Joaquim Barbosa e os primeiros votos
Montesquieu e as
suscetibilidades no STF
Um aspecto
aparentemente acessório e lateral vem sendo indiretamente reiterado nas sessões
de julgamento do “mensalão” no Supremo Tribunal Federal. Em cada sustentação
oral e intervenção dos ministros, e mesmo nos apartes dos representantes dos
réus, o caráter de independência do Judiciário em relação aos outros Poderes,
sobretudo o Executivo, sai revigorado.
A observação pode
até parecer banal, já que o Brasil é uma democracia, e tendo em vista que a
separação dos Poderes é um instituto inerente aos regimes democráticos liberais.
Contudo, “democracias” podem existir na aparência sem se confirmar na essência.
Exemplos de dissimulação institucional são recorrentes na América Latina, onde a
ideologia tem fomentado com indiscutível êxito pseudo-regimes democráticos nos
quais, na prática, a Justiça é encapsulada pelo Executivo, obedecendo aos seus
comandos. Em muitos aspectos, por sinal, o Brasil também segue sendo democracia
de aparência apenas.
Mas esse não é o
caso da atuação do Judiciário e sua independência em relação ao Executivo. Como
ensina Norberto Bobbio, deve-se ter em mente que o sentido da teoria da
separação dos Poderes é a concretização de um instrumento de defesa da liberdade
contra os abusos que possam ser cometidos pela máquina pública. Montesquieu, que
concebeu o princípio no século XVIII dada a sua aversão ao absolutismo, o
explicava como um sistema de freios cujo objetivo seria garantir equilíbrio à
administração pública e prevenir que alguma “potência” (o rei, o chefe de
Estado, o chefe de governo) concentre tanto poder que esvazie o interesse da
sociedade. Um “não” aos abusos.
Por outro lado,
Friedrich Hegel, já no século XIX, reconhecia a importância do princípio, mas
entendia o Judiciário como mera instância funcional, não um Poder genuíno como o
Legislativo e o Executivo. É por isso sintomático que os países
latino-americanos aludidos acima sejam governados por dirigentes e partidos cuja
orientação ideológica sofreu forte influência do idealismo de Hegel. No caso,
não há por que observar distinções e independência, pois o que importa é
construir uma nova ordem.
Mas filosofia
política e jurídica à parte, o fato é que se há ou houve recentemente no país o
intuito de colocar o Judiciário a reboque do Executivo, o projeto por enquanto
fracassou. Se a intervenção alcança de forma aleatória instâncias inferiores,
não chega à cúpula do Poder. E, na verdade, o processo do “mensalão”, e não
apenas o julgamento em si, mostrou que outras esferas da administração pública,
mesmo no âmbito do Executivo, preservam a autonomia indispensável à sua atuação.
Ressalte-se que o processo e o julgamento não seriam possíveis sem o trabalho
independente da Polícia Federal e da procuradoria Geral da Rep ública. Os
impulsos intervencionistas e a partidarização da máquina são visíveis no Brasil,
mas os efeitos, ainda limitados.
Pois bem, nesta
quinta-feira (16/08) o julgamento entrou na fase de leitura de votos pelo
ministro relator, que pediu a condenação do deputado João Paulo Cunha,
ex-presidente da Câmara e candidato a prefeito de Osasco (SP),por corrupção
passiva, peculato e lavagem de dinheiro; e dos empresários Marcos Valério,
Cristiano Melo Paz e Ramon Hollerbach, por corrupção ativa e peculato. Um dado
prosaico: perto dos altos valores envolvidos no esquema, os módicos R$ 50 mil
que João Paulo Cunha teria embolsado (ainda não foi condenado pelo colegiado)
para ajeitar facilidades para as agências de Valério, Paz e Hollerbach ganha
ares de crime de “bagatela” e dá a dimensão do que o deputado é (confirmando-se
a condenação) como homem público.
Com 37 réus ainda em
julgamento, cerca de 1.050 votos serão lidos pelos 11 ministros do STF até a
conclusão dos trabalhos, se consideradas todas as imputações. Espera-se apenas
que deixem suscetibilidades e bate-bocas de lado em respeito à instituição
autônoma e independente a que pertencem. Pois as recorrentes exasperações do
ministro Joaquim Barbosa no plenário da Corte são incompatíveis com a grandeza
do trabalho que arduamente vem realizando, com visível sacrifício físico – o que
em parte até explica a sua eventual irritação, mas não a justifica.
Por
Nilson Mello
(PS:
Ler no comentário da última segunda-feira neste Blog, abaixo, texto sobre Milton
Friedman e a crise global))
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