Eleição municipal com ou sem
ideologia
Na
propaganda eleitoral, não faltarão pesquisas (e marqueteiros) a indicar aos
candidatos o que o eleitor quer e precisa ouvir, como uma trama de folhetim que
se constrói progressivamente. O discurso eleitoral não é um produto pronto e
acabado, mas moldado de acordo com os humores captados pelas sondagens. Genuíno
ou não é o que se terá, e é o que se faz em qualquer parte do mundo.
Como surpresa de última
hora, por força de decisão apertada na tarde desta quinta-feira, revertendo
posição definida em março, o TSE (atendendo a recurso do PT) trouxe de volta ao
pleito os candidatos cujas contas foram reprovadas nas últimas eleições. Mas,
atenção: como alertou um âncora de rádio hoje de manhã, ninguém é obrigado a
votar neles.
Desnecessário lembrar que em
campanhas municipais, por regra, o foco deve estar nas questões locais, embora
sob a influência – e com repercussão nestes – dos grandes embates nacionais. Em
qualquer caso, a julgar pelo histórico, mensagens com efetivo conteúdo
programático ou proposições exequíveis serão peças raras.
Como de praxe, não faltarão
promessas embaladas em boa dose de populismo; discursos amparados no
voluntarismo e nos atos de vontade. As articulações que definiram as coligações
na reta final do prazo estabelecido pela legislação eleitoral - e que
culminaram com uniões até bem pouco inimagináveis – corroboram com essa
expectativa.
No caso de São Paulo,
contudo, a nacionalização da campanha, em virtude da participação de um
presidenciável como candidato a prefeito e de um ex-presidente como
cabo-eleitoral de “luxo”, deve dar outra dinâmica e dimensão ao pleito.
As articulações foram
surpreendentes tanto no gênero quanto no número de partidos coligados. Na
categoria gênero, destacam-se os neo-aliados. A parceria entre a “esquerda” de
Lula e a “direita” de Maluf, em prol de Fernando Haddad em São Paulo, e o
casamento dos até então arquiinimigos Maia e Garotinho, em benefício da
candidatura dos filhos Rodrigo e Clarissa, no Rio de Janeiro, passaram para o
eleitor (aquele 1% da população que não apenas lê os jornais, mas sabe
interpretá-los) a impressão de que os políticos são capazes de fazer qualquer
negócio.
Como já lembrado neste Blog,
a despeito das distâncias aparentes de conteúdo, uniram-nos o método. A vontade
de estar no “Poder” (pragmatismo) somada ao tipo de discurso para chegar lá
(populismo) sintetiza esse método. No quesito quantidade chama a atenção o
extraordinário número de partidos coligados em apoio a candidatos da situação –
o que prova o quanto estar no Poder é o que realmente interessa, não importando
o conteúdo. No Rio, o prefeito disputa a reeleição com o apoio de 19 legendas e,
obviamente, com ampla margem de favoritismo.
A máquina pública, não
obstante todas as restrições legais ao seu emprego durante as campanhas, sempre
desequilibra o jogo em favor do candidato à reeleição. Não seria então mais
justo estabelecer mandatos mais longos, porém, sem a possibilidade de recondução?
Assunto para outro artigo.
Oportuno agora é entender
onde está a ideologia referida no título deste texto. Pois bem, a ideologia
pode ser encontrada no substrato. É lá que ela deve ser procurada. Não é fácil
identificá-la porque ela avança de forma subjacente em meio a qualquer
discurso, campanha ou embate político. Não raro, e no Brasil muito
frequentemente, vem com sinais trocados, aumentando a confusão.
Empregar os termos “direita”
e “esquerda” pode ser démodé – quase
tanto quanto o próprio termo démodé. Mas
é um parâmetro útil, pois facilita a análise. Então, seguindo a extrema simplificação,
podemos dizer que estariam na esquerda políticos e partidos que a rigor
defendem, em menor ou maior grau, a transferência dos meios de produção para as
mãos do Estado. (Na verdade, a
transferência dos meios de produção do particular para o Estado seria, na
concepção marxista, uma consequência da abolição da propriedade privada).
Foi com base neste critério
simplificado que, na aliança heterodoxa de São Paulo, Lula foi colocado à
esquerda e Maluf à direita no espectro político. Sem qualquer juízo de valor.
Maluf, contudo, considerando-se injustiçado, já anunciou que é mais de esquerda
do que Lula. Tudo bem.
Mas, e no restante da
campanha, essas distinções são simples rótulos? Vejamos: o PV é um partido de
esquerda. Declaradamente, é um partido de orientação socialista. Pois bem, a
principal proposta da candidata do PV à prefeitura do Rio, anunciada com pompa
esta semana, é a regularização fundiária, ou seja, a formalização de títulos de
propriedade.
Isso pode significar que o
PV – ou a sua candidata - pensa ser de esquerda, mas, em contradição com os
ideais socialistas que alega representar, não consegue conceber o progresso do
homem e da sociedade sem o instituto da propriedade privada. Pode ainda
significar que o PV, assim como outros partidos considerados de esquerda, vê
essas incongruências como uma saudável evolução do próprio socialismo – que,
neste caso, por definição, seria qualquer outra coisa menos socialismo. Ou
então, em sentido contrário, entende essa concessão como uma etapa de um
objetivo maior e mais distante. Por fim, a promessa, a despeito de estar
baseada em experiências de sucesso em outros países, pode simplesmente ter
significado mais um discurso demagógico em busca de votos.
Prepare-se, então, eleitor,
para julgar as muitas incongruências que ouvirá nos próximos meses, lembrando
que algumas delas podem até ser bem-vindas.
Nota: Para Karl Marx, a justiça social é um problema de caráter
estritamente econômico. Problemas econômicos exigem soluções de cunho
econômico. A centralização da propriedade e da produção na mão do Estado, num
primeiro momento, e o comunismo dos bens (fim da propriedade privada), no
momento seguinte, promoveria a igualdade entre os homens, pondo fim a toda
injustiça social. A tese é vigorosa, não fosse um aspecto primordial: pressupõe
a proeminência, como resultado de uma nova ordem institucional (Ditadura do
Proletariado), de indivíduos capazes de renunciar aos seus próprios anseios; de
ignorar as diferenças inatas (de gostos, de caráter, de intelecto etc) em relação
a todos os demais; de tolerar a igualdade absoluta ainda que absolutamente
desiguais. O Estado, por meio da coerção, até pode estabelecer uma igualdade
formal absoluta expressa em leis. Mas não tem como alterar a natureza, que
continuará a produzir indivíduos imperfeitos, com virtudes e vícios distintos,
e, no final das contas, muito desiguais entre si.
Retomaremos o tema.
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