Breve biografia
Nascido em Amsterdã em 1632, Baruch (ou
Bento, ou Benedictus) Spinoza é considerado uma figura contraditória na
Filosofia, mas cuja obra ainda produz ressonância no pensamento ocidental. De
família judaica que havia fugido de Portugal por conta da perseguição aos
judeus, recebeu orientação católica na infância e educação judaica na adolescência.
Já adulto, suas ideias e escritos foram considerados ofensivos ao judaísmo e o
colocou em conflito com os rabinos de sua cidade. Sofreu o xarem (excomunhão judaica)
em 1656.
Comerciante e fabricante de lentes e
instrumentos óticos como lunetas, telescópios e microscópios, conquistou renome
em toda a Europa. Paralelamente, aprofundou
seus estudos, integrou o círculo de Colegiados de Amsterdã - que se dedicavam
ao exame do cartesianismo - e também construiu reputação como pensador, sempre sofrendo
forte oposição por seu ateísmo.
Racionalista, estudioso do hebraico e do latim,
foi o precursor daquilo que ficaria conhecido como "Criticismo Bíblico",
corrente do pensamento surgida durante o Iluminismo que procurava desmistificar
os textos sagrados. Na verdade, zombava de todas as religiões. Criticava o que
considerava crendices que turvam a verdadeira fé. Acreditava que a mente humana
só poderia ser curada de seus erros pela "ciência da natureza".
Spinoza define Deus "como a essência de
todos os modos de existência que consiste de atributos infinitos, dos quais
cada um é infinito em si mesmo". Devido à perseguição que sofrera, algumas
de suas obras, como Ética, só vieram
a ser publicadas após sua morte. Ainda em vida, publicou o Tratado Teológico-Político, sem indicação de autor, para evitar
represálias, e ainda Tratado Político,
Princípios da Filosofia de Descartes,
Compêndio gramatical da língua hebraica,
entre outros. Morreu aos 45 anos, de tuberculose.
A gênese da metafísica
Não seria
exagero dizer que, se Descartes procurou melhorar a Ciência, garantindo-lhe
melhor fundação e parâmetros mais seguros, Spinoza, cuja tradição cartesiana é por
todos conhecida, buscou aperfeiçoar o caráter dos seres humanos. A propósito, como
bem salienta Don Garrett, Descartes é o único filósofo mencionado em Ética. Ao tentar melhorar o caráter dos
indivíduos, Spinoza estava, sem dúvida alguma, pavimentando um caminho seguro
para a auto-compreensão e, a partir dela, para a auto-preservação dos homens, na
pretendida segurança de uma vida em sociedade. Podemos daí afirmar que os seus
propósitos éticos - expressos notadamente em Ética, mas também em outras obras - revelam um caráter hobbesiano, como não deixam de
reconhecer os seus comentaristas, entre os quais o próprio Garrett.
A exemplo do que Hobbes fizera, Spinoza concebia
os homens como parte da engrenagem da natureza, ou como mecanismos da natureza.
Motivados pelo referido sentimento de
auto-preservação, possível de ser alcançado graças ao emprego mútuo da razão, poderão
"melhorar o seu modo de vida". Contudo, se o objetivo de Hobbes é
mostrar que os seres humanos melhor equacionam os seus apetites por meio da
implantação de restrições políticas e sociais mútuas (que venham a regular suas
paixões), potencializando uma vida mais segura e agradável, o autor de Ética vai mais além e tenta mostrar que
os seres humanos podem alcançar um estilo de vida que transcenda em ampla
medida apetites transitórios e tenha
como consequências naturais o controle autônomo dessas paixões e a participação
na beatitude eterna.
Escrita sob
a forma que Descartes denominava como
"método sintético" de demonstração, ou "ordem
geométrica", nas próprias palavras de seu autor, Ética engloba Metafísica, Teologia e Epistemologia para dar
sustentação a conclusões eminentemente éticas. Spinoza entende (e isso
fica patente também pela Leitura
do Tratado Teológico-Político bem como pelo Curto Tratado sobre Deus, Homem e seu Bem-Estar) que não é possível
alcançar a virtude sem a superação, via desenvolvimento do intelecto, de três
obstáculos que se apresentam como constantes na existência humana: a
sobrevalorização da riqueza; a sobrevalorização da fama; e a sobrevalorização
do prazer sensual (sexo). Esta discussão acerca de sua teoria ética ganha
relevância nas Partes 3, 4 e 5 de Ética,
mais especificamente da Parte 4, sobre A Servidão Humana ou a Força dos Afetos.
