sexta-feira, 11 de março de 2011

Alemães, franceses e suas ambiguidades

Por Nilson Mello* 
              
    Quase 100 mil soldados franceses haviam morrido tentando impedir o avanço nazista em 1940, quando a França, sob a liderança do marechal Pétain, ex-herói da Primeira Guerra, decidiu firmar um armistício com a Alemanha de Hitler. Outros 250 mil estavam feridos e cerca de 500 mil já haviam sido aprisionados e enviados a campos de prisioneiros, de onde só sairiam cinco anos depois, se sobrevivessem às severas condições.

Eram militares profissionais, alguns veteranos da Grande Guerra, mas também reservistas que deixaram suas ocupações nas cidades e no campo, e suas famílias, para lutar contra os invasores.

     A esses se juntariam, nos anos seguintes, mais um milhão de franceses, enviados a campos de prisioneiros, de concentração ou de extermínio, por combater os alemães, integrando os grupos da Resistência (os maquis), por não colaborarem com a Alemanha como Berlim entendia que devessem fazer ou simplesmente por serem judeus, ciganos, eslavos, comunistas...

A população da França na época era de aproximadamente 40 milhões. O que significa que provavelmente nenhuma família francesa deixou de ter um parente ferido, morto ou aprisionado pelo regime nazista. Sem contar os amigos, vizinhos, conhecidos, empregados.

Ainda assim, Pétain entendia ser possível estar à frente de um regime fantoche, sediado em Vichy, com relativa autonomia administrativa sobre a metade sul do país, trabalhando pelos interesses da França ao mesmo tempo em que era vassalo de seus ocupantes.

     Vinho & Guerra – os franceses, os nazistas e a batalha pelo maior tesouro da França, de Don e Petie Kladstrup (Editora Zahar, 2002, 254 páginas), mostra que a credibilidade de Vichy e as ilusões criadas pelo seu ex-herói não demoraram muito a ruir.

Como seria possível degustar um bordeaux num café dos Champs Elysées como se nada tivesse acontecido, enquanto oficiais alemães circulavam pelas ruas ditando o ritmo da vida com seu “passo de ganso” e mais de um milhão de compatriotas apodreciam em prisões nazistas?

     O livro do casal Kladstrup expõe as incongruências do regime de Vichy e dos próprios franceses pela ótica dos vinicultores. Mais de 320 milhões de garrafas de vinho - relatam os autores -, alguns dos melhores rótulos e safras, foram envidas anualmente para a Alemanha durante o período de ocupação gerando imensos prejuízos para a França e seus produtores.

O confisco disfarçado do “maior tesouro da França” foi razão mais do que suficiente – se já não houvesse outras tantas - para que as grandes maisons bem como os pequenos produtores de vinho colaborassem decisivamente com a Resistência. As histórias de sabotagem, dissimulação e trapaça para esconder os melhores vinhos dos nazistas são saborosas, apesar do drama envolvido – ou talvez por isso mesmo.

Drama que chegou ao extremo nas famílias da Alsácia. A região, na fronteira dos dois países e que, ao longo da história, ora era francesa, ora alemã, foi prontamente anexada por Hitler em 1940. Não se tratava de território francês ocupado, mas, na visão germânica, da própria Alemanha. Muitas dessas famílias tinham filhos lutando em lados opostos: combatendo como voluntários, entre os aliados; e recrutados pelo Exército alemão e enviados, a contragosto, à frente russa.

 Uma vida de ambiguidades foi o que restou aos franceses naqueles difíceis anos do regime de Vichy. Pétain foi julgado como traidor ao término da Guerra. O livro não discorre sobre este capítulo e nem analisa o que passava pela cabeça do velho marechal. Não é este seu foco. Mas indiretamente nos induz a reflexões.

Pétain vislumbrou para a França derrotada militarmente uma saída política dentro de uma nova ordem mundial que, supunha, estaria por muito tempo sob a égide nazista. Contudo, não deixa de ser espantoso como um experiente militar e político pôde levar tão longe suas ilusões e, durante algum tempo, ludibriar seu povo, fazendo-o acreditar nelas. Mas os franceses não têm do que reclamar. Antes disso, do outro lado da fronteira, um grande farsante já levara o povo alemão a um pesadelo muito pior.  



Passados mais de 60 anos do fim da Segunda Guerra o que mais impressiona é justamente constatar que dois povos dos mais cultos e desenvolvidos do mundo, alemães e franceses, seguiram seus líderes em aventuras que não poderiam ter outro desfecho a não ser tragédias de grandes proporções.

Fortalecer instituições, ao invés de apostar nos líderes, desconfiando sobretudo dos mais carismáticos, pode ser um antídoto a essas tragédias.

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