segunda-feira, 9 de março de 2020

Artigo


Os investimentos e as Reformas
Administrativa e Tributária


A dívida pública brasileira alcançou, em 2019, R$ 4,2 trilhões, o que representa um aumento de 9,5% em relação ao ano anterior. O resultado frustrou as expectativas do Ministério da Economia que, em outubro passado, conforme artigo publicado aqui neste Blog, projetava fechar o ano com o estoque da dívida em R$ 3,8 trilhões. Apesar da pesada carga tributária suportada pela sociedade – algo em torno de 35,7% do PIB -, e dos esforços que têm sido feitos nos últimos anos para conter as despesas correntes discricionárias, aquelas que não estão legalmente vinculadas, a dívida pública tem mantido uma dinâmica de crescimento: era de cerca de 77% do Produto Interno Bruto (PIB) em 2018 e deve superar os 80%, em 2020, previsão que já considera, segundo o governo, eventuais efeitos positivos da Reforma da Previdência, concluída em outubro passado.[1]
As razões para o recorrente desequilíbrio fiscal que há anos o país enfrenta, com sucessivos déficits primários (despesas acima das receitas) desde 2013, assim como para o esgotamento da capacidade de investimento, estão relacionadas não apenas às políticas de expansão fiscal adotadas em diferentes governos como também, e principalmente, à nossa matriz constitucional. A máquina pública brasileira, uma vez que não consegue alcançar o equilíbrio de suas contas dentro do modelo que a Constituição impõe, de orçamento engessado, torna-se incapaz de aumentar a poupança nacional, de forma a ampliar investimentos e gerar crescimento econômico sustentável. O problema é estrutural, motivo pelo qual o país necessita das reformas ora em discussão.
Ressalte-se que os gastos são crescentes e o investimento, decrescente, situando-se, hoje, em um dos patamares mais baixos da história[2]. Em 2017, a taxa de investimento do setor público foi de meros 1,85% do PIB, contra os 4,06% registrados em 2013, antes da recessão do triênio 2014-2016, com uma leve melhora em 2018, para 2,43%[3]. Ao seu turno, o setor privado, combalido pela crise econômica e submetido a forte tributação, também reduziu o volume de investimentos: recuo de 16,85% do PIB, em 2013, para 13,39% em 2018. No momento, a iniciativa privada responde por 85% da taxa de investimento no Brasil, mantendo patamares bem mais elevados do que o setor público.
Isso por si só não seria problema, se o volume total de investimentos na economia brasileira fosse o suficiente, mas a realidade é que está muito aquém das taxas necessárias para o país superar suas enormes deficiências, além do que há áreas, como educação, saúde e segurança, em que o papel do Estado é primordial. Para se ter uma ideia de como esses nossos 15,82% do PIB (somados setores privado e público) significam pouco em termos de investimento, basta dizer que a taxa média de investimento dos países emergentes, rol em que o Brasil encontra-se, é de cerca de 35% do PIB; a do Mundo, de 26,2%; e a da América Latina, de 19,6%. Num ranking de investimentos que reúne 172 nações, figuramos no 152º lugar.[4]
Vale repetir que a dificuldade de o Estado brasileiro exercer o papel de indutor da economia - como seria de se esperar, tendo em vista uma matriz constitucional de viés claramente dirigista e, em particular, em situações de baixo crescimento, como enfrentamos hoje - decorre justamente do direcionamento da maior parte das receitas para as chamadas despesas obrigatórias, constitucionalmente vinculadas. Trata-se, na verdade, de um paradoxo, porque a matriz constitucional elaborada com a missão, entre outras, de equacionar a nossa grande “dívida social” acaba por inviabilizar financeiramente o Estado, impondo altos custos à sociedade e comprometendo o crescimento econômico do qual poderia resultar melhores índices de desenvolvimento social.
Entre as despesas obrigatórias, a Previdência Social (43,8% do orçamento) e a folha salarial de servidores ativos e inativos (22,1%) consomem mais da metade das receitas federais, deixando pouco espaço de manobra para o gestor público bem intencionado. A Reforma da Previdência, concluída em outubro passado, foi passo importante na busca do equilíbrio orçamentário – até porque o sistema tornara-se intrinsecamente deficitário –, mas não passo suficiente. Para reverter uma estrutura perversa que, embora muito dispendiosa, não consegue realizar os investimentos necessários e entregar os serviços esperados pela população, outras reformas são imprescindíveis.