Se na Parte 3 ele vai discorrer sobre a O Origem e a Natureza dos Afetos,
preparando o terreno para o que viria a seguir, e na Parte 5 tratará da Potência do Intelecto, retomando a
questão da busca da liberdade por meio da razão, na Parte 4 Spinoza busca
derivar sua teoria ética de um entendimento da Natureza em geral, assim como da
natureza psicológica humana especificamente, associando uma coisa a outra, ou
seja, a mente humana como parte integrante da natureza. É claro que esta teoria
naturalista não é feita sem riscos ou equívocos, ou mesmo com alguns postulados
questionáveis, como veremos mais adiante pelas críticas que lhe são opostas por
Della Rocca. Contudo, é inegável o vigor com que estabelece esta relação de
dependência, com base no único axioma que norteia a Parte 4 da obra:
"Não
existe, na natureza das coisas, nenhuma coisa singular relativamente à qual não
exista outra mais potente e mais forte. Dada
uma coisa qualquer, existe uma outra, mais potente, pela qual a primeira pode
ser destruída".
A servidão é, como Spinoza deixa bem claro logo
de início, a impotência humana para regular e refrear os afetos, posto que o
homem submetido aos afetos não está sob o seu próprio comando. Mais adiante,
lembra que a natureza não age em função de um fim, pois o ente eterno e
infinito que chamamos Deus (ou Natureza)
age apenas pela própria necessidade pela qual existe. Ele não existe em função
de qualquer fim, e exatamente por isso também
não poderia agir desta maneira. Como não tem qualquer fim em função do
qual existir, por óbvio, pela teoria de Spinoza, também não teria qualquer
princípio ou fim em função do qual agir.
Adverte que a natureza não fracassa ou erra,
pois isto é uma mera ficção. Quando nos referimos às perfeições ou
imperfeições, em realidade, estamos nos referindo apenas ao modo de pensar, ou
seja, nos referindo a noções que temos ao comparar os hábitos distintos de
indivíduos do mesmo gênero ou da mesma espécie. Como salienta, uma mesma coisa
(ou indivíduo) pode ser boa ou má ao mesmo tempo. Portanto, aquilo que Spinoza
compreende por Bem (e que anuncia
como tal em Ética) é aquilo que
estabelecemos como meio para chegar a um modelo da natureza humana. Por
consequência, o Mal será aquilo que
nos impede de chegar a este modelo.
Estando a virtude na essência do homem - e
quanto a isso Spinoza não deixa a menor dúvida -, o fim que o homem estabelece
para si e, por decorrência, para os demais que vivem com ele em sociedade será
aquilo por cuja a causa fazemos alguma coisa, ou seja, o nosso
"apetite". Virtude e potência têm, neste sentido, a mesma definição,
ou se confundem na mesma coisa: a virtude, enquanto referida ao homem, é a sua
própria natureza (essência), na medida em que ele tem o poder de realizar
coisas que "podem ser compreendidas exclusivamente por meio das leis de
sua natureza".
Contudo, este homem virtuoso de Spinoza
estará sempre submetido a paixões, que, por sua vez, também seguem a ordem
natural da natureza, não havendo assim, motivo para que nos surpreendamos com o
que é passional no indivíduo. O perigo real é quando a força de uma paixão ou
de um afeto pode superar as outras ações do homem, e mesmo a sua potência de
agir para que possa perseverar em sua existência - um afeto fixado de forma
obstinada. Porque a força e a expansão de qualquer paixão, bem como a sua
perseverança em existir são definidas pela sua potência, considerada em
comparação com a nossa. Na busca do que é ético o homem não deve, portanto, se permitir
que esta força supere a sua potência de existir - eis o desafio.
