sexta-feira, 15 de setembro de 2017

Artigo

O combate aos puxadinhos tributários


            A legislação tributária brasileira é uma sucessão de "puxadinhos jurídicos" por obra de nossos parlamentares, sempre prontos a  estabelecer nichos eleitorais (ou eleitoreiros), beneficiando poucos em detrimento da grande maioria dos contribuintes e dos verdadeiros interesses do país. Esta prática é uma das razões a explicar a elevadíssima carga tributária que temos hoje,  algo que varia entre 33% e 35% do PIB, de acordo com o critério  utilizado. Segundo a OCDE - Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico, o Brasil não apenas tem a maior carga (33,4%) da América Latina, como o seu percentual sobre o PIB é 50% maior do que o da média da região.
            Os projetos de lei visando a conceder isenções ou desonerações - que,  como sabemos, tiveram significativa e nefasta expansão em anos recentes - usam a alta carga tributária como justifica para a sua implementação, mas, no fundo, acabam contribuindo para a perpetuação de um sistema distorcido. Afinal, quanto maior for o número de concessões e isenções, menor será o espaço para uma redução programada do montante de tributos que pagamos. 
            Se o Estado já cede eletivamente, embora sem critério técnico consistente, beneficiando determinados setores econômicos (caso das desonerações) ou determinadas classes de contribuintes pessoas físicas (caso das isenções), não terá como estabelecer um sistema equilibrado, no qual possa haver espaço para uma mudança de modelo em que a ênfase da incidência se dê sobre a renda e não sobre a produção, como ocorre hoje - algo visivelmente mais juto, pois preserva o poder de comprar do contribuinte de menor renda.
            Há ainda um problema mais simples: com tantas isenções e, ao mesmo tempo, por outro lado, obrigações orçamentárias crescentes, não é possível pensar em uma redução linear da carga tributária, razão pela qual as propostas mais sérias para uma ampla reforma não são levadas adiante pelo Congresso. Hoje, parece haver consenso de que uma tributação muito pesada aumenta a evasão fiscal, a informalidade e a sonegação, e que com isso a economia toda perde. É, portanto, preciso tributar menos. Mas, a condição para tanto, é reduzir gastos, se possível eliminando despesas obrigatórias vinculadas, por meio de reformas constitucionais. Este é o primeiro passo. O segundo é pôr fim à cultura das isenções.
            Há uma profusão de propostas com este espírito tramitando no Senado e na Câmara que precisam ser combatidas. Um exemplo é o Projeto de Lei nº 2.511/2015, de autoria do Deputado Alexandre Baldy, que isenta do IPI computadores pessoais, smartphones, tablets, notebooks, modems, seus acessórios e afins, quando adquiridos por professores em exercício e estudantes matriculados em instituições públicas de ensino.

