Maquiavel e
a sua defesa da Liberdade
Nascido em 1469, Maquiavel tinha
29 anos, em 1498, quando iniciou suas funções na vida pública em sua Florença
natal, como oficial de Chancelaria da Cidade-Estado. Quando os Médici reassumem o governo da cidade,
com o apoio da Espanha, põem fim ao regime republicano liderado por Piero
Soderini, governo ao qual Maquiavel servia como funcionário. Em 1512, ele é, portanto, destituído de suas funções
públicas, e chega a ser preso e torturado. Após ser libertado, em 1513, inicia uma fértil atividade intelectual. Os Discursos sobre a Primeira Década de Tito Lívio são
desta fase de sua vida, assim como O
Príncipe, ambas obras-referência da Filosofia Política ocidental. O Livro I
da obra, onde a questão da liberdade vem à tona, é o foco deste breve ensaio.
Em Os
Discursos (1513-1517), Maquiavel
tenta recuperar seu prestígio entre os governantes de Florença e mostrar-se
útil como estrategista político e formulador da vida pública italiana. O livro
em questão discorre sobre a melhor ou as melhores formas de
organização institucional das cidades-estados da Itália, dominadas pelo Sacro
Império Romano-Germânico (962-1806). É oportuno aqui fazer uma observação
pertinente ao nosso estudo. A
partir de 1272 até as Guerras Napoleônicas, no início do Século XIX, o Império
foi dominado pela dinastia dos Habsburgo, que teve sob o seu domínio, com
variações ao longo do tempo, os territórios da Espanha, Países Baixos, Bélgica,
Alemanha, Áustria, Eslovênia, Polônia, Hungria, Rep. Tcheca e até a França.
As cidades italianas, portanto,
estavam, em geral, na época de Maquiavel, submetidas, em maior ou menor grau, ao Império
Romano-Germânico, embora pudessem gozar de certa autonomia. Os mesmos
Habsburgos que dominavam os Países Baixos de Van Den Enden dominavam a Itália
Medieval de Maquiavel.
Neste
período, as discussões em torno da melhor organização institucional para as
cidades mobilizavam o pensamento de juristas e filósofos na Europa, mas em
especial na Itália devido à permanente lembrança da grandeza da República
romana. Maquiavel era um apaixonado pelo tema, com profundo conhecimento da
história. Aliás, é a história a sua principal ferramenta de trabalho na
estruturação de sua doutrina política.
Desde
Petrarca (1304-1374), inicia-se na Itália um movimento de retorno aos clássicos
do pensamento greco-romano, que alimentou não apenas o debate político e filosófico
na Península como operou uma revolução nas artes e na literatura, criando as
condições necessárias para a Renascença que emergiria logo depois. Do ponto de vista político havia
um desafio a ser superado pelos teóricos: a ação política era necessária, mas
representava uma forma de vida inferior
e “degradada” em relação à vida religiosa,
como bem salienta Newton Bignoto, comentarista brasileiro de Maquiavel.[1] Autores
clássicos como Cícero serviram para mostrar que era possível pensar a política
de forma mais livre do que aquela que predominava na Idade Média, e assim foram
resgatados por pensadores como Maquiavel.
O livre-arbítrio, cuja importância para o ser humano fora ressaltada por
Santo Agostinho (e que durante boa parte da idade Média estivera associada ao
pecado), transformou-se na ferramenta de elevação da humanidade a uma condição
de vida superior, mais digna.
Em seus Discursos, Maquiavel
não despreza esta perspectiva. Servindo-se de sua erudição e de seus
conhecimentos de história passa a estruturar os temas centrais de sua filosofia
política. Empreendeu assim sua própria concepção de vida pública e estabeleceu, na obra, as condições gerais
para a criação de um novo pensamento político, livre de diretrizes místicas, o
que sobressai não apenas nos Discurssos, como em O Príncipe. Uma nova gama de parâmetros
para a vida pública, e para a política é inaugurada com suas teses.
