Precisamos
falar sobre o OGMO
(Este artigo foi publicado simultaneamente com o site Consultor Jurídico - Conjur, em 19 de junho)
Quando se diz que o modelo de exploração de atividades
portuárias adotado no Brasil é o landlord
port, ou seja, aquele em que o Poder público é responsável pela administração
da infraestrutura e áreas comuns, cabendo ao setor privado os investimentos na
superestrutura e a operação em si, se está fazendo um diagnóstico parcial.
A
rigor, devemos considerar que no Brasil temos um modelo híbrido para o setor,
pelo qual nos Portos Organizados (públicos) adota-se o regime landlord port, enquanto nos terminais de uso eminentemente
privado (os chamados TUPs) temos algo parecido com aquilo que na doutrina
especializada se convencionou chamar de fully
privatized port, ou terminal totalmente privado.
O reexame desses conceitos é oportuno no momento em que o
Tribunal de Contas da União (TCU) acaba de divulgar relatório de auditoria que
aponta uma grande taxa de ociosidade nos Portos Organizados, ao mesmo tempo em
que o governo avança nos processos de licitação de algumas áreas e pretende
flexibilizar regras relativas à exploração dessas instalações.
O regime
fully privatized port puro é pouco
utilizado no mundo, tendo como principais representantes a Inglaterra e a Nova
Zelândia. A sua menor adoção se deve à relevância dos portos em termos de
soberania, o que faz com que a maioria das nações prefira regimes de maior
controle, considerando que os terminais portuários em geral são a principal
porta de entrada e saída de mercadorias, além de receberem um grande fluxo de
pessoas, ingressando no país ou em trânsito para o exterior. Eis porque o
regime mais comum, adotado em portos como Hamburgo, Roterdã, Barcelona,
Valência, Antuérpia, Le Havre e Marselha, é o landlord port.
Além
do landlord port e do fully privatized port, tem-se ainda os regimes
tool port, em que o porto é público,
mas estabelece contratos com operadores portuários (prestadores de serviços que
atuam dentro da área pública, sem grande autonomia), e service port, em que tudo está a cargo do setor púbico, desde a
administração até a operação. No Brasil, tivemos um modelo eminentemente
público até 1993, quando foi promulgada a Lei de Modernização dos Portos (Lei nº 8.630), que permitiu o arrendamento, mediante
licitação, de áreas dentro dos Portos Organizados destinadas a terminais
operados pela iniciativa privada.
Antes
disso, em 1990 (Lei nº 8.029), um primeiro
passo em direção à desestatização do setor, visando à sua maior eficiência, já
havia sido dado com a extinção da Portobrás, estatal criada em 1975, e sua
consequente substituição pelas companhias docas, que passaram a exercer, na
maior parte do país, a função de Autoridade Portuária, dentro do modelo landlord port, sendo que em alguns
estados esse papel foi delegado aos entes federados. Hoje, dos 34 portos
organizados distribuídos pelos 7,5 mil km de litoral brasileiro, 16 têm como
autoridade portuária uma companhia docas vinculada à União e os demais foram
delegados a estados ou municípios.
A partir
da década de 1990, portanto, uma grande leva de investimentos privados, feitos
pelos arrendatários de áreas públicas localizadas dentro dos Portos Organizados,
garantiu ao setor um significativo avanço em termos de eficiência e
competitividade. Foi um salto considerável que evitou um colapso no comércio
exterior, tendo em vista o aumento vertiginoso das trocas globais nos anos
seguintes. Antes disso, terminais privativos, localizados fora das áreas dos Portos
Organizados (públicos), já eram autorizados a operar, desde que para movimentar
carga própria de forma preponderante.
Em
2013, um novo marco regulatório (Lei nº 12.815
e Decreto nº 8.033) garantiu um novo salto ao permitir
que os terminais de uso privado (TUPs) movimentassem cargas de terceiros, o que
foi decisivo para o setor, pois propiciou outra onda de investimentos em novas
instalações, bem como a ampliação e a modernização das existentes. Hoje, os
TUPs somam dezenas de instalações, que respondem por quase 70% da carga
movimentada nos portos brasileiros.