Se tomamos consciência do que fazemos,
percebemos que o conhecimento do bem e do mal
nada mais é do que a expressão ou representação do AFETO de alegria e
tristeza. Emerge, assim, na teoria ética spinosiana o conhecimento como a chave
para uma vida melhor. Adverte Spinoza na Proposição 14 da Parte 4 de Ética que o conhecimento verdadeiro do bem
e do mal poderá refreá-lo apenas enquanto considerado como afeto. A verdade
está na própria natureza do homem. O conhecimento pode refrear o afeto, se
também for tomado enquanto tal, porque desta forma será expressão da natureza
essencial do homem.
Bem, aqui é preciso lançar o olhar para um
ponto central na obra de Spinoza, que é a relação de substância/modo entre Deus
e as coisas individuais. Esta relação está expressa pelo monismo:
"Tudo o que existe, existe em Deus, e
sem Deus, nada pode existir nem ser concebido".
No sentido cartesiano, os seres humanos não
são propriamente distintos, porque a verdadeira distinção haveria somente em substâncias
distintas, mas nós somos parte de uma mesma natureza, de uma mesma substância
com a sua consequente extensão. Os seres humanos guardam, assim, uma íntima
relação com outras coisas dentro da natureza.O que equivale a dizer que toda
ação humana, a rigor, nada mais é do que uma manifestação da natureza, do que
decorre que não há possibilidade de livre-arbítrio, ou seja, a liberdade
entendida como ausência de determinação causal de vontade. Se decorre da natureza está claro que implica
uma "participação" efetiva, direta, de Deus. Também é importante
frisar que em sua doutrina o necessitarismo (expresso em 1p29 de Ética) ganha relevância: "Nada existe,
na natureza das coisas, que seja contingente, uma vez que tudo é determinado
pela necessidade da natureza divina".
Vejamos o que diz Garrett, in verbis, sobre a questão:
"Essa
doutrina exclui a possibilidade daquilo que Spinoza chama de livre-arbítrio, ajuda
a determinar o caráter e a estrutura do conhecimento e dá a perspectiva de
consolação do infortúnio".
Há modos de extensão e correspondentes modos de pensamento, e isso implica a
identidade de mente com o corpo humano, bem como a identidade tanto de
cognições quanto de "afetos" (emoções) em função de possíveis ocorrências
temporais. O escopo de uma ética, expresso em Ética, seria o de uma
doutrina voltada para propugnar a maneira correta de se viver. Para tanto, é
preciso reconhecer a distinção entre os diferentes tipos de conhecimento, que
seria a experiência (experientia vaga), a razão (ratio) e a intuição (scientia intuitiva),
bem como proceder à distinção das categorias cognitivas. Da mesma forma que há
uma identidade entre mente e corpo, há também identidade de cognições e de
afetos. Emerge, sem dúvida, desta visão, um conflito entre mente e corpo, o
qual uma doutrina ética poderá ajudar a pacificar.
Peculiar fundamento da teoria ética de
Spinoza, seu ponto de partida, é a teoria do esforço (conatus), expressa na Proposição 6 da Terceira Parte de Ética,
segunda a qual, "cada coisa esforça-se, tanto quanto está em si, por perseverar
em seu ser". E "o esforço para esta coisa preservar-se em seu ser
nada mais é do que a sua essência atual", conforme propugna a Proposição 7
da Terceira Parte. O desejo é o esforço, porque envolve tanto a mente quanto o
corpo, e ao mesmo tempo a consciência do próprio desejo.
A tendência à auto-preservação torna-se
assim, a priori, como lembra Garrett, um aspecto definidor da natureza de
todas as coisas individuais, sendo, contudo, que coisas individuais da natureza
(homens inclusos, por óbvio) não podem ser individuadas
umas das outras a não ser por seus atributos da extensão, por aproximações finitas, posto que há apenas uma Substância. As diferenças advém, assim,
das proporções de movimento e repouso decorrentes do esforço de suas essências
em perseverar em si. Vale dizer que o atributo do pensamento também "gera"
ideias atinentes ao movimento/ação de
persistir em si.