Maquiavel
é cético em relação à natureza dos homens. Não seria um kantiano, mas, sim,
claramente um hobbesiano, na medida em que adverte que os homens são maus e
estão sempre prontos a agir contra as Leis. Numa passagem do 3º Capítulo de
seus Discurssos, ele lembra que os que se ocupam de fazer as leis
(ordenar o Estado), não devem ignorar este traço da natureza humana. Mas é
preciso dizer que, nos Discursos,
ele manifesta a sua firme convicção na possibilidade de se ordenar uma
República estável, coesa. O seu ceticismo, portanto, não o impede de ser
propositivo. Muito ao contrário, é o diagnóstico que faz da natureza humana que
o leva a elucubrar teses políticas e formas de governo decorrentes que venham a
criar Estados mais prósperos e perenes.
Para tanto, ele se ocupa em
estudar as condições que presidem todas as ações políticas, livre de
ingenuidades. Antes de tentar erigir um regime republicano, lança-se à
investigação sobre de que forma este regime poderá se preservar. De nada
adianta conceber o que não pode ter futuro.
Faz assim uma genealogia da estruturação do Estado, em especial, na sua forma republicana. Passemos
então, mais detidamente, ao exame do
Livro Primeiro dos Discursos, a partir da dissecação de seus capítulos.
Pode-se dizer, com razoável
margem de segurança, que a Busca da “verdade efetiva das coisas” é o primeiro
pilar da Teoria Política de Maquiavel. O
segundo pilar seria a certeza de que o mundo tem um caráter mutável, e sendo
assim os pontos de ancoragem para estruturar uma teoria política e ordenar um
Estado também devem variar – ou seja, quem ordena, quem legisla, quem dirige
uma Nação deve considerar este caráter
mutável que tem como analogia a própria natureza. Aqui temos expresso de forma
conceitual o realismo do pensamento de
Maquiavel.
Aliados a esses pilares, temos
dois conceitos que perpassam toda a sua doutrina política. O primeiro é o
conceito de fortuna (sorte), ou seja, o fato de que alguns eventos não
podem ser previstos nem pelos melhores teóricos. O que, face ao caráter mutável
que a própria política deve adotar,
requer adaptação. O governante e o ordenador (legislador) do Estado devem saber
adaptar.
Passo a passo à fortuna,
encontramos em Maquiavel o conceito de virtú, que, no vocabulário
político do pensador, mais do que virtude no estrito sentido moral do termo
significa também a capacidade de governar levando em conta a mutabilidade do
mundo e, por decorrência, dos homens. A virtù seria, como salienta
Newton Bignotto, a capacidade de bem agir - com discernimento e sem
idealizações - na cena política, no momento certo. Mas, para o sucesso do
empreendimento, este governante virtuoso precisará ainda da fortuna, porque, como já vimos, nem tudo é previsível.
Maquiavel
divide o Livro I de seus Discursos sobre
a Primeira Década de Tito Lívio em dez Capítulos. São eles: I. Quais foram os
princípios das cidades em geral e de Roma; II. De quantos espécies são as
Repúblicas e de que espécie foi a República Romana; III. Que acontecimentos
levaram à criação dos tribunos da plebe em Roma, o que a tornou a República
mais perfeita; IV. A desunião entre plebe e Senado tornou livre e Poderosa a
República Romana; V. Onde se deposita com mais segurança a guarda da liberdade:
no povo ou nos grandes; e quem tem maior razão para criar tumultos; quem deseja
conquistar ou quem quer manter; VI. Onde se procura saber se em Roma era
possível ordenar um Estado que eliminasse as inimizades entre o povo e o
Senado; VII. Das necessidades das acusações para conservar a liberdade numa
República; VIII. Assim como as acusações são úteis às Repúblicas, são
perniciosas as calúnias; IX. De como é
possível estar só para se ordenar uma República nova, ou para reformá-la
inteiramente, com ordenações diferentes das antigas; X. Assim como são
louváveis os fundadores de uma República ou de um Reino, são condenáveis os
fundadores de um tirania.
Quais
teriam sido então os princípios das cidades em geral e de Roma? Contra toda a
tradição medieval, Maquiavel entende que os conflitos são não apenas
necessários como saudáveis para o fortalecimento das cidades (Estado). Os
conflitos internos foram, segundo ele, a verdadeira causa da grandeza da República
romana. A partir desta perspectiva, está claro que a República, ainda que seja
o melhor regime ou forma de governo, é ela também vulnerável, como o prova a
história de Roma.
