". [38]
Conclusões
Como lembra Celso Laffer, no Prefácio de A Teoria das Formas de Governo,
"Bobbio não ignora as dificuldades da democracia, porém, insiste nos seus
méritos seja porque examina os problemas do Estado, vendo como questão de fundo
das formas de governo a liberdade, seja porque, coerentemente com esta
perspectiva, realça que as normas podem ser criadas de dois modos:
autonomamente pelos seus próprios destinatários ou heteronomamente por pessoas diversas dos
destinatários. E fica evidente a razão pela qual Bobbio prefere a democracia
enquanto processo de nomogênse jurídica, posto que se trata de uma forma de
governo que privilegia uma concepção ascendente de poder graças a qual a
comunidade política elabora as leis através de uma organização apropriada da
vida coletiva".[39] Afirma Bobbio que o modo como o poder é
conquistado não é irrelevante para a forma pela qual ele será exercido,
estabelecendo desta maneira, o nexo entre legalidade enquanto qualidade dos
procedimentos e a legitimidade enquanto título para o exercício do poder.
***
Por Nilson Mello (em 04 de Novembro de 2016)
Bibliografia
> BOBBIO, Norberto. Estado, Governo e Sociedade - Para uma teoria geral da Política.
São Paulo (SP), Paz e Terra, 1997/6a Edição.
> BOBBIO,
Norberto. A Teoria das Formas de
Governo. Brasília (DF), Editora
Universidade de Brasília, 10a Edição.
> BOBBIO, Norberto. Teoria do Ordenamento Jurídico. Brasília (DF), Editora
Universidade de Brasília, 10a Edição.
>BOBBIO, Norberto. Direito
e Estado no Pensamento de Emmanuel Kant. Brasília (DF), Editora
Universidade de Brasília, 2001.
[1]
BOBBIO, Norberto. A Teoria das Formas de Governo. Brasília (DF), Editora Universidade de Brasília, 10a Edição
(Prefácio)
[2] KELSEN, Hans. O Positivismo
Jurídico. São Paulo-SP, Martins Fontes, 1999.
[3] WEBER,
Max. Ciência e Política. São
Paulo-Sp, Ed. Cultrix, 1993
[4]BOBBIO, Norberto. A
Teoria das Formas de Governo. Brasília (DF), Editora Universidade de Brasília, 10a Edição,
pág. 13.
[6] Obra
cit., pág. 36
[7] BOBBIO,
Norberto. Estado, Governo e Sociedade -
Para uma teoria geral da Política. São Paulo (SP), Paz e Terra, 1997/6a
Edição, página 14.
[8] Obra
cit., pág 17
[9] Obra
cit., pág. 18
[10] Obra
cit., pág. 27
[11] Obra
cit., página 34
[12] Obra
cit., pág. 35
[13] Obra
cit. , pág. 37
[14] Obra
cit., pág. 38
[15] Obra
cit.,pág 49
[16] Obra
cit.,pág. 52
[17] Obra
cit.,pág. 57
[18] Obra
cit.,pág. 59
[19] Obra
cit., pág.92
[21] Obra
cit.,pág. 96
[22]
BOBBIO, Norberto. A Teoria das Formas de Governo. Brasília (DF), Editora Universidade de Brasília, 10a Edição.
[23] Obra
cit.,pág. 31
[24] BOBBIO,
E.G.S., pág.139.
[25] Obra cit.,
pág. 45
[26] Obra
cit., pág. 46
[27] Obra
cit.,pág. 54
[28] E.G.S.,
pág.158
[29] Obra
cit.,pág.159
[30] SHMITT,
Carl. O Guardião da Constituição,
Belo Horizonte, Del Rey, 2007.
[31]
A.T.F.G, pág. 60
[32] Obra
cit.,pág. 62
[33]
MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe, Rio
de Janeiro-RJ, Bibliex, 1998
[34] Obra
cit.,pág. 164
[35] Obra
cit.,pág. 163
[36]
A.T.F.G, pág. 169
[37]
ROUSSEAU, Jean Jacques. Do Contrato
Social. São Paulo-SP, Editora Abril/Coleção Os Pensadores, 1983.
[38]
A.T.F.G, pág. 172
[39] Obra
cit., pág. 24
Bobbio, embora se rotule um pessimista é um socialista liberal com uma atualidade exuberante, principalmente no Brasil de hoje.
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