            O segmento em questão - computadores, smartphones, acessórios e afins. - já desfruta de benefício fiscal, uma vez que contemplado com a isenção do PIS e da Cofins (alíquotas zero) por força do Programa de Inclusão Digital -  a Lei 11.169, de 21 de novembro de 2005. Por meio da Medida Provisória 65, de 2014, as isenções do PIS da Cofins, incidentes sobre tais produtos, foram prorrogadas até 31 de dezembro de 2018. Vieram, porém, a ser revogadas pela Lei 13.241 (convertida da MP 690), de 13 de dezembro de 2015, que eliminou os benefícios previstos no Programa de Inclusão Digital. Contudo, na prática, as alíquotas zero das duas contribuições estão mantidas, por meio de decisão liminar concedida pelo Tribunal Regional Federal (TRF) da 1a Região, em março de 2016.
            A liminar foi obtida pela Associação Brasileira da Indústria Elétrica e Eletrônica (Abinee), em recurso de apelação contra decisão do juízo de primeira instância (8a Vara da Seção Judiciária do Distrito Federal), que havia extinguido, sem  julgamento de mérito, a ação (Processo número 0067002620154013400) movida pela entidade de classe visando a restabelecer a isenção. O juízo de primeira instância entendeu que a demanda deveria ter sido originada em ação civil pública, e não por meio de uma entidade de classe. O TRF deu provimento à apelação, determinando o retorno do processo para o julgamento de mérito no juízo de origem. No momento, aguarda-se a prolação da sentença de primeira instância. Mas por aí já se vê, também, a insegurança jurídica que tais isenções fomentam.
            A principal justificativa do parlamentar para a propositura de seu Projeto  de Lei não é, ao contrário do que se poderia imaginar, tendo em vista a espécie de tributo escolhido para a isenção (o imposto sobre produtos industrializados), o estímulo à indústria eletrônica, de computadores, de telefones inteligentes e afins, mas, sim,  a "popularização" de produtos eletrônicos entre professores e estudantes, dada a sua característica "essencial".
            Ocorre, contudo, que a pretendida disseminação desses produtos manufaturados já foi ela contemplada pela isenção do PIS e da Cofins, na forma como dispõe o referido Programa de Inclusão Digital, estabelecido, cabe ressaltar, exatamente com este propósito, qual seja, o de difundir o uso desses equipamentos entre a população, o que inclui, em virtude da sua própria relevância para o aprendizado, os professores e os estudantes. A isenção do PIS e da Cofins de que trata o referido Programa deveria ter terminado em 2015, mas fora prorrogada até 2018 pela MP 651.
            Se a Justiça entender, no julgamento do mérito movido pela Abinee, que o benefício deve ser mantido, o estímulo extrafiscal já estará devidamente contemplado. Se, por outro lado, entender que a isenção cumpriu o seu papel e deve ser eliminada, como pretende o governo federal com a edição da Lei número 13.241, de 2015, não haveria justificativa para se renovar na estruturação de novo benefício para o segmento em questão.
            O Projeto de Lei, portanto, parece nasce com propósito redundante ao de outro diploma legal, algo que não se compatibiliza com o instituto da isenção, que, por razões óbvias, deve obedecer a um rigoroso critério de seletividade e oportunidade, a fim de não colocar em risco a saúde do orçamento público.
            Tal entendimento ganha ênfase no momento em que o país está mergulhado em discussão acerca das prioridades orçamentárias, a ponto de encaminhar uma Reforma Previdenciária, de alto custo político e cuja justificativa é a necessidade premente de se limitar gastos públicos, em prol de um tão pretendido reequilíbrio fiscal.
            De forma responsável, não se pode falar aleatoriamente em isenção tributária, se o grande desafio que o Estado e a sociedade hoje enfrentam é justamente o flagrante descompasso entre despesas crescentes e receitas cadentes. Em outras palavras, não parece coerente que se reduzam receitas sucessivamente, mediante redução tributária, via isenções intempestivas, quando, ao mesmo tempo, se fala diuturnamente em cortar gastos, inclusive com  forte impacto social.
            Como  sabemos, a isenção é uma das formas de exclusão do crédito tributário, com previsão do art. 175 ao art. 179 do Código Tributário Nacional (CTN). Pela corrente doutrinária mais moderna, entende-se que, na isenção, não há incidência e, em consequência, não se instaura a relação jurídico-tributária. Neste sentido,  Lei isencional contém dispostivo que suspende a eficácia da norma tributária. Pela análise conceitual, percebemos o quão extraordinário é - ou deve ser - este instituto e, por decorrência,  o quão excepcional deve ser a sua adoção.
