sexta-feira, 17 de agosto de 2012

Artigo

                                   Joaquim Barbosa e os primeiros votos



Montesquieu e as suscetibilidades no STF

Um aspecto aparentemente acessório e lateral vem sendo indiretamente reiterado nas sessões de julgamento do “mensalão” no Supremo Tribunal Federal. Em cada sustentação oral e intervenção dos ministros, e mesmo nos apartes dos representantes dos réus, o caráter de independência do Judiciário em relação aos outros Poderes, sobretudo o Executivo, sai revigorado.
A observação pode até parecer banal, já que o Brasil é uma democracia, e tendo em vista que a separação dos Poderes é um instituto inerente aos regimes democráticos liberais. Contudo, “democracias” podem existir na aparência sem se confirmar na essência. Exemplos de dissimulação institucional são recorrentes na América Latina, onde a ideologia tem fomentado com indiscutível êxito pseudo-regimes democráticos nos quais, na prática, a Justiça é encapsulada pelo Executivo, obedecendo aos seus comandos. Em muitos aspectos, por sinal, o Brasil também segue sendo democracia de aparência apenas.
Mas esse não é o caso da atuação do Judiciário e sua independência em relação ao Executivo. Como ensina Norberto Bobbio, deve-se ter em mente que o sentido da teoria da separação dos Poderes é a concretização de um instrumento de defesa da liberdade contra os abusos que possam ser cometidos pela máquina pública. Montesquieu, que concebeu o princípio no século XVIII dada a sua aversão ao absolutismo, o explicava como um sistema de freios cujo objetivo seria garantir equilíbrio à administração pública e prevenir que alguma “potência” (o rei, o chefe de Estado, o chefe de governo) concentre tanto poder que esvazie o interesse da sociedade. Um “não” aos abusos.
Por outro lado, Friedrich Hegel, já no século XIX, reconhecia a importância do princípio, mas entendia o Judiciário como mera instância funcional, não um Poder genuíno como o Legislativo e o Executivo. É por isso sintomático que os países latino-americanos aludidos acima sejam governados por dirigentes e partidos cuja orientação ideológica sofreu forte influência do idealismo de Hegel. No caso, não há por que observar distinções e independência, pois o que importa é construir uma nova ordem.
Mas filosofia política e jurídica à parte, o fato é que se há ou houve recentemente no país o intuito de colocar o Judiciário a reboque do Executivo, o projeto por enquanto fracassou. Se a intervenção alcança de forma aleatória instâncias inferiores, não chega à cúpula do Poder. E, na verdade, o processo do “mensalão”, e não apenas o julgamento em si, mostrou que outras esferas da administração pública, mesmo no âmbito do Executivo, preservam a autonomia indispensável à sua atuação. Ressalte-se que o processo e o julgamento não seriam possíveis sem o trabalho independente da Polícia Federal e da procuradoria Geral da Rep ública. Os impulsos intervencionistas e a partidarização da máquina são visíveis no Brasil, mas os efeitos, ainda limitados.
Pois bem, nesta quinta-feira (16/08) o julgamento entrou na fase de leitura de votos pelo ministro relator, que pediu a condenação do deputado João Paulo Cunha, ex-presidente da Câmara e candidato a prefeito de Osasco (SP),por corrupção passiva, peculato e lavagem de dinheiro; e dos empresários Marcos Valério, Cristiano Melo Paz e Ramon Hollerbach, por corrupção ativa e peculato. Um dado prosaico: perto dos altos valores envolvidos no esquema, os módicos R$ 50 mil que João Paulo Cunha teria embolsado (ainda não foi condenado pelo colegiado) para ajeitar facilidades para as agências de Valério, Paz e Hollerbach ganha ares de crime de “bagatela” e dá a dimensão do que o deputado é (confirmando-se a condenação) como homem público. 
Com 37 réus ainda em julgamento, cerca de 1.050 votos serão lidos pelos 11 ministros do STF até a conclusão dos trabalhos, se consideradas todas as imputações. Espera-se apenas que deixem suscetibilidades e bate-bocas de lado em respeito à instituição autônoma e independente a que pertencem. Pois as recorrentes exasperações do ministro Joaquim Barbosa no plenário da Corte são incompatíveis com a grandeza do trabalho que arduamente vem realizando, com visível sacrifício físico – o que em parte até explica a sua eventual irritação, mas não a justifica.

Por Nilson Mello

(PS: Ler no comentário da última segunda-feira neste Blog, abaixo, texto sobre Milton Friedman e a crise global))

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