Mas esta análise acurada do
mundo político que é feita por Maquiavel, em bases realistas, não nos impede de
desejá-lo melhor. Ao contrário, em sua concepção, é diagnosticando os defeitos
que se promove uma evolução, um aperfeiçoamento. A virtú permite ao governante/legislador
operar esta ação rumo ao melhor - e aqui o nosso pensador assume, por assim
dizer, uma abordagem kantiana da vida em sociedade. O ser humano está a caminho
de um mundo político melhor, apesar
dos reveses.
Fazendo
a genealogia das cidades, afirma Maquiavel que todas elas, sem exceção, ou
foram edificadas por seus naturais (aqueles que nela nasceram) ou pelos
estrangeiros. E os homens fundam as cidades para se proteger dos inimigos.
Lembra o caso de Veneza, que, por estar
às margens do Adriático, não diretamente banhada pelo Mediterrâneo, sofreu
menos assédio dos povos invasores que, partindo do Leste, fundaram suas
colônias no Sul da Europa e no Norte da África.
Os forasteiros - explica ele -
fundam as cidades (Estado) por ordem de seus príncipes, para expandir os seus
domínios. Nessas, adverte, dificilmente os homens serão livres. Na escolha da
cidade a se fundar, também estará ou não presente, como fator de sucesso, a virtù,
que identificará o local onde há melhores condições de defesa e de
prosperidade. Também a virtude dos ordenadores do Estado deverá
conduzi-los a estatuir regras que venham a coibir o ócio. Mesmo os homens
livres não devem se entregar ao ócio. Dá o exemplo do Egito antigo, muito
fértil, e que se fortaleceu graças à disciplina das regras de trabalho.
Voltando sempre ao exemplo de Roma,
questiona quem a "edificou", Enéas ou Rômulo (e Remo)? Afirma que, se
foi Enéas, foi um forasteiro; se foi Rômulo, um natural do lugar. Mas, não
importando de como tenha sido, Maquiavel ressalta que Roma teve um princípio
livre, independente de forças externas (não era uma província longínqua
subordinada a uma outra soberania, ultramarina. Ensina que de qualquer forma,
tendo sido fundada por Enéas ou por Rômulo, Roma contou com leis feitas por
quem tinha discernimento (virtù), o que garantiu a sua sobrevida e o seu
fortalecimento de forma livre.
No
Capítulo II, passa a investigar de quantos espécies são as Repúblicas e de que
espécie foi a República Romana. A cidade feliz será aquela que encontra um
ordenador (legislador/governante) prudente desde a origem; e foi este o caso de
Roma. Um ordenador original prudente, um sábio na origem das leis fundadoras
(uma ideia que mobiliza a Filosofia política e a Teoria Política desde a
Antiguidade clássica, bem como é o objeto de investigação permanente da Teoria do
Estado e da Filosofia do Direito). Afirma o pensador florentino, textualmente:
“Assim, pode-se considerar-se
feliz a República a qual caiba por sorte um homem tão prudente que lhe dê leis
de tal modo ordenadas que seja possível viver em segurança sob tais leis, sem
precisar corrigi-las”.[2]
Aqui, na verdade, nos deparamos com uma contradição aparente entre os
conceitos de conflito de mutabilidade. Faz a ressalva, porém, de que as
Repúblicas que não têm um ordenamento perfeito, podem se reordenar positivamente,
se tiverem em sua origem um princípio bom. Neste sentido, dá o exemplo da
própria Florença, que se ordenou, reordenou e desordenou várias vezes em meio
aos conflitos e embates políticos. Menciona, didaticamente, as três formas boas
e as três formas más (degeneradas) de governo, estruturadas desde os clássicos
e consolidada por Políbio: Principado/Optimates (Aristocracia)/ Popular, com
suas respectivas formas degeneradas, que seriam Tirania/Oligarquia/Demagogia.
No capítulo III, examina que
acontecimentos levaram Roma a criar os Tribunos da Plebe. Ainda nos passos do próprio Políbio, mas sem citá-lo,
afirma que a forma melhor é a mista, ou
seja aquela que mescla um ou mais ingredientes das três. Teríamos assim um
governante (príncipe, condottieri),
um Senado com determinada gama de poderes legislativos e judiciais e uma
Tribuna da Plebe (povo), que desta forma também poderia discutir os destinos da
cidade (Estado) e contribuir para a formulação de leis ordenadoras.