Não
restam dúvidas de que o fim das restrições à carga de terceiros nos terminais
eminentemente privados foi benéfica para o país, pois tornou o setor mais
atrativo para os investidores - e o próprio desempenho dos TUPs nos últimos
anos, em termos de eficiência e produtividade, comprova o acerto. Contudo, o
que parece claro é que o modelo híbrido adotado no Brasil implica uma
assimetria concorrencial entre os regimes dos Portos Organizados (landlord port) e dos portos de uso
privado (fully privatized port), com
vantagem para esses em relação àqueles.
Ainda
que o desempenho dos terminais arrendados possa ser tão bom quanto o dos TUPs,
a taxa de ociosidade de algumas áreas é reveladora de obstáculos maiores. A mencionada
auditoria do TCU identificou que, dentro dos Portos Organizados, essa taxa é,
em média, de 56%, chegando a 90% em alguns extremos (Docas do Ceará), e as
razões apontadas para a distorção são as regras mais rígidas a que os
arrendatários da infraestrutura pública estão sujeitos, em especial a exigência
de contratação de pessoal por intermédio do Órgão Gestor de Mão de Obra (OGMO).
Na
época da edição do novo marco regulatório de 2013 houve intensa discussão
acerca da possibilidade de surgimento dessa assimetria. Muitos chegaram a
propor que os Terminais de Uso Privado também permanecessem adstritos à
intermediação da OGMO, o que seria um contrassenso, pois o que se pretendia com
a nova modelagem dada aos TUPs era o aumento da eficiência, não a reprodução de
um handcap (desvantagem).
Portanto,
a queixa de arrendatários quanto à assimetria procedia (e a taxa de ociosidade
constatada hoje é a prova disso), o que estava errado era a proposta de solução.
Se o debate chegou a ser acalorado, faltou transparência e coragem para tocar
no ponto crucial: o fim do OGMO, esse ente que pode ser considerado o último
traço de anacronismo do setor portuário brasileiro, na prática, um monopólio de
caráter para-sindical que define como uma empresa privada deve contratar mão de
obra, quem deve contratar e de que forma devem ser capacitados, treinados e
organizados (incluindo cadastro e escala de trabalho) os profissionais que lhe
prestam serviços.
Só a
burocracia que envolve essa intermediação - e os custos inerentes a ela - já
seria razão suficiente para justificar o seu fim, sem contar a questão de
fundo, ainda mais importante: por que uma empresa privada deve ser obrigada a
recorrer a terceiros para fazer algo essencial à sua atividade, qual seja, a
gestão de pessoal especializado? Portos
são elementos fundamentais para a cadeia produtiva de um país e representam um
elo integrador da logística de transportes (navegação com ferrovias e rodovias).
A necessidade de sua expansão física e sua modernização é permanente, tendo em
vista a competitividade da economia em face do irrefreável aumento de demanda
ao longo do tempo.
Não
é razoável que infraestruturas portuárias públicas fiquem ociosas, ainda que
tenhamos, cada vez mais, a possibilidade de expansão de instalações privadas.
Vale dizer que os Portos Organizados constituem um formidável ativo público, e
os TUPs não vieram substituí-los, mas, sim, acrescer capacidade ao setor, a fim
de prevenir gargalos geradores de ineficiência. Para superar o problema da
ociosidade, o ministro da Infraestrutura, Tarcísio de Freitas, está propondo modelos
de arrendamento menos rígidos e contratos temporários (cinco anos de exploração,
ao invés dos 35 dos arrendamentos regulares).
A
questão é saber se essa solução paliativa não gerará novas assimetrias, além de
não resolver o problema de base. O modelo híbrido brasileiro (regimes landlord port e fully privatized port conjugados) é viável. Portos Organizados e TUPs não são excludentes, mas
complementares. Porém, a redução de assimetrias em prol da concorrência deve
ser uma meta. Considerando a evolução do arcabouço legal que disciplina o setor
portuário desde a década de 1990, chegou a hora de se falar sobre o fim do OGMO,
mesmo que isso represente um grande desafio político.
Afinal,
todos os demais importantes obstáculos à modernização do setor já foram
removidos. O que não se pode é assistir inerte à progressiva ociosidade de