            De que forma o Estado poderá arcar com gastos sociais crescentes se, na mão inversa, cortam-lhe repetidamente a sua fonte de receita tributária por meio de isenções e outros benefícios, como as malfadas desonerações das folhas salariais? É a falência completa do Estado, por inanição financeira, o que se pretende? Como dito acima, o Programa de Inclusão Digital já conta com sua própria isenção, recentemente, revista pela Lei 13.241/2015. Não é cabível que já precise de novo incentivo - e num momento em que o erário, de joelhos, clama por novas receitas.
            O autor do projeto de lei não elenca dados estatísticos que apontem para uma queda vertiginosa da produção de aparelhos de computadores, de notebooks e, sobretudo, de smartphones, que justifique um estímulo extrafiscal à sua produção. Ao contrário, o que se tem notícia é que as vendas de eletrônicos, as de celulares com acesso à Internet, em especial, crescem mesmo em meio à séria crise econômica pela qual o país atravessa. Segundo a própria Abenee publicou recentemente nos jornais, a venda de eletrônicos e celulares cresceu 3,1% no primeiro semestre deste ano em relação ao mesmo período de2016. Assim sendo, tampouco se pode pretender "popularizar" o  que já é bastante popular.
            Está claro que autor do projeto tentou beneficiar, com a isenção, professores e alunos de instituições públicas de ensino. Contudo, em que pese ser justo valorizar o ensino público, porque ele é de fundamental  importância para o desenvolvimento econômico e social do país, não se extrai daí que seus alunos devam ter vantagens sobre os demais na compra de bens de consumo, independentemente da relevância desses para o seu aprendizado.
            Válido é dizer que os alunos de menor renda não são a maioria nas universidades públicas, embora isso possa valer para o ensino fundamental e médio. De qualquer forma, a compensação de eventuais assimetrias sociais entre alunos, bem como entre professores, da rede pública e privada, não pode ser alcançada por meio de uma isenção redundante, que, na verdade, pode gerar mais distorções no campo social, com decorrentes iniquidades, do que propriamente a pretendida justiça social.
            Saliente-se, neste particular, que os professores das universidades públicas federais percebem, em média, salários mais altos do que os docentes da rede privada, afora outras garantias. Onde fica a isonomia deste projeto? Em suma, faltam argumentos técnicos e estatísticos - e por consequência, também morais - para sustentar a proposta do deputado Alexandre Baldy.
            Quando nos posicionamos contrariamente a uma exclusão tributária, de forma pontual, como é o caso da isenção em tela, não significa que devemos ser contrários a uma programada redução da carga tributária no país, via uma bem planejada reforma tributária. Isso tampouco significa erguer um bloqueio conceitual e legal às iniciativas que visam a promover a maior eficiência do Estado, por meio do criterioso enxugamento da máquina pública. Que propostas com este teor são necessárias, até mesmo para garantir maior abrangência e perenidade dos indispensáveis programas de inclusão social, não restam dúvidas. Porém, nem sequer é esse o caso do presente Projeto de Lei nº 2.511/2015, haja vista que não é possível identificar nele com clareza a eficácia de seu caráter extrafiscsal. 
            As finanças públicas, principalmente o tributo e a despesa pública, passaram a constituir instrumento de intervenção do Estado no mundo econômico e social, como bem salienta Luiz Emygdio F. da Rosa Jr[1]. E isso decorre do alargamento da atividade financeira do Estado com o legítimo intuito de promover o progresso econômico e a justiça social.
             Mas, se por um lado o emprego do tributo como mecanismo extrafiscal decorre dessa compreensão hodierna do que devam ser as finanças públicas, por outro, isso não nos autoriza a lançar mão desse mecanismo de forma atabalhoada, indistintamente. Até porque, levado tal entendimento às últimas consequências teríamos, no final das contas, um sistema com gastos e despesas ilimitados - ainda que em nome de objetivos sociais elevados - e nenhuma receita para custeá-los. Definitivamente, o "Estado social" não é isso. Sua eficácia requer, antes de tudo, racionalidade econômica e razoabilidade por parte dos agentes públicos. Algo ausente de projetos como o de nº 2.511/2016.

Por Nilson Mello     




[1] ROSA JR., Luiz Emygdio F. da. Manual de Direito Tributário. 2a Edição, Renovar, Rio de Janeiro, 2012.

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