quinta-feira, 31 de julho de 2025

Justiça Fiscal e Reforma Tribuária

 


Nilson Vieira Ferreira de Mello Jr.*

          Não apenas entre tributaristas e economistas, mas entre cientistas sociais de forma geral, guardadas as devidas exceções, há consenso de que a justiça tributária – ou justiça fiscal – só pode ser alcançada por meio do desigual tratamento dado pelo Estado a contribuintes em condições desiguais. Assim, em termos tributários, nada é mais injusto que tratar igualmente cidadãos com níveis de renda distintos.

          Deste corolário decorre o respeito à capacidade contributiva, princípio fundamental (§ 1º do art. 145, da Constituição) que impede que o Estado, no seu inafastável dever de tributar, onere o cidadão além de suas possibilidades financeiras, comprometendo o mínimo necessário à sua subsistência e a de sua família.

Não é demais lembrar que o dever do Estado de tributar é inafastável porque de sua atuação fiscal depende, em última análise, a própria organização da vida em sociedade. Neste sentido, por Estado devemos entender um ordenamento jurídico destinado a exercer o poder soberano sobre um determinado território, ao qual se subordina um grupo de indivíduos.

Em estados democráticos, o poder de tributar está permanentemente delimitado pelos direitos e garantias constitucionais, devendo resultar de uma competência específica atribuída pelo legislador, em consonância com as expectativas do eleitor. No caso brasileiro, esta competência encontra previsão, entre outros dispositivos, no art. 145 da Constituição, que estabelece a sistemática de tributos a serem cobrados, e nos arts. 153 e 156, que distribuem essa competência entre os entes federados. Em outras palavras, este poder de tributar não é absoluto.

De volta ao princípio da capacidade contributiva, é oportuno lembrar que sua conceituação não é recente e tampouco inerente, de forma exclusiva, a doutrinas de caráter mais intervencionista ou de viés socializante. Adam Smith, pai do liberalismo econômico, já afirmava em sua célebre obra A riqueza das Nações, de 1776, que os súditos de todos as nações devem contribuir para a manutenção do Estado “tanto quanto possível, em proporção às suas respectivas capacidades”.

O conceito mantém-se atual nas monarquias parlamentares, bem como em regimes republicanos contemporâneos, onde o indivíduo não é súdito da coroa, mas cidadão com direitos e obrigações em relação ao Estado, entre eles o de pagar tributos e receber, em contrapartida, serviços públicos de qualidade, tais como segurança, saúde e educação.

À capacidade contributiva, tão relevante para a justiça fiscal, vincula-se outro princípio, o da progressividade, historicamente reconhecido em nosso ordenamento e com previsão constitucional explícita aplicada ao Imposto de Renda (art. 153, § 2º, inciso I).

No Código Tributário Nacional (CTN), os dois princípios, conjugados, são adotados de forma indireta, sobretudo no tratamento fiscal dado àqueles tributos que permitem a personalização da carga tributária, casos não apenas do mencionado IR como do Imposto sobre Propriedade Predial e Territorial Urbana (IPTU), do Imposto Territorial Rural (ITR), e do Imposto sobre Transmissão Causa Mortis e Doação (ITCMD).

Com a reforma tributária, o Imposto sobre Propriedade de Veículos Automotores (IPVA) também passou a ter alíquotas progressivas de acordo com valor do veículo. O automóvel de luxo, portanto, pagará mais IPVA que o popular, o que parece justo.

Assim, pela progressividade, quanto maior a base de cálculo (da renda, receita ou patrimônio), maior será a alíquota adotada pelo Fisco, preservando os contribuintes de menor capacidade financeira. Mais precisamente, a carga tributária aumenta proporcionalmente à capacidade econômica.

Se a capacidade contributiva e a progressividade são fundamentais, a busca por um ordenamento mais justo e equilibrado não se esgota nesses princípios, devendo, ainda, considerar outros princípios e conceitos, tais como transparência, simplicidade, eficiência econômica e baixo custo de conformidade. Quanto a esses pressupostos, há também certo consenso entre tributaristas e economistas.

Vimos acima que, dentro do sistema, a capacidade contributiva e progressividade se consubstanciam na aplicação desses princípios a tributos em que é possível identificar as reais possibilidades financeiras do contribuinte e, assim, personalizar a carga tributária, respeitando a equidade. Contudo, no caso dos tributos indiretos, que incidem sobre o consumo de bens e serviços, essa tarefa se torna bem mais complexa.

Historicamente, um dos maiores entraves à promoção da justiça fiscal no Brasil reside no fato de que sempre optamos por um sistema cuja ênfase de incidência encontra-se no consumo, não na renda e no patrimônio. Ora, conforme salientado, a tributação sobre o consumo iguala pobres e ricos, de forma injusta.

O contribuinte mais pobre despenderá parcela maior de sua renda na sua subsistência, esta dificultada por uma taxação maior sobre o consumo. Além disso, não terá acesso a certos bens e serviços – cujo preço final estará majorado justamente pela ênfase da tributação atribuída ao consumo – e que por essa razão só poderão ser consumidos pelos mais ricos.