Intelecto difere de imaginação. As coisas
singulares exprimem os atributos de Deus, a Sua potência. Para Spinoza, os afetos são estados mentais
intencionais. Ele reconhece três Afetos básicos, que são o Desejo, a Alegria e
a Tristeza. Os outros afetos existentes
seriam versões específicas desses três primordiais. O amor seria, por exemplo,
um tipo específico de alegria decorrente de uma ideia e uma causa externas, da
mesma forma que o ódio poderia ser um tipo específico de tristeza, aqui também
vinculada a uma causa externa. Em toda a Parte 3 de Ética são descritos muitos outros afetos, variantes dos três
básicos. Vale dizer que os afetos são individuados estritamente por seu
conteúdo cognitivo. Um afeto danoso, que deve ser combativo pela razão, implica
crenças (e dessas atos) cujos efeitos podem ser destrutivos. Portanto, os
princípios constitutivos dos afetos têm importantes consequências e injunções
práticas e éticas. O desejo (cupiditas) é, ao fim de tudo, o esforço
(conatus), uma vez que envolve tanto
a mente quanto o corpo, além da própria consciência do desejo. O corpo humano é
conduzido pela mente. A liberdade
pressupõe a consciência da ação. Não podemos, lembra Spinoza, pela decisão da
mente, fazer qualquer coisa sem que dela tenhamos uma lembrança prévia.
As ideias inadequadas produzem as paixões,
enquanto as adequadas produzem ações - estas destinadas ao esforço de
perseverar em si. Na medida que uma coisa pode destruir outra coisa, elas são
necessariamente de natureza contrária, não podendo, por conseguinte, estar no
mesmo sujeito. Como referido no início
deste texto, a servidão humana - objeto da Parte 4 de Ética - nada mais é do que a impotência do indivíduo para regular
os seus afetos e com isso evitar suas consequências danosas. Adverte Spinoza
que não desejamos as coisas porque elas são boas,
nem a evitamos porque elas são más,
como o senso comum nos leva a acreditar. Pois, conforme ele adverte, os
conceitos de "bom" e "mau" são aplicados às coisas de
acordo com a maneira que elas nos afetam, se com apetite ou aversão,
respectivamente.
Por bem,
ensina Spinoza, devemos compreender aquilo que sabemos, com certeza, que nos é
útil; por mal, aquilo que sabemos, certamente, que nos impede de desfrutar de
algum bem. Então uma coisa é útil
para o ser humano se o ajuda a se aproximar de um modelo de natureza
preconizado pela ética - no caso, a ética propugnada por Spinoza. A virtude,
por sua vez, tem uma identidade com a
potência, nesta acepção de Spinoza. Porque a virtude, enquanto referida ao
homem, é a sua própria essência ou natureza, à medida que ele tem o poder de
realizar coisas que podem ser compreendidas exclusivamente por meio das leis de
sua natureza. A virtude como própria essência do homem.
Mas por que então exatamente os homens não
observam os preceitos da razão, tornando-se impotentes e sujeitando-se à
servidão? Para Spinoza isso ocorre porque os homens, como parte finita da
natureza, teriam um estoque limitado de potência, estando, também, por esta
razão sujeitos a forças externas igualmente ou até mais potentes do que a sua
própria natureza. Aqui percebemos também a rejeição a ideia do live-arbítrio.
Os homens, em suma, estão sujeitos a conflitos, porque nem sempre são capazes
de seguir apenas os ditames da razão. São as paixões - oriundas de causas
externas - que impedem os homens de avaliar onde está o seu verdadeiro bem a ser perseguido e o que lhe é verdadeiramente
útil. As paixões são afetos as quais não têm origem e causa exclusivamente no
homem, e que por esta razão podem desviá-lo de seu bem-estar.
Dentre esses afetos danosos, estão os que
geram tristeza e por isso diminuem a capacidade de ação do indivíduo. Ou mesmo
podem ser afetos de alegria, mas distorcidos ou assimétricos, porque aumentam a
capacidade de ação do indivíduo numa esfera específica, diminuindo a capacidade
de discernimento do indivíduo para pensar e perceber coisas que são do real
interesse de seu bem-estar. Alguns afetos são apetites que desviam a ação do
indivíduo para a necessária auto-preservação. Mesmo quando sabe que algo lhe é
útil, o homem está sujeito a se desviar do caminho por conta de paixões. E isso
ocorre porque todo afeto é também ao mesmo tempo uma ideia ou representação do
corpo do indivíduo, e como tal sujeitos também a corpos externos. Todo afeto,
seja bom ou danoso, poderá ter como contrapartida afetos opostos, que garantam
até a sua anulação ou restrição.
A razão vai sempre nos indicar quais afetos
estão em consonância com as próprias regras da racionalidade humana. E a razão
jamais exigirá algo que seja contrário à natureza, levando cada um a amar a si
próprio, buscando primordialmente o que lhe seja perfeitamente útil (útil ao
seu bem-estar). É o que se depreende da Leitura da Demonstração da Proposição
18 da Parte 4 de Ética:
"O
desejo é a própria essência do homem, isto é, o esforço pelo qual o homem se esforça
[grifo
nosso] por perseverar em seu ser. Por isso, o desejo que surge da alegria é
estimulado ou aumentado pelo próprio afeto da alegria. Em troca, o afeto que
surge da tristeza, é diminuído ou refreado pelo próprio afeto da tristeza.
(...) Como a razão não exige nada que seja contra a natureza, ela exige que
cada qual ame a si próprio; que busque o que lhe seja útil, mas efetivamente
útil; que deseje tudo aquilo que, efetivamente conduza o homem a uma maior
perfeição; e, mais geralmente, que cada qual se esforce por conservar, tanto
quanto está em si, o seu ser. Tudo isso é tão necessariamente verdadeiro quanto
é verdadeiro que o todo é maior que qualquer uma de suas partes".
Logo em seguida, na mesma Demonstração da
Proposição 18, Spinoza expõe de forma derivada, porém, clara e
contundentemente, a sua teoria
naturalista ao afirmar que o homem está em ligação direta com os outros homens,
do que decorre que todas as coisas que existem na natureza estão também em
ligação. Todas as coisas - todos os seres - são em verdade a extensão de uma só
substância. O homem agindo de forma útil para si estará sendo útil também para
os demais. Vejamos:
"(...) os homens não podem aspirar nada
que seja mais vantajoso para conservar o seu ser do que estarem, todos, em
concordância em tudo, de maneira que as mentes e os corpos de todos componham
como que uma só mente e um só corpo, e que todos, em conjunto, se esforcem,
tanto quanto possam, por conservar o seu ser, e que busquem, juntos, o que é de
utilidade comum para todos".
O raciocínio se desdobra, na sequência, para
indicar que os homens que se permitem ser regidos pela razão - aqueles que
buscam, "sob a condução da razão", aquilo que lhes é útil - nada
apetecem para si que não desejem também para os outros e, por isso homens justos e confiáveis para
viver em segurança na sociedade, e em prol de um desenvolvimento comum da
humanidade.
Em busca da auto-preservação o homem deverá
então prospectar e preservar a sua virtude. A sua potência - e, por
consequência, a sua virtude - é simplesmente a capacidade de se esforçar em
direção àquilo que é útil a ele e, por desdobramento, também aos demais. E
quanto mais cada um busca o que é útil, esforçando neste sentido para
conservar-se em seu ser, tanto mais ele será dotado de virtude, como num
círculo virtuoso que regeria a sua existência. De modo contrário, tornar-se-á
impotente na medida em que se descuidar de conservar o seu ser, como se
depreende da Proposição 20 da Parte 4 de
Ética. Deus é absolutamente infinito
e conhecê-lo equivale a encontrar a
virtude. Por outro lado, estar sujeito às paixões equivale a negar a sua
própria potência.
A razão e a sua busca tendo como fim a
preservação em si que cada qual deve empreender e a qual poderá ser útil a
todos fazem com que a comunidade de seres humanos possa compor um só corpo e
uma só mente. É esta compreensão que pode nos levar a uma vida harmoniosa. E o homem
é livre para alcançá-la, e esta liberdade decorre de sua natureza, que o
determina a agir neste sentido. Num estado político, o homem poderá ser mais
livre - até porque terá mais segurança para se auto-preservar - respeitando uma
Lei comum, conforme expressa a Proposição 73 da Parte 4 de Ética, exemplificando o claro caráter hobbesiano referido de
início.
Vimos, portanto, que em Spinoza os
princípios da natureza governam a mente. E, mais do que isso, que a natureza é
uma só, sempre a mesma, ou seja, a mesma natureza está presente nas diferentes
mentes como extensão. Assim sendo, as
leis e regras da natureza são idênticas em todas as partes, não devendo haver
mais do que uma maneira de compreender a natureza das coisas. As leis que
governam os estados psicológicos dos homens também são leis ou regras de
instâncias mais gerais que operam na natureza. Vemos que Spinoza assume um
pampsiquismo ao induzir, a partir de sua teoria, sob influência cartesiana, que
todas as coisas também esforçam-se em si para perseverar em seu ser.