Ao
misturar as formas de governo, Maquaivel faz uma distribuição das atribuições
de caráter Executivo, Legislativo e Judiciário, o que pode ser visto como um
embrião da Teoria da separação dos poderes mais tarde consolidada com
Montesquieu. Procede também ao balance between powers, um instituto político-jurídico
contemporâneo, que visa justamente a gerar coesão e harmonia entre as
instituições de Estado.
Menciona
as transformações e os ciclos das formas, novamente incorporando conceitos dos clássicos sem citá-los
diretamente: a monarquia (ou principado) transformando-se em tirania; a
oligarquia sucedendo a aristocracia; o popular (democracia) derivando para a
era da licenciosidade (demagogia), de uma sociedade desregrada. Alerta que, se
uma República passa por tais mutações muitas vezes, raramente permanecerá de
pé.
O que dá estabilidade é ter um
pouco de todos os tipos ou formas de
governo. Afirma:
“Quem ordenar a cidade deve ter
em mente, na ordenação, um pouco de cada um desses modos; porque, quando numa
cidade tem principado (ou seja, um governante executivo); optimates
(aristocracia/Senado/elite) e governo popular um toma conta do outro”.[3]
Cita como
exemplo Esparta de Licurgo, que ordenou as Leis desta forma. Lembra ainda que
Roma não teve a primeira fortuna (sorte) em sua ordenação, que no início não
era mista, mas que depois seguiu o "bom caminho" instituindo os
Tribunos da Plebe, o que implica a adoção da forma mista. Percebe-se aqui a
consciência de Maquiavel quanto ao que podemos chamar, numa linguagem
contemporânea, de conflito de classes. E afirma:
“Criaram assim os tribunos da
plebe, tornando-se mais estável o estado daquela república, visto que as três
formas de governo tinham a sua forma”. [4]
Numa perspectiva de caráter mais
sociológico que reafirma seu ceticismo
em relação à humanidade, explica que
os homens só fazem o bem por necessidade; e é a fome e o medo que fazem os
homens industriosos e gregários, sociáveis se assim podemos dizer, não no
sentido romântico do termo, mas no sentido realista. Onde as licenças
(liberalidades) são muitas, logo se chega à desordem. Por outro lado, os nobres
(elite) também precisam de freios, para não exercer o seu poder de forma
absoluta ofendendo e prejudicando a plebe, o que gera convulsões.
“Por isso, depois de muitas
confusões, tumultos e perigos de perturbações, surgidos entre a plebe e a
nobreza, chegou-se à criação dos tribunos, para segurança da plebe”. [5]
Conclui
que foi desta forma que os romanos impediram os conflitos entre os nobres e o
povo.
Passa a
analisar com mais detalhes, no Capítulo IV, a desunião entre plebe e Senado (ou
seja, povo de um lado e nobres/elite de outro) para concluir que foi exatamente
este conflito que tornou livre e poderosa a República de Roma. Maquiavel parece
aqui estruturar sua própria dialética, cuja síntese se dá pela preeminência de
um Estado ordenado a partir da fusão das três formas boas de governo. Lembra
que depois da morte dos Tarquínios[6],
Roma tornou-se uma República tumultuada.
Afirma,
porém, que leis em favor da liberdade nascem justamente após os conflitos
sociais, reafirmando neste ponto a sua dialética. Depois dos Tarquínios até os
Gracos, raros foram os tumultos sérios em Roma, porque normas mais liberais e
razoáveis foram ordenadas. Por esta razão, segundo Maquiavel, Roma teria vivido
quase 300 anos de relativa paz. Portanto, não se pode dizer que tais tumultos
são totalmente nocivos, uma vez que eles redundaram em leis melhores e no
fortalecimento do Estado. Foram leis benéficas à liberdade pública as que
decorreram do período dos Tarquínios.
“E se os
tumultos foram razão para a criação dos tribunos, merecem sumo louvores;
porque, além de concederem a parte que cabia ao povo na administração, tais
tribunais (da plebe) foram constituídos para guardar a liberdade romana”.[7]
Onde se deposita com mais
segurança a guarda da liberdade; no povo ou nos Grandes?; e quem tem maior
razão para criar tumultos: quem deseja conquistar ou quem deseja conservar? Maquiavel
procura responder a esses questionamentos no Capítulo V de seus Discursos.
