quinta-feira, 2 de agosto de 2012

Artigo


Questão de ordem ou de princípios

O deputado Roberto Jefferson temia José Dirceu porque ele lhe “provocava os instintos mais primitivos”, seja lá o que quisesse dizer com isso. Zé Dirceu, ou Carlos Henrique Gouveia, codinome que o ex-ministro da Casa Civil utilizou no período em que viveu na clandestinidade no Paraná, após ser treinado para a guerrilha em Cuba, é o principal réu do julgamento que começa nesta quinta-feira no Supremo Tribunal Federal.
A vida não ficou ruim para “Carlos Henrique” depois de deixar o Poder. Até porque jamais se distanciou dele. Acusado, nas palavras do procurador Geral da República, de ser o chefe de uma “sofisticada organização criminosa”, montada para comprar o apoio parlamentar no primeiro mandato de Luiz Inácio Lula da Silva, saiu do Planalto para se tornar um próspero consultor.
Do ponto de vista financeiro, segundo se noticia, não foi um mau negócio, embora possa lhe ter afastado de algumas perspectivas na vida pública - e mesmo de algumas oportunidades de negócios em desdobramento à continuidade da atividade política.
Diga-se que a trajetória “empresarial” de Zé Dirceu permaneceu intimamente associada ao governo do qual ele fez parte, bem como àqueles que vieram em seguida, ou seja, o segundo mandato de Lula e o atual mandato de Dilma Rousseff.
O livre trânsito no governo de um ex-ministro denunciado por formação de quadrilha e corrupção ativa deveria ser motivo para calafrios adicionais no ex-deputado Roberto Jefferson. Mas ele próprio é um político calejado, ciente da, digamos, volatilidade dos princípios na vida pública. Afinal, foram princípios genuínos ou interesses contrariados que levaram Roberto Jefferson a denunciar o esquema do “mensalão”?
A maioria do eleitor brasileiro, que é de boa-fé, presume-se, deve acreditar que foram os bons princípios que motivaram o ex-deputado. Por essa mesma razão, deduz-se, o eleitor entendeu que o ex-presidente Lula nada sabia sobre a compra de parlamentares, maquinada (confirmando-se a denúncia da acusação) por seu principal ministro, a poucos metros do gabinete presidencial. É o que se infere da reeleição de Lula, de seus altos índices de popularidade e do retumbante sucesso da eleição de sua substituta, considerada durante boa parte da última campanha ao Planalto como um “poste” a ser alçado ao Poder pelo padrinho político tamanha a falta de traquejo no palanque.
Mas não façamos papel de falsos moralistas hipócritas. Compra de voto não é uma invenção petista. É prática usual na trajetória republicana (?) brasileira. O PT “apenas” aperfeiçoou e aprofundou o método. O paralelo é a linha de montagem na indústria automobilística japonesa. O Japão levou ao extremo da eficiência um modelo de produção nascido nos Estados Unidos. E acabou colocando de joelhos as montadoras americanas, impondo uma produtividade inigualável.
O PT, com seu “mensalão” e outros métodos, por assim dizer, arrojados de manutenção no Poder conseguiu deslocar a oposição da vida política nacional. Trata-se da cooptação levada ao extremo da eficiência. Pena o partido não demonstrar a mesma aptidão na gestão da economia.
Talvez porque a correspondência na esfera econômica para a cooptação usual no meio político seja o método do apadrinhamento, modalidade de capitalismo de Estado em que a concentração não é total, mas o governo define que segmentos e grupos privilegiar. O que, aliás, explica o sucesso empresarial do consultor Zé Dirceu. E aqui tampouco há novidade.
Com a justificativa de impulsionar o desenvolvimento, estímulos setoriais vêm sendo elocubrados pela burocracia nacional desde a política do Encilhamento, nos primórdios da República. Sempre gerando distorções de difícil correção, na contramão da livre concorrência e em prejuízo da eficiência.
Pois bem, eis que o julgamento dos 38 réus do “mensalão”, que começa hoje, pode contribuir para uma reflexão dos métodos e parâmetros adotados no Brasil.
Duas questões preliminares, uma de ordem técnica, a outra de natureza moral, mas disciplinada em Lei, dominarão o início dos trabalhos no STF. Pelo que manda a Lei, com base na moral, o ministro José Antonio Dias Toffoli deveria se declarar impedido de julgar. Afinal, advogou para o PT, prestou assessoria jurídica na Casa Civil quando o titular era Zé Dirceu e, antes de ser indicado ao STF por Lula, representou três dos “mensaleiros”. Além disso, sua companheira também já representou os acusados.
No momento em que este texto está sendo escrito ainda não se tem notícia da decisão de Toffoli. O desenrolar dos acontecimentos dirá se é um homem de princípios ou de resultados.
A outra questão de ordem, a ser apresentada pelo ex-ministro da Justiça Marcio Thomaz Bastos, que comanda a defesa dos acusados, é saber se a competência para julgar os 35 acusados que não têm mandato (e, na tese do ex-ministro, não fazem jus ao foro privilegiado) é mesmo o Supremo, pela conexão dos crimes, ou se seus processos devem ser desmembrados e remetidos à primeira instância.
Nossos “piores instintos selvagens”, para usar o linguajar de Roberto Jefferson, independentemente da melhor escolha técnico-jurídica, recomendam manter o julgamento onde a punição possa ser mais exemplar. Não por uma questão de resultado apenas, mas de princípio. 

Por Nilson Mello

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