Conforme ressaltado de início, Della Rocca
faz ressalvas a teoria naturalista estruturada por Spinoza, apontando bases que
considera falsas ou o que chama de "equívocos inferenciais". Lembra
que (seguindo a teoria naturalista), mesmo que cada coisa se esforce para
persistir, disso não decorre que cada coisa deva esforçar-se para impedir uma
diminuição em sua potência de agir e, de fato, aumentar a sua potência de agir.
Então, afirma Della Rocca, as afirmações adicionais de Spinoza sobre o
esforçar-se "não somente são falsas, como também não parecem decorrer da
base (falsa) sobre a qual ele as faz".
De acordo com Della Rocca, Spinoza sobrepôs
uma proposição plausível com a afirmação falsa de que o estado de uma coisa em
dado momento não basta para que ela fracasse em fazer aumentar a sua potência.
Neste caso, o autor de Ética, segundo
o seu crítico, teria sobreposto as potências causais das essências das coisas
com as potências causais - estas mais abrangentes - das próprias coisas, incorrendo
nos equívocos inferenciais.
É certo que Spinoza entende que cada coisa
em si mesma tem um esforço para se preservar a si própria em seu estado e para
passar a um estado melhor. Mas, já que cada coisa esforça-se desta maneira,
segue-se diretamente que ela também se esforça para impedir qualquer diminuição
em sua potência de agir. Isso significaria que se ficar por si mesma, uma coisa
não passará por uma diminuição de sua potência de agir. Contudo, pode-se
identificar, seguindo a teoria do próprio Spinoza, um sentido em uma coisa
esforçar-se para se autodestruir ou para eliminar completamente a sua potência
de agir. E aí surge a incongruência. Completa Della Rocca:
"(...) parece não haver razão alguma
pela qual também não podemos ver sentido em ela [a coisa] não conseguir
esforçar-se para impedir uma diminuição parcial em sua potência de agir ou em
ela simplesmente não conseguir esforçar-se para aumentar a sua potência de agir
(...). [além do mais] uma coisa pode perseverar em seu ser - isto é, continuar
a existir -, mesmo que sua potência de agir não aumente e mesmo que sua
potência de agir diminua (enquanto esta diminuição não chegar a zero)".
Ora, já que a persistência é compatível com
uma falta de aumento e também com uma diminuição na potência de agir do
indivíduo, somos levados a acreditar, conclui Della Rocca, que o esforçar-se
para persistir também é compatível com o não conseguir esforçar-se para aumentar a potência de agir de alguém e
também com o não conseguir impedir uma diminuição nesta mesma potência de agir.
Mais além, dentro da mesma crítica: mesmo que cada coisa se esforce para
persistir, disso não decorre que cada coisa deva esforçar-se para impedir uma
diminuição em sua potência de agir e, de fato, aumentar a sua potência de
agir.
Conclui Della Rocca, de forma categórica:
"as afirmações adicionais de Spinoza sobre o esforçar-se não apenas são
falsas, como também não parecem decorrer da base sobre a qual ele as faz".
Além disso, ao contrário do que afirma Spinoza, é certo que existem seres
humanos que não aumentam a sua potência de agir. Até porque há muitas coisas
que aumentariam a potência de agir de um indivíduo, mas, como ele não tem
ciência delas, ele simplesmente não age para que elas ocorram.
Outra
crítica a Spinoza diz respeito ao seu primado do imediato, que associa a adoção
de determinada ação no presente não a um benefício futuro, mas sim à satisfação
que isso implicaria, no presente, de imaginar um benefício futuro. Ou uma
dor/tristeza que poderia ser evitada. Com isso ele quer dizer que os resultados
mais distantes não podem, por si mesmos, ter impacto sobre nossos desejos.