Começa de antemão afirmando que a coisa mais necessária numa República é a guarda da liberdade.
Explica que, entre os Venezianos, esta guarda foi posta nas mãos dos nobres;
entre os romanos, nas da plebe.
E a que conclusão chega
Maquiavel, dentro de seu pragmatismo político?
“Deve-se
dar a guarda da liberdade aquele que tiver menor interesse em usurpá-la. E, se
considerarmos os objetivos dos nobres e dos plebeus, veremos naqueles (nobres) grande desejo de dominar e
nestes somente o desejo de não ser dominado e, por conseguinte, maior vontade
de viver livres visto que podem ter menos esperança de usurpar a liberdade que
os grandes”. [8]
Os
populares, portanto, teriam mais zelo na guarda da liberdade. E tanto aquele
que quer manter o poder quanto aquele que quer conquistá-lo pode ter fortes
ambições, em grau equivalente; e ambos os desejos podem dar margem a enormes
tumultos.
Na
sequência, no Capítulo VI, Maquiavel passa a prospectar se em Roma era possível
ordenar um Estado que eliminasse as inimizades entre o povo e o Senado. Recorre
ao exemplo de Esparta, que institui um rei e um pequeno Senado para governá-la.
Compara-a a Veneza, que, por sua vez, não dividiu o governo, mas, sob uma mesma
denominação, todos os que podem administrar chamam-se gentis-homens. Veneza,
ensina Maquiavel, pôde nascer e se manter algum tempo sem tumulto por que todos
que ali moravam participavam do governo, de tal modo que não poderia
queixar-se.
Esparta de Licurgo criou mais
igualdade de bens e menos igualdade de cargos – os cargos eram mantidos fora do
alcance da plebe; mas, por outro lado, os nobres nunca lhe deram (pelos maus
tratos) razão para possuí-los. Assim, para evitar tumultos, Roma precisaria ter feito como Esparta ou
Veneza: ou, no primeiro caso, não abrir caminho para os forasteiros, ou,
no segundo, não empregar a plebe na
guerra. Mas fizeram ambas as coisas, o que deu força à plebe, segundo o nosso
pensador. Contudo, esta força, em que dados momentos gerou tumulto, permitiu
também a Roma ser a potência e o Império que foi. Diz Maquiavel, com a sua
peculiar eloquência:
“Se Roma quisesse eliminar as razões dos tumultos, eliminaria também as
razões de ampliar-se”. [9]
Em outras palavras, a imigração
fortaleceu Roma. Esteve presente em sua gênese e em seu crescimento. Foi em
grande medida a razão de seus conflitos, mas, ao mesmo tempo, o seu fator de
grandeza. O que poderia ser um problema tornou-se uma solução política. Porque,
ensina, grandes Impérios precisam de muitos cidadãos.
Quem
quiser portanto ordenar uma Republica, precisa saber o que pretende: mantê-la
em seus domínios sem oferecer grande ameaça aos inimigos, ou crescer, como fez Roma. Uma escolha
pragmática. A escolha de ser pequeno às vezes se torna um risco muito grande e
Maquiavel então conclui:
“... Creio ser necessário seguir a ordenação romana, e não a das outras
repúblicas; porque não acredito seja possível encontrar um meio termo entre uma
e outra, e as inimizades que surgissem entre o povo e o senado deveriam ser
toleradas e consideradas necessárias para que se chegasse à grandeza romana”. [10]
Se há conflitos políticos e
sociais, os sociais engendrando os políticos, é
preciso haver igualmente um arcabouço institucional, de caráter
jurídico, que seja capaz de solucionar esses confrontos abertos transformando-os
em litígios regrados pelo Estado. Eis então que, no Capítulo VII de seus Discursos Maquiavel faz uma exaltação daquilo que podemos
entender como legalidade, ao defender a necessidade das acusações para se
conservar a liberdade numa República. Seria, em linguagem jurídica estrita, uma
ode ao devido processo legal e à publicidade dos atos judiciais, a fim de que
toda a sociedade tome conhecimento dos julgamentos. Seria desta forma que
efetivamente cumprir-se-ia o justo, fortalecendo as instituições republicanas.
