domingo, 24 de agosto de 2025

Reforma tributária

 


Fase de transição começa em janeiro, mas
novas regras ainda não foram totalmente definidas

Nilson Vieira Ferreira de Mello Jr.

A menos de seis meses do início da fase de transição da reforma tributária introduzida pela Emenda Constitucional (EC) nº 132/2023, boa parte das regras que compatibilizam o antigo e o novo sistema ainda é uma incógnita porque depende da aprovação do Projeto de Lei Complementar (PLP) nº 108/2024, que aguarda apreciação do Senado, e de uma série de atos administrativos complementares.

Parte essencial da regulamentação da reforma, juntamente com a Lei Complementar nº 214/2025, o PLP nº 108 disciplina o Comitê Gestor do Imposto sobre Bens e Serviços (IBS), tributo de competência do Distrito Federal, estados e municípios, que integra o novo Imposto de Valor Agregado – Dual (IVA-Dual), também composto pela Contribuição de Bens e Serviços (CBS), essa de competência da União.

Estabelece, por conseguinte, as normas para a gestão, arrecadação e repartição entre os entes federados das receitas do IBS, que unificará o Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) e o Imposto sobre Serviços de Qualquer Natureza (ISS). Durante a fase de transição entre o antigo e o novo sistema, que vai de janeiro de 2026 até dezembro de 2032, esses antigos tributos (ICMS e ISS) coexistirão com os novos (CBS e IBS, integrantes do IVA-Dual).

Para que essa coexistência temporária não gere ainda mais incertezas para os contribuintes, as regras precisam ser definidas o quanto antes. Quanto mais próximos estivermos do início de sua entrada em vigor, em 1º de janeiro, maiores serão as dificuldades para assimilá-las, bem como o atropelo para se adequar à nova realidade fiscal.

Válido é dizer que as dificuldades serão as mesmas para autoridades fazendárias e agentes do fisco nas diferentes esferas, criando um ambiente de incerteza, quando todos alimentavam a expectativa de operar dentro de sistemática mais simples e transparente.

As dúvidas que surgem quanto à regulamentação do Comitê Gestor pelo PLP nº 108/2024 somam-se às relativas à não incidência do IBS e da CBS na base de cálculo do ICMS e do ISS, durante a fase de transição. Isso porque a Lei Complementar nº 214/2025, que regulamentou o IVA-Dual e o Imposto Seletivo (IS), criados pela reforma, veda expressamente a incidência dos antigos tributos na base de cálculo dos seus sucessores, mas é omissa quanto à não incidência dos novos tributos na base de cálculo dos antigos.

O PLP nº 16/2025 procura esclarecer a questão, acrescentando o parágrafo 8º ao art. 13 da Lei Complementar nº 87/1996, para deixar expresso que a CBS e o IBS não integram a base de cálculo do ISS, do ICMS e do IPI durante a fase de coexistência do antigo e do novo sistema. Do PLP nº 16/2025, ainda em trâmite, nos ocuparemos mais detidamente em artigo específico neste espaço. 

Por ora, concentremo-nos nas considerações sobre os principais aspectos e dúvidas atinentes não apenas à regulamentação do Comitê Gestor do IBS conforme previsto no PLP nº 108/2024, bem como à fase de transição prestes a ser inaugurada. Tracemos um breve cronograma para melhor compreensão da matéria.

Em 1º de janeiro de 2026, começa o período de testes do novo sistema, com cobrança simbólica de alíquota de 0,9% para a CBS e de 0,1% para o IBS, sem que ISS, ICMS, PIS (Programa de Integração Social), Cofins (Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social) e IPI (Imposto sobre Produto Industrializado) já tenham sido extintos.

A ideia é que empresas comecem a ajustar seus sistemas para a escrituração desses novos tributos. Todavia, o trabalho de ajustes contábeis e gerenciais estará comprometido, enquanto todas as regras não forem estabelecidas.

Em 2027, entra em vigor a alíquota definitiva da CBS em substituição ao PIS e à Cofins. Esta alíquota inicial da CBS não está definida, mas hoje estima-se que será de 8,7%. A partir daí, será ajustada ao longo do tempo, conforme a avaliação do impacto na arrecadação e a revisão dos benefícios fiscais, só devendo ser definitiva a partir de 2037.