Neste ponto, alguém deve estar se perguntado por que não aumentar as despesas mesmo com rombos orçamentários ou simplesmente deixar de pagar a dívida. A questão é atinente à ciência econômica, mas com evidente conexão com o direito financeiro e tributário. De forma muito resumida, pode-se dizer que políticas fiscais irresponsáveis e déficits orçamentários prolongados geram distorções em cadeia na economia. Cabe dizer que a recessão econômica iniciada em 2014 teve a expansão fiscal em seu DNA.
Um efeito deletério do endividamento público é que, quando o governo se endivida demais, acaba drenando os recursos financeiros disponíveis na sociedade, encarecendo o crédito para empresas e indivíduos. Quanto maior for a dívida pública maiores serão os juros. Governos fiscalmente responsáveis contribuem, portanto, para o aumento do crédito e dos investimentos. Já a possibilidade de calote, ou seja, de simplesmente deixar de pagar a dívida, total ou parcialmente, não é uma solução plausível, devido ao efeito em cadeia sobre toda a economia: grande parte da cadeia produtiva entra em colapso. Nessas situações, poucos lucram (muito) e a maior parte da sociedade perde.
Neste sentido, é preciso dizer que os credores do governo não são apenas banqueiros de “fraque e cartola” (esses também), mas a própria sociedade: 26,68% dos títulos da dívida pública brasileira estão nas mãos de fundos investidores; 24,89%, com fundos de previdência; 24,69%, com instituições financeiras; e o restante com investidores estrangeiros e outros credores.
Assim, temos um silogismo como desafio: para voltar a crescer e se desenvolver, o Brasil precisa investir; para voltar a investir, precisa equacionar o seu problema fiscal; para tanto, precisar promover reformas que levem à reestruturação do Estado, tornando-o mais eficiente. E é neste contexto que se inserem as reformas Administrativa e Tributária, ambas anunciadas para entrar em discussão no Congresso neste mês, passado o “recesso” de Carnaval.
A Reforma Administrativa deveria preceder a Reforma Tributária. Isso porque, se temos um Estado que gasta em excesso e cujos gastos são de má qualidade, pois não equacionam problemas sociais renitentes, não adianta alterar o sistema tributário sem ter a exata noção de que como será o perfil de gastos da nova máquina pública que emergirá da Reforma Administrativa. É certo que esta nova máquina deve ter uma lógica orçamentária completamente diferente da de hoje: deve implicar uma estrutura que tenha menor dispêndio com custeio e maior disponibilidade de recursos para as áreas essências - educação, saúde, saneamento, mobilidade urbana, infraestrutura, segurança. Em outras palavras, uma estrutura administrativa pública em que o Estado finalmente deixe de ser um fim em si mesmo - como a matriz constitucional involuntariamente acabou engendrando – para se tornar o meio pelo qual a sociedade alcançará patamares mais elevados de bem estar.
Em relação à Reforma Tributária, já foi dito neste espaço que ela deve ser feita considerando sete valores/parâmetros: 1. A simplificação do sistema; 2. A ênfase tributária na renda e não na produção ou no consumo; 3. A defesa do princípio da não cumulatividade; 4. O respeito à progressividade em oposição à regressividade; 5. A manutenção do pacto federativo; 6. O estímulo à produção e ao desenvolvimento; e 7. A preservação da capacidade financeira do Estado. Como se percebe, esses valores/parâmetros são potencialmente antitéticos entre si, e a sua aplicação, como norteadores da reestruturação do sistema, dependerá do real diagnóstico do Estado.
Reduzir carga tributária, por exemplo, para desonerar o setor produtivo e estimular o crescimento econômico, é, em tese, uma medida acertada, mas como fazer isso sem destruir a capacidade financeira de um Estado já envolto em sérios problemas orçamentários? É preciso, portanto, redimensionar o Estado, racionalizando seus custos, o que faz da Reforma Administrativa pressuposto da Tributária, que poderá ser feita de forma paulatina, por etapas, dada a sua complexidade. O fato de o governo ainda não ter o seu próprio projeto de reforma do sistema tributário pode, curiosamente, representar uma vantagem neste momento. Não é tarefa fácil o que se tem pela frente, mas é a tarefa que se impõe ao Brasil este ano.

Por Nilson Mello*
(*advogado e jornalista, pós-graduado em Economia e em Direito Financeiro e Tributário, é sócio diretor da Meta Consultoria e Comunicação e do Ferreira de Mello Advocacia)






[1] Em janeiro deste ano, as contas do governo tiveram superávit primário de R$ 44 bilhões, melhor resultado para este mês em 24 anos, o que confirma o esforço fiscal empreendido.
[2] Fonte: Observatório de Política Fiscal/FGV-Ibre
[3] Dados de 2019 ainda não consolidados.
[4] Dados FMI/FGV, 2018.

Um comentário: