Questão de ordem ou
de princípios
O deputado Roberto
Jefferson temia José Dirceu porque ele lhe “provocava os instintos mais
primitivos”, seja lá o que quisesse dizer com isso. Zé Dirceu, ou Carlos
Henrique Gouveia, codinome que o ex-ministro da Casa Civil utilizou no período
em que viveu na clandestinidade no Paraná, após ser treinado para a guerrilha
em Cuba, é o principal réu do julgamento que começa nesta quinta-feira no
Supremo Tribunal Federal.
A vida não ficou
ruim para “Carlos Henrique” depois de deixar o Poder. Até porque jamais se
distanciou dele. Acusado, nas palavras do procurador Geral da República, de ser
o chefe de uma “sofisticada organização criminosa”, montada para comprar o
apoio parlamentar no primeiro mandato de Luiz Inácio Lula da Silva, saiu do
Planalto para se tornar um próspero consultor.
Do ponto de vista
financeiro, segundo se noticia, não foi um mau negócio, embora possa lhe ter
afastado de algumas perspectivas na vida pública - e mesmo de algumas
oportunidades de negócios em desdobramento à continuidade da atividade
política.
Diga-se que a
trajetória “empresarial” de Zé Dirceu permaneceu intimamente associada ao
governo do qual ele fez parte, bem como àqueles que vieram em seguida, ou seja,
o segundo mandato de Lula e o atual mandato de Dilma Rousseff.
O livre trânsito no
governo de um ex-ministro denunciado por formação de quadrilha e corrupção
ativa deveria ser motivo para calafrios adicionais no ex-deputado Roberto
Jefferson. Mas ele próprio é um político calejado, ciente da, digamos,
volatilidade dos princípios na vida pública. Afinal, foram princípios genuínos
ou interesses contrariados que levaram Roberto Jefferson a denunciar o esquema
do “mensalão”?
A maioria do
eleitor brasileiro, que é de boa-fé, presume-se, deve acreditar que foram os
bons princípios que motivaram o ex-deputado. Por essa mesma razão, deduz-se, o
eleitor entendeu que o ex-presidente Lula nada sabia sobre a compra de
parlamentares, maquinada (confirmando-se a denúncia da acusação) por seu
principal ministro, a poucos metros do gabinete presidencial. É o que se infere
da reeleição de Lula, de seus altos índices de popularidade e do retumbante
sucesso da eleição de sua substituta, considerada durante boa parte da última
campanha ao Planalto como um “poste” a ser alçado ao Poder pelo padrinho
político tamanha a falta de traquejo no palanque.
Mas não façamos
papel de falsos moralistas hipócritas. Compra de voto não é uma invenção
petista. É prática usual na trajetória republicana (?) brasileira. O PT
“apenas” aperfeiçoou e aprofundou o método. O paralelo é a linha de montagem na
indústria automobilística japonesa. O Japão levou ao extremo da eficiência um
modelo de produção nascido nos Estados Unidos. E acabou colocando de joelhos as
montadoras americanas, impondo uma produtividade inigualável.
O PT, com seu
“mensalão” e outros métodos, por assim dizer, arrojados de manutenção no Poder
conseguiu deslocar a oposição da vida política nacional. Trata-se da cooptação
levada ao extremo da eficiência. Pena o partido não demonstrar a mesma aptidão
na gestão da economia.
Talvez porque a
correspondência na esfera econômica para a cooptação usual no meio político
seja o método do apadrinhamento, modalidade de capitalismo de Estado em que a
concentração não é total, mas o governo define que segmentos e grupos
privilegiar. O que, aliás, explica o sucesso empresarial do consultor Zé
Dirceu. E aqui tampouco há novidade.
Com a justificativa
de impulsionar o desenvolvimento, estímulos setoriais vêm sendo elocubrados
pela burocracia nacional desde a política do Encilhamento, nos primórdios da
República. Sempre gerando distorções de difícil correção, na contramão da livre
concorrência e em prejuízo da eficiência.
Pois bem, eis que o
julgamento dos 38 réus do “mensalão”, que começa hoje, pode contribuir para uma
reflexão dos métodos e parâmetros adotados no Brasil.
Duas questões
preliminares, uma de ordem técnica, a outra de natureza moral, mas disciplinada
em Lei, dominarão o início dos trabalhos no STF. Pelo que manda a Lei, com base
na moral, o ministro José Antonio Dias Toffoli deveria se declarar impedido de
julgar. Afinal, advogou para o PT, prestou assessoria jurídica na Casa Civil
quando o titular era Zé Dirceu e, antes de ser indicado ao STF por Lula,
representou três dos “mensaleiros”. Além disso, sua companheira também já
representou os acusados.
No momento em que
este texto está sendo escrito ainda não se tem notícia da decisão de Toffoli. O
desenrolar dos acontecimentos dirá se é um homem de princípios ou de
resultados.
A outra questão de
ordem, a ser apresentada pelo ex-ministro da Justiça Marcio Thomaz Bastos, que
comanda a defesa dos acusados, é saber se a competência para julgar os 35
acusados que não têm mandato (e, na tese do ex-ministro, não fazem jus ao foro
privilegiado) é mesmo o Supremo, pela conexão dos crimes, ou se seus processos
devem ser desmembrados e remetidos à primeira instância.
Nossos “piores
instintos selvagens”, para usar o linguajar de Roberto Jefferson,
independentemente da melhor escolha técnico-jurídica, recomendam manter o
julgamento onde a punição possa ser mais exemplar. Não por uma questão de
resultado apenas, mas de princípio.
Por Nilson Mello
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