Infelizmente, este modelo de tributação não foi alterado pela reforma tributária introduzida pela Emenda Constitucional nº 132 de 2023 e regulamentada pela Lei Complementar nº 214 de 2025.  

A ênfase da incidência foi mantida no consumo de bens e serviços, com a criação de três tributos: a Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS), de competência federal, o Imposto sobre Bens e Serviços (IBS), de competência do Distrito Federal, estados e municípios, esses dois tributos compondo o Imposto de Valor Agregado Dual (IVA-Dual); e mais o Imposto Seletivo (IS), incidente sobre a produção e consumo de bens e serviços considerados nocivos ao meio ambiente e à saúde, e por essa razão chamado de Imposto do Pecado, que, na prática, funcionará como uma alíquota adicional dos outros dois tributos.

Para compensar o caráter inegavelmente regressivo do IVA-Dual (agravado pelo IS), tendo em vista a sua incidência sobre o consumo, a reforma tributária estabeleceu um mecanismo de reembolso para os consumidores de baixa renda, para o qual adotou uma terminologia inglesa, o que nos parece inadequado.

O cashback (ou simplesmente reembolso) está regulado nos arts. 112 e seguintes da Lei Complementar nº 213/2025. A devolução de dinheiro inclui produtos da cesta básica e gás de cozinha, bem como serviços de energia elétrica residencial, fornecimento de água e tratamento de esgoto e telecomunicações.

As condições para o reembolso são pertencer a uma família com renda per capita de até meio salário-mínimo, estar inscrito no Cadastro Único de Benefícios do governo (CadÚnico), ser residente no Brasil e estar com o CPF regularizado. O percentual de reembolso varia de 20% a 100%, sendo de 20% na maioria das vezes para os dois tributos (CBS e IBS). 

O teto de renda per capita para se fazer jus ao reembolso nos parece demasiadamente baixo e insuficiente como medida compensatória da regressividade da tributação sobre o consumo. Mas este não é o único problema.

A sistemática de reembolso é complexa, o que vai no sentido contrário da simplificação, um dos pressupostos da justiça social elencados acima. Se tem uma lógica complexa, a transparência também pode em algum grau restar comprometida. Se a ênfase da tributação está mantida no consumo e na produção, e não na renda, o setor produtivo tende a ser menos competitivo, comprometendo a eficiência econômica e o desenvolvimento que tanto se esperava alcançar com a reforma tributária.

A par dessas questões, temos um alto risco de aumento do custo de conformidade, ocasionando um crescimento do já elevado nível de litígio fiscal, tendo em vista não apenas a complexidade do novo sistema, com intricadas regras de repartição de receitas entre os entes federados, como as regras de transição entre o antigo e o novo sistema trazido pela reforma tributária.

Todos esses aspectos considerados nos autorizam a manter baixa expectativa quanto à possibilidade de caminharmos, de fato, para um ambiente de plena justiça tributária no Brasil. Lamentavelmente, depois de décadas de marchas e contramarchas, aprovamos uma reforma tributária em tempo recorde no ano de 2024, mantendo a ênfase da exação no consumo, e com isso um sistema complexo e regressivo, na contramão da almejada justiça tributária.


quarta-feira, 9 de julho de 2025

O Supremo não é Poder Moderador

 

O embate do IOF: tributo regulatório 
ou mera ferramenta arrecadatória em crises fiscais?

Nilson Vieira Ferreira de Mello Jr*.

          No novo capítulo do embate entre Executivo e Legislativo envolvendo o aumento das alíquotas do Imposto sobre Operações Financeiras (IOF), o Supremo Tribunal Federal (STF) deu prazo até sexta-feira (11) para que o Congresso explique por que derrubou a medida do governo.

Ao mesmo tempo, agendou para o dia 15 de julho uma “audiência de conciliação” entre governo e Congresso, com o objetivo de as partes encontrarem uma saída para o impasse.

Até lá ficam temporariamente suspensos tanto os decretos presidenciais que majoravam as alíquotas do IOF (Decretos n. 12.466/2025 e n. 12.467/2025, substituídos pelo Decreto n. 12.499/2025) e o Decreto Legislativo n. 176/2025, que derrubou os aumentos.

          Antes de prosseguir na análise crítica dessas decisões, vamos tentar entender melhor como se deram essas marchas e contramarchas judiciais relativas ao IOF.

Em primeiro lugar, é preciso esclarecer que essas decisões do STF foram tomadas em caráter provisório, ou seja, em medida cautelar, no âmbito do julgamento conjunto, no último dia 4, de uma Ação Declaratória de Constitucionalidade (ADC) e de duas Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADI) atinentes à matéria.

A ADI n. 7827, impetrada pelo Partido Liberal (PL), questiona a constitucionalidade dos decretos presidenciais que majoraram as alíquotas de IOF, alegando que houve “desvio de finalidade”, ou seja, o aumento teria sido usado não de forma regulatória, como cabe a um tributo extrafiscal, mas para aumentar a arrecadação, permitindo ao governo fechar as suas contas.