Maquiavel faz assim uma ode à legalidade. Defende que haja acusações, mas
que se dê o devido direito de defesa, sobretudo aos governantes e aqueles que
dirigem o Estado. Preconiza que, com o direito de defesa legalmente assegurado,
a verdade virá à tona, o justo será cumprido, o acusado, se inocente,
absolvido, se culpado, condenado; e desta forma o Estado será
fortalecido
Em sentido inverso, mas pelas
mesmas razões, deve-se combater com rigor as calúnias apurando os fatos e
punindo os responsáveis pelas ofensas indevidas e falsas afirmações. Porque é
também desta forma que o Estado sai fortalecido. Afirma Maquiavel:
“Por
isso, nada há que torne mais estável e firme uma República do que ordená-la de tal modo que a alteração dos humores que a
agitam encontrem via de desafogo ordenada pelas Leis".[11]
Indiretamente
Maquiavel também faz aqui a defesa das transparência dos fatos, esclarecimentos
da vida pública – os cidadãos como testemunhas de sua própria história,
julgado, pela opinião pública, os
eventos relevantes de sua cidade (Estado). Cita o exemplo de Coriolano, que,
inimigo das forças populares, tentou castigar a plebe, privando-a, em momento
de crise, de alimentos que viriam de fora durante um período de penúria. Faz um alerta: não basta acusar um
poderoso diante de poucos juízes; é preciso que sejam muitos os magistrados,
porque os poucos sempre julgam favoravelmente aos poucos. Da mesma forma,
adverte, se as Leis forem boas e bem aplicadas, não haverá necessidade de
intervenção estrangeira, o que é nocivo para um Estado.
Mas, assim como as acusações são
úteis à República, as calúnias são perniciosas. No Capítulo VIII, Maquiavel discorre sobre a
inveja de Mânilo em relação a Fúrio Camilo, este tratado como herói por ter
livrado Roma de inimigos externos. Mânlio calunia Camilo, mas acaba
desmoralizado. E isso só foi possível porque os fatos foram apurados e julgados
por quem tinha autoridade, para tanto; e isso, segundo Maquiavel, deveu-se a
uma boa ordenação do Estado romano. Afirma, sobre o episódio:
“Os romanos mostraram neste caso como os caluniadores devem ser punidos.
Porque é preciso que se tornem acusadores. E, quando se verifica que a acusação
é verdadeira, devem ser premiados (os acusadores) ou ao menos não punidos: mas,
quando não, devem ser punidos, como foi punido Mânlio”.[12]
Já
no Capítulo XIX, questiona como é
preciso estar só para ordenar uma República nova ou para reformá-la
inteiramente com ordenações diferentes das antigas. Reafirma, aqui, a crença
num legislador original sábio, dizendo textualmente o que se segue:
“E deve-se ter como regra
geral que nunca, ou raramente, ocorre
que alguma república ou reino seja, em seu princípio, bem ordenado ou reformado
inteiramente com ordenações diferentes das antigas, se não é ordenado por uma
só pessoa; aliás, é preciso que um homem só dite o modo, e que de sua mente
dependa qualquer dessas ordenações”. [13]
Argumento
Maquiavel que, mesmo se este legislador sábio original vier a errar nos atos,
eventualmente, mas se tiver tido um objetivo maior, o efeito dos fatos o
escusará. Faz, portanto, nesta passagem a admissão implícita de que os fins
justificam os meios, ideia que norteia, de forma subjacente, toda a sua
doutrina política. Dá, neste sentido,
o exemplo de Rômulo, que teria
matado Remo, mas dali fez a grandeza de Roma.
Didaticamente, sem perder de
vista o seu realismo político e todo o seu pragmatismo, sentencia que este
ordenador solitário deve ser prudente e virtuoso. De forma contundente, adverte
que este legislador solitário original não deve jamais deixar a sua autoridade
como herança. Para Maquiavel, a capacidade de governar não pode ser
hereditária.
Por outro lado, afirma que,
quanto maior for o número de pessoas capacitadas a ordenar e administrar um
Estado, maiores serão as chances deste Estado de se tornar próspero e perene.
Tenderá a durar mais se for, depois de ordenada, entregue ao
cuidado de muitos. Sempre recorrendo à
História de Roma para as suas conclusões e formulações, lembra que Rômulo,
depois de ordenar Roma, reservou para si apenas o comando dos Exército,
distribuindo as tarefas de governar. Identifica, nesta passagem,
indiretamente, Rômulo como um fiador do Estado, aquele a quem cabe a tarefa de
guardião.
