sexta-feira, 31 de agosto de 2012

Artigo

                           Hannah Arendt

 
Erro gramatical na teoria política

     Hannah Arendt, cientista política alemã de origem judaica, que se refugiou nos Estados Unidos para escapar do nazifacismo, dizia que o poder tem a ver com a habilidade humana para agir, mas para agir de maneira correta, tendo em vista o aperfeiçoamento do próprio mundo.
     Desta forma, prossegue Arendt, o poder jamais pode ser propriedade de um indivíduo, ou de grupo restrito de indivíduos; ao contrário, deve ser visto como a conseqüência da ação conjunta de homens livres, voltados para a paz. Quem está no poder representa uma coletividade, o que pressupõe busca de consenso, diálogo, entendimento visando a “uma” convergência de interesses.
     Por essa visão nitidamente pacifista e democrática, o uso da força seria a antítese do verdadeiro poder. Mais: a “violência pode até destruir o poder, mas não poderá substituí-lo”, porque ela se baseia na exclusão, no sectarismo, e não num movimento espontâneo de interação e cooperação como o preconizado por Arendt. (*)
     Violência e poder são, assim, conceitos opostos. Se um está forte, o outro desaparece. Por exemplo, a escalada da violência na Síria é uma decorrência direta da perda de poder do regime.
E aí chegamos a outra conclusão óbvia: a força do poder reside em sua legitimidade e representatividade, do contrário será apenas violência, ainda que disfarçada de poder. De volta ao exemplo, a tentativa de manutenção do status quo, sem a devida legitimidade, levou o governo de Aashar al Assad a uma guerra sanguinária contra aqueles que deveria representar. Não há poder, só violência.
A mesma carnificina teria acontecido na Índia do final dos anos 1940, diria Arendt, se Gandhi houvesse enfrentado, com sua resistência pacífica, os regimes de Hitler, Mussolini ou Stalin, ao invés do liberalismo democrático britânico.
     Há um alerta a ser feito. Grupos minoritários, não representativos de uma autêntica convergência de princípios coletivos, podem procurar se apropriar do poder por meio de uma “violência” dissimulada. Contra esse risco, palatável no Brasil, o maior antídoto é o fortalecimento das instituições.
     O julgamento da ação penal 470 no Supremo Tribunal Federal é um sinal de amadurecimento institucional. O julgamento do processo do “mensalão” - esquema de compra de votos que revela o intuito de se estruturar um poder espúrio, não consensual – tem reiterado a autonomia e a independência de uma esfera do Estado (Judiciário) em relação às outras (Executivo e Legislativo).
     A “violência” dissimulada se manifesta pela tentativa de interferência de uma esfera na outra, e pela estruturação de um sistema legal democrático na aparência, mas opressor na prática. O voto vencido de um ministro em quase todos os itens do “mensalão” examinados até aqui pelo plenário do Supremo é uma prova vigorosa de que as instituições resistem à interferência indevida. Neste sentido, o vencido no voto poderia personificar a desmoralização de um projeto anômalo de “poder”.
Em sentido oposto, é sinal de reconhecimento implícito da prevalência do princípio de separação de Poderes, o bilhete que a presidente Dilma Rousseff encaminhou nesta quinta-feira (30) a duas de suas ministras, contrariada com mudanças no projeto do Código Florestal feitas no Congresso. Se o Legislativo estivesse domesticado, não existiria bilhete.
A propósito, o bilhete começa com um erro gramatical, logo na primeira linha. Na primeira palavra. Mas, de qualquer forma, convenhamos, já é uma evolução  em relação a um passado bem recente.
      
Por Nilson Mello
    
*Obs: para Arendt, uma boa referência bibliográfica é, novamente, Bittar e Assim Almeida, em “Filosofia do Direito”, cap. 23, Ed. Atlas, 9ª Edição.

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