Antes disso, porém, em 2033, ISS, ICMS, PIS e Cofins deixam de existir. O IPI não será extinto, mas terá a alíquota zerada em 2027, salvo para algumas regiões com incentivos fiscais, caso da Zona Franca de Manaus. Junto com o IVA-Dual (IBS + CBS), entrará em vigor, também em 2027, o Imposto Seletivo (IS), tributo regulatório incidindo sobre produção e consumo de bens e serviços prejudiciais à saúde e ao meio ambiente (assunto já abordado aqui neste espaço e que voltará a ser objeto de análise em outros artigos).

Conforme fica claro, a reforma tributária não unificou os tributos sobre o consumo em um único imposto (IVA), como muito se divulgou, mas, a rigor, instituiu três novos tributos - CBC, IBS e IS - substituindo os antigos. Detalhes práticos sobre as obrigações acessórias desses novos tributos, tais como a emissão de notas e a escrituração de documentos, seguem indefinidos, aguardando regulamentação.

A questão crucial é: de que forma o contribuinte poderá se preparar adequadamente para estar em conformidade fiscal, se até agora grande parte das normas não foi estabelecida? É claro que, assim que a regulamentação for aprovada, as empresas correrão para se adequar à sistemática, mas a um custo maior e com maiores chances de erro. Uma dúvida relevante é como será feito o aproveitamento de créditos acumulados de ICMS dentro da sistemática de transição. Esses créditos precisam estar homologados até 2032, para que a compensação possa ser feita. 

Pelo lado das autoridades fiscais, as dúvidas não são menores, pois faltam ser definidas as diretrizes para a fiscalização, o processo administrativo e as multas aplicáveis, num total de mais de 30 condutas sujeitas a sanção. Quem vai aplicar as multas? A questão ganha maior relevo, se considerarmos que haverá competência compartilhada. 

Órgão fundamental do novo sistema, o Comitê Gestor do IBS foi instalado no dia 2 de agosto, mas ainda sem os representantes dos municípios. À estrutura caberá o gerenciamento da arrecadação e da distribuição das receitas do IBS, que deve alcançar R$ 1 trilhão por ano. Contudo, a prescrição detalhada de suas atribuições depende da aprovação do PLP nº 108/2024.

Se a própria Autoridade Fiscal não tiver clareza quanto ao que deve fazer e de como deve proceder, o cenário para o contribuinte torna-se kafkaniano. A preocupação é ainda maior se considerarmos que o Comitê Gestor constituirá mais uma instância administrativa encarregada de sanar conflitos, em função paralela às já existentes. Interpretações divergentes entre as instâncias podem gerar aumento do contencioso.

Da esfera administrativa para a judicial, as dúvidas persistem, pois não se sabe ainda ao certo qual será o juízo competente para julgar controvérsias relativas à CBS, de competência federal, e ao IBS, de competência do Distrito Federal, estados e municípios.

Uma solução seria deixar a CBS na esfera de competência dos Tribunais Regionais Federais (TRFs) e o IBS, dos Tribunais de Justiça dos Estados, mas, ainda assim, os conflitos de competência não seriam afastados, gerando mais dúvidas, uma vez que ambos os tributos compõem o IVA-Dual.

O custo do contencioso fiscal no Brasil já é alto demais para que nos demos ao luxo de inaugurar nova sistemática sem que as suas regras estejam suficientemente claras para o contribuinte ou sejam publicadas às vésperas de sua entrada em vigor. Somente no Supremo Tribunal Federal (STF) e no Superior Tribunal de Justiça (STJ), ações de natureza tributária alcançam hoje a cifra de R$ 649,2 bilhões (Valor Econômico, 21/8/2025).

Estudo do Instituto de Ensino e Pesquisa (Insper) publicado em setembro de 2024 apontava que o litígio tributário nas esferas administrativa e judicial, compreendendo todas as instâncias, chegava a R$ 5,4 trilhões, o equivalente a 75% do Produto Interno Bruto (PIB), superando ainda o valor de mercado de 371 empresas listadas na Bolsa de Valores de São Paulo.

Transparência é um princípio essencial à justiça fiscal. Às vésperas do novo sistema, que deixemos de lado os velhos vícios. O PLP nº 108/2024 e as demais normas regulamentares do novo sistema tributário precisam ser o quanto antes discutidas, aprovadas e publicadas.

(Obs: o artigo sobre faixa de isenção do Imposto de Renda prometido para esta semana será postado na próxima semana).