Por fim,
no Capítulo X, diz que, se são louváveis os fundadores de um Reino ou de uma
República, são vituperáveis os fundadores de uma tirania. Segue afirmando que,
entre todos os homens louváveis, os mais louváveis foram os formuladores das
religiões; e logo depois desses, os que fundaram as repúblicas e os reinos;
depois desses, os que, comandando exércitos, ampliaram o domínio da pátria; a esses se somam-se os homens das
letras.
Mas são ao contrário infames e
detestáveis os homens que destroem religiões, dissipam reinos e repúblicas,
inimigos das virtù , das letras, das artes e de qualquer outra atividade
que confira utilidade e honra à natureza
humana. Os tiranos equivalem, segundo Maquiavel, aos ímpios, violentos,
incapazes, ignorantes. In verbis:
“E que ninguém se engane com a
glória de César, sobretudo ao ouvir os escritores que tanto o celebram, porque
aqueles que o louvam são corrompidos por sua fortuna [duplo sentido:sorte e riqueza] e deixam-se amedrontar pela duração
do império que, levando o seu nome, não permitia que os escritores
falassem livremente dele”. [14]
Lembra que dos 26 imperadores
romanos alguns eram bons (cita Trajano,
Adriano, Marco Aurélio...), mas 16 foram assassinados. Nesta passagem,
reitera novamente que impérios se arruínam pelos herdeiros e segue dizendo que:
“nos tempos governados pelos bons, verá
um príncipe seguro em meio aos
seus cidadãos seguros, o mundo cheio de paz e justiça; verá o Senado com a sua autoridade, os
magistrados com as suas honras; verá os cidadãos ricos gozar de suas riquezas;
a nobreza e a virtù exaltadas: verá a
paz e o bem; por outro lado, verá a extinção do rancor, da licença, da corrupção e da ambição:
verá o tempo de ouro, em que cada um
pode ter e defender a opinião que quiser”.[15]
Por fim, diz que um príncipe (um governante) não deve deixar passar a chance de ordenar
uma cidade. Esta será a sua verdadeira glória em terra.
Comentários
finais
Liberdade
e participação. Maquiavel preconiza a mudança da República por meio de sua
reordenação, de sua transformação. Se para tanto for preciso derrubar o governante,
e reconstruir do zero, que se faça. Mas Maquiavel faz uma abordagem equidistante
da matéria no Livro I de seus Discursos,
com caráter, poderíamos dizer, mais científico, ou pelo menos técnico. Está
assim, portanto, longe de ser o que a
modernidade ou o Iluminismo chamaria de um "revolucionário". É, na
verdade, um estrategista de Estado, o qual pretende ver aperfeiçoado por via do
próprio status quo, e não contrariamente ao status quo.
O contexto explica a sua
postura. Ao pensador florentino, profundo conhecedor da História, interessava
retornar à burocracia, buscava recuperar participação na vida pública de
Florença. Não faria assim sentido - ainda que isso fosse plausível para a época
- destruir a ordem estabelecida. Mas
esse aspecto não invalida de forma alguma suas ideias, tampouco as gravam de
ilegitimidade. O combate à tirania e a crença na liberdade dos povos emerge com
vigor da leitura do Livro I dos Discursos.
Por Nilson Mello
(Rio, Dezembro de 2016)
Bibliografia
[1] MAQUIAVEL, Niccoló. Discursos sobre a Primeira Década de Tito Lívio, São Paulo, Martins Fontes, 2007,
Apresentação.
[2] Obra cit., pág. 13
[3]
Obra cit., pág. 17
[4]
Obra cit., pág. 20
[5] Obra cit., pág. 21
[6] NOTA: Os três reis etruscos, de mesma linhagem, que
governaram Roma entre 600 a.C. e 509 a.C
[7] Obra cit., pág. 22
[8]
Obra cit.,pág. 24
[9]
Obra cit. pág. 29
[10]
Obra cit., pág. 32
[11]
Obra cit., pág. 33
[12]
Obra cit., pág. 40
[13]
Obra cit., pág. 41
[14]
Obra cit., pág. 45
[15]
Obra cit., pág. 48
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