Por sua vez, a ADI n. 7839, impetrada pelo Partido Socialismo e Liberdade (Psol), questiona a constitucionalidade do Decreto Legislativo n. 176/2025 do Congresso, que derrubou o aumento de alíquotas de IOF editado pelo Executivo, arguindo que, na medida, o Legislativo não aponta claramente onde teria havido a “exorbitância do poder regulamentar” por parte do Executivo, o que ofenderia o princípio da separação de Poderes prevista no art. 2º da Constituição, o que evidenciaria a inconstitucionalidade do ato legislativo.

O inciso V do art. 49 da Constituição dispõe que é competência exclusiva do Congresso Nacional “sustar os atos normativos do Poder Executivo que exorbitem do poder regulamentar ou dos limites da delegação legislativa”.

O Psol, em sua ADI, entendeu que esta exorbitância não ficou claramente identificada, daí porque, na sua decisão preliminar, o STF deu prazo para que o Legislativo clarifique os fundamentos constitucionais para a derrubada do aumento de alíquotas.

Ressalte-se que, para o PL, conforme expresso na ADI n. 7827, a “exorbitância” estaria na majoração de alíquotas em caráter claramente arrecadatório, visando aumentar o caixa do Tesouro com receitas tributárias adicionais, usando para tanto tributo regulatório (IOF), cuja função precípua é regular comportamentos, , econômicos ou sociais.

 Na ADI, o PL lembra que a majoração de alíquotas representaria um aumento de 60% na tributação do IOF. O STF, cautelarmente, por entender que há, de fato, indícios de “desvio de finalidade”, ou seja, um intuito meramente arrecadatório, e não regulatório, suspendeu os aumentos.

Neste aspecto, válido é ressaltar que, em se tratando de tributos extrafiscais, ou seja, de caráter regulatório estrito (e não fiscal), como são os casos, além do IOF, do Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI), do Imposto de Importação (II) e do Imposto de Exportação (IE), o Executivo tem a prerrogativa (art. 153, parágrafo 1º da Constituição) de majorar as suas alíquotas por decreto, sem observar o princípio da anterioridade (ou seja, o aumento vale para o próprio exercício), desde que não haja “desvio de finalidade”. Em outras palavras, desde que o intuito não seja meramente arrecadatório.

Todos esses fatos e argumentos sumariamente considerados, devemos lembrar que é legítimo que partidos políticos recorreram ao Supremo, nossa Corte Constitucional, sempre que entenderem que há atos normativos, emanados do Executivo ou do Legislativo, que ferem a Constituição. Por sinal, desde a promulgação da Constituição de 1988, os partidos políticos estão entre os entes que mais ingressam no Supremo contra atos do Executivo e do Legislativo.

O papel do Supremo, por conseguinte, é julgar esses questionamentos à luz da Constituição, invalidando e afastando do ordenamento os atos que julgar serem inconstitucionais e, contrariamente, reconhecendo e validando aqueles que considerar que estão em consonância com a matriz constitucional. 

O que não parece ser papel do Supremo, e aqui retomamos a análise crítica não empreendida de início, é que o Supremo alargue a sua competência e amplie a elasticidade de suas funções para que possa realizar “audiência de conciliação” entre Executivo e Legislativo, como se Poder Moderador fosse. Ressalte-se que, na Constituição, não há qualquer previsão para que o Supremo proponha e assuma tal papel.

A propósito, audiência de conciliação é uma expressão que nos remete a varas de família, em casos como, por exemplo, litígios de casais em separação disputando a guarda dos filhos, ou à esfera trabalhista, onde é imprescindível a mediação entre empregados e empregador, pelo Judiciário, tendo em vista ser uma das partes, teoricamente, hipossuficiente.

Em resumo, a audiência de conciliação entre governo e Congresso, proposta pelo ministro Alexandre de Moraes, é algo totalmente atípico e inusitado, a rigor, um impulso inconstitucional, mesmo que levemos às últimas consequências a interpretação do art. 2º da Carta.

Esse comando constitucional preconiza a harmonia entre os Poderes da República, mas não prevê a mediação do Judiciário nem menciona audiência de conciliação entre os Poderes da República. O Executivo é hipossuficiente?

Assim, no nosso entendimento, por melhores que possam ser (e aqui vai o benefício da dúvida) as intenções do ministro Alexandre de Moraes, tal caminho configura uma inovação constitucional. Para além disso, é uma imprudência o Supremo se imiscuir em negociações políticas – que, a rigor, é o que está acontecendo.

O que o Supremo deve decidir, à luz da Constituição, é se o aumento de alíquotas do IOF decretado pelo governo é ou não válido ou se visa, simplesmente, robustecer o caixa do governo, pressionado pelos recorrentes aumentos dos gastos públicos, configurando desvio de finalidade. O Supremo não é Poder Moderador.

*Advogado e jornalista pela PUC-Rio, é mestre em Filosofia pela mesa universidade, pós-graduado em Direito Tributário pela FGV-Rio e em Economia pela UFRJ, e sócio do Ferreira de Mello Advocacia