Spinoza entende que ao anteciparmos um sentimento
(tristeza ou alegria) e reagirmos a ele, a nossa ação é determinada pelo
presente, não pelo futuro. Isto porque ainda que este sentimento nos afete de
forma mais tênue (por exemplo, uma previsão de dor, que é uma dor antecipada, é
menos aguda do que a própria dor que se quer evitar), é, na verdade, em relação
ao presente (o sentimento no momento da decisão, não o sentimento a se ter no
futuro) que estamos tomando uma atitude e agindo. O primado do imediato: a
antecipação da dor é, por si, dolorosa, o que leva o homem a uma ação
preventiva. Mas, segundo alguns de seus críticos, o autor de Ética não pavimenta pistas seguras
quanto a como afastar as dúvidas em relação a esta questão.
Da mesma forma, Spinoza nos nega qualquer
possibilidade de desejo altruísta, uma vez que o altruísmo ergue-se como uma
ameaça ao seu naturalismo. Afirma Spinoza, em Proposição 25 de Ética: "ninguém se esforça por
conservar o seu ser por causa de outra coisa". Por que pensa ele desta
maneira? Porque entende que o esforço assim denominado altruísta, no fundo,
existe apenas para que possamos nos
livrar de um sentimento que nos causa tristeza ou repulsa. Quando vemos, por
exemplo, uma criança abandonada na rua e lhe damos abrigo ou quando
providenciamos a remoção de um entulho de lixo que obstrui a nossa rua,
queremos afastar um sentimento desagradável, que nos afeta negativamente (que
gera tristeza). Assim, as ações estão, na teoria ética de Spinoza, centradas em
nosso próprio benefício, e de forma imediata.
Comentários finais
Se não há
nada de contingente na natureza, o livre arbítrio nada mais é do que uma
impossibilidade. Mas, se temos um determinismo, por conta de estarmos
irremediavelmente atrelados à natureza, em Spinoza ele não chega a ganhar um caráter
fatalista. Nossos atos dependem de uma providência Divina, isto é certo em
Spinoza, porém, é justamente isso que
nos dá liberdade. Tudo o que em nós existe e se manifesta faz parte da
natureza. Como o homem é levado, pela razão, a buscar aquilo que está a serviço
de sua conservação, a alma tende a uma elevação, a um progresso, se assim
podemos dizer.
O corpo determina as paixões - verdadeiras
armadilhas para a elevação - não por si mesmo, mas enquanto é objeto das
percepções da alma. Daí decorre que nossa tendência a perseverarmos na nossa
existência e a nos conservarmos sofra as influências das modificações (impactos
de outras coisas) sofridas por nosso corpo. Por outro lado, o que a alma sempre
procura é o que somente aquilo que pode reafirmar a sua potência de agir.
O estado de liberdade dependerá de causas
limitadas (não do livre arbítrio). É pela busca da virtude que o homem poderá
progredir dentro do fim de perseverar em sua existência, de se conservar em si.
Pois é desta forma que conseguirá livrar-se das más afecções, que são as
paixões. Extrapolando para a teoria política, recorremos a Delbos para, em
linha com Spinoza, dizer que o direito de cada um mede-se por sua potência, no
estado social:
"(...) Constituído pelo consentimento
comum, o direito de cada um é definido pelo poder soberano, e a força pública [coerção], posta ao serviço do direito
assim decretado, impede cada um de se fazer juiz segundo sua paixão e
comportar-se consequentemente".
Em suma, o homem que é conduzido pela razão
é mais livre na cidade, como salienta Spinoza na Proposição 73 da Parte 3 de Ética, onde vive segundo as leis comuns,
do que na solidão, onde obedece a si mesmo. A despeito das críticas que podem
ser feitas ao sistema estruturado por Spinoza, como inconsistências apontadas por Della Rocca, é
preciso reconhecer a intuição original de Spinoza. Seus postulados persistem
vigorosos na Filosofia, como o que diz que Deus é a causa imanente dos homens
que fez.
Por Nilson Mello
BIBLIOGRAFIA
>
DELBOS, Victor. O Espinosismo. São
Paulo (SP), Discurso Editorial, 2002.
>
GARRET, Don. Spinoza. Aparecida (SP),
Editora Ideias e Tempo, 2011.
>
MORENTE, Manuel Garcia. Fundamentos de
Filosofia. São Paulo (SP), 1966.
>
SPINOZA, Baruch. Tratado
Teológico-Político. São Paulo (SP), Perspectiva, 2014.
>
SPINOZA, Baruch. Ética. Belo
Horizonte (BH), Autêntica Editora, 2009.
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