sexta-feira, 12 de dezembro de 2014

Artigo

A verdade

O relatório final da Comissão Nacional da Verdade listando 377 agentes públicos acusados de crimes contra a humanidade – a grande maioria deles ocorrida durante a ditadura militar, anos 1964-1985 – e atestando que a tortura foi, naquele período, uma “política de Estado” nos impõe algumas reflexões em torno de quatro eixos.
O primeiro deles diz respeito à equiparação genérica dos personagens listados, levando em determinados casos a acusações superficiais e não individualizadas, o que, em parte, compromete a isenção e, portanto, a credibilidade do próprio relatório.
Apenas para ficar num exemplo: o ex-presidente Ernesto Geisel e o ex-ministro Golbery do Couto e Silva, artífice e executor, respectivamente, do processo de redemocratização não poderiam estar no mesmo patamar do carcereiro que, protegido pelo Estado de Exceção, deu vazão à sua natureza perversa na clandestinidade dos porões do regime.
Geisel e Golbery lideraram, no embate contra os radicais, a contenção dos excessos, como atestam autores independentes (entre os quais se destaca Elio Gaspari). Se contribuíram para estruturar o “regime”, foram decisivos no seu desmonte. Como colocar tudo num mesmo saco? Onde está o rigor indispensável a um documento que se pretende de valor histórico?
O segundo eixo de reflexão deve considerar o paralelo com os dias de hoje. A despeito da redemocratização e de Leis supervenientes que garantiram aos cidadãos amplas garantias em face do poder coercitivo do Estado, os abusos - tais como torturas de presos, prisões ilegais, condições carcerárias desumanas - seguem acontecendo.
Por conta dessas mazelas que o Estado Democrático de Direito pós-Constituição de 1988 ainda não foi capaz de estancar seria correto listar os presidentes e ministros do período que se seguiu à redemocratização por violação dos direitos humanos e colocá-los no mesmo hall do policial envolvido em umas das inúmeras chacinas que são rotina em nosso noticiário? Parece claro que não.
O terceiro eixo de reflexão reforça o segundo e o primeiro. Regimes autoritários como o que se instituiu num crescente a partir de 1964 são deploráveis e devem ser evitados – e o melhor caminho para tanto é a defesa incondicional das instituições democráticas. Porém, se o principal objetivo da Comissão Nacional da Verdade é o resgate da, digamos, verdade histórica, com a reconstrução dos acontecimentos, faltou a correta contextualização do período 1964-1985.
Aqueles que empunharam armas contra os governos militares que se estabeleceram a partir de 1964 lutaram não por uma democracia como a que temos hoje, mas para instituir um regime igualmente autoritário, apenas de orientação marxista, como também atestam autores isentos, como Jacob Gorender (“Combate nas Trevas”). Se o regime era ditatorial, os seus oponentes também o eram, com a diferença de seguir doutrina diversa. Neste aspecto, seria preciso analisar o período militar como efeito, e não apenas como causa.
Uma comissão da Verdade teria por obrigação considerar esse contexto, revelando a violência cometida pela “esquerda armada”. É claro que hoje, décadas após o fim da Guerra Fria e o colapso dos regimes comunistas, tudo isso parece ficção. Contudo, foi uma história bem real, e caberia à Comissão Nacional da Verdade resgatá-la com todas as suas contradições, se o objetivo era, de fato, a reconstrução da história.
A omissão pode ser explicada pelo quarto eixo da reflexão, que está relacionado aos nomes que compuseram a Comissão, não totalmente isentos porque de alguma forma associados ao lado que foi combatido pelo regime. Uma comissão formada por historiadores, cientistas políticos e juristas independentes teria, certamente, produzido resultado final mais rico e contextualizado.
A maior parte do relatório final da Comissão é, de fato, verdade. Mas é apenas parte da verdade. E, do ponto de vista histórico, a meia verdade pode ser quase tão nociva quanto a mentira.

Por Nilson Mello

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