O DNA das tragédias
A compulsão
brasileira para tomar medidas preventivas e agir com o rigor que deveria fazer
parte da rotina depois que os desastres que se pretendia evitar já aconteceram
é um traço macabro de nosso comportamento coletivo. Parafraseando o ministro
Joaquim Barbosa, trata-se de uma “tara antropológica”.
O fenômeno volta a se
manifestar agora de forma intensa por conta do incêndio criminoso (o descaso
nos autoriza a empregar o termo, antes mesmo de qualquer pronunciamento
judicial) que matou cerca de 240 pessoas, a grande maioria jovens estudantes na
flor da idade, numa casa noturna da cidade gaúcha de Santa Maria.
Da noite para o dia,
governadores, prefeitos, comandantes dos Corpos de Bombeiros e autoridades
ligadas aos órgãos de fiscalização Brasil afora se mobilizaram de forma frenética
para cumprir as obrigações que são de sua competência, mas que vinham sendo
negligenciadas. Uma omissão perversa relacionada à tara mencionada acima.
A mobilização apenas veio
confirmar o que todos nós já sabíamos, por conhecedores que somos de nossa,
digamos, natureza psíquico-social, e pela simples observação dos locais que
frequentamos em nosso dia a dia: a grande maioria dos teatros, cinemas, casas
de shows e outros estabelecimentos do gênero no país funciona de forma irregular,
ignorando medidas básicas de segurança, embora obrigatórias.
Bingo! A diligência
pós-tragédia sempre vem acompanhada de altas doses de hipocrisia e cinismo. Os
que impõem fiscalização rigorosa e tolerância zero agora são justamente aqueles
que vinham agindo de forma negligente e irresponsável.
Em meio ao choque, ao clamor
público e à correria das autoridades para tentar recuperar o tempo perdido, há
sempre a esperança – muito tênue, é verdade – de que agora as coisas entrem nos
eixos, de que as regras sejam cumpridas e a fiscalização funcione a contento.
Mas o fato é que a lista de frustrações, muito extensa, não deixa margem para
muito otimismo.
A negligência e a
irresponsabilidade criminosa vêm potencializando tragédias a cada ano no
Brasil, sem que se perceba uma mudança de mentalidade que conduza à adoção de
um conjunto de medidas preventivas consistentes e perenes. Os desmoronamentos e
enchentes que acontecem a cada verão no Rio de Janeiro são um exemplo do
descaso.
Pior do que o despreparo
para lidar com os desastres naturais, cujas conseqüências poderiam ser
minimizadas se houvesse seriedade e planejamento, é fomentar tragédias por meio
da omissão e do desdém no que toca o cumprimento de regras. Foi o que aconteceu
em Santa Maria. Foi o que aconteceu no desabamento de três prédios no Centro do
Rio há um ano.
Aliás, o Rio é a cidade das
tragédias anunciadas. Neste momento um viaduto de intenso movimento (Elevado do
Joá) está prestes a ruir em decorrência da falta de manutenção.
Na sofreguidão pós-desastre
que geralmente acomete nossas autoridades, como ocorre agora, surgem os
exageros, representados pela edição de normas de difícil cumprimento e
exigências acima do razoável. Como se o problema estivesse nas regras e não na
falta de cumprimento das regras. Desnecessário lembrar que exigências inexequiveis
geram (mais) corrupção – e não cumprem seu papel preventivo.
A propósito, Bombeiros e
Prefeitura cumpriram o seu papel preventivo em Santa Maria? Como a boate Kiss
estava funcionando sem alvará e com evidentes problemas de segurança? São as
normas ou são os agentes públicos que estão errados? Deu-se um jeitinho. O
jeitinho brasileiro que tudo tem a ver com essas tragédias. É preciso que todos
nós passemos a cumprir regras, independentemente de fiscalização. Até porque
não é possível ter um fiscal em cada prédio, um bombeiro em cada esquina.
Por Nilson Mello
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