A verdade
O relatório final da Comissão Nacional da Verdade listando 377 agentes
públicos acusados de crimes contra a humanidade – a grande maioria deles
ocorrida durante a ditadura militar, anos 1964-1985 – e atestando que a tortura
foi, naquele período, uma “política de Estado” nos impõe algumas reflexões em
torno de quatro eixos.
O primeiro deles diz respeito à equiparação genérica dos personagens
listados, levando em determinados casos a acusações superficiais e não
individualizadas, o que, em parte, compromete a isenção e, portanto, a
credibilidade do próprio relatório.
Apenas para ficar num exemplo: o ex-presidente Ernesto Geisel e o
ex-ministro Golbery do Couto e Silva, artífice e executor, respectivamente, do
processo de redemocratização não poderiam estar no mesmo patamar do carcereiro que,
protegido pelo Estado de Exceção, deu vazão à sua natureza perversa na clandestinidade
dos porões do regime.
Geisel e Golbery lideraram, no embate contra os radicais, a contenção
dos excessos, como atestam autores independentes (entre os quais se destaca
Elio Gaspari). Se contribuíram para estruturar o “regime”, foram decisivos no
seu desmonte. Como colocar tudo num mesmo saco? Onde está o rigor indispensável
a um documento que se pretende de valor histórico?
O segundo eixo de reflexão deve considerar o paralelo com os dias de
hoje. A despeito da redemocratização e de Leis supervenientes que garantiram
aos cidadãos amplas garantias em face do poder coercitivo do Estado, os abusos
- tais como torturas de presos, prisões ilegais, condições carcerárias
desumanas - seguem acontecendo.
Por conta dessas mazelas que o Estado Democrático de Direito
pós-Constituição de 1988 ainda não foi capaz de estancar seria correto listar
os presidentes e ministros do período que se seguiu à redemocratização por
violação dos direitos humanos e colocá-los no mesmo hall do policial envolvido em umas das inúmeras chacinas que são
rotina em nosso noticiário? Parece claro que não.
O terceiro eixo de reflexão reforça o segundo e o primeiro. Regimes
autoritários como o que se instituiu num crescente a partir de 1964 são
deploráveis e devem ser evitados – e o melhor caminho para tanto é a defesa
incondicional das instituições democráticas. Porém, se o principal objetivo da
Comissão Nacional da Verdade é o resgate da, digamos, verdade histórica, com a
reconstrução dos acontecimentos, faltou a correta contextualização do período
1964-1985.
Aqueles que empunharam armas contra os governos militares que se
estabeleceram a partir de 1964 lutaram não por uma democracia como a que temos
hoje, mas para instituir um regime igualmente autoritário, apenas de orientação
marxista, como também atestam autores isentos, como Jacob Gorender (“Combate
nas Trevas”). Se o regime era
ditatorial, os seus oponentes também o eram, com a diferença de seguir doutrina
diversa. Neste aspecto, seria preciso analisar o período militar como efeito, e
não apenas como causa.
Uma comissão da Verdade teria por obrigação considerar esse contexto,
revelando a violência cometida pela “esquerda armada”. É claro que hoje,
décadas após o fim da Guerra Fria e o colapso dos regimes comunistas, tudo isso
parece ficção. Contudo, foi uma história bem real, e caberia à Comissão
Nacional da Verdade resgatá-la com todas as suas contradições, se o objetivo
era, de fato, a reconstrução da história.
A omissão pode ser explicada pelo quarto eixo da reflexão, que está
relacionado aos nomes que compuseram a Comissão, não totalmente isentos porque
de alguma forma associados ao lado que foi combatido pelo regime. Uma comissão
formada por historiadores, cientistas políticos e juristas independentes teria,
certamente, produzido resultado final mais rico e contextualizado.
A maior parte do relatório final da Comissão é, de fato, verdade. Mas é
apenas parte da verdade. E, do ponto de vista histórico, a meia verdade pode
ser quase tão nociva quanto a mentira.
Por Nilson Mello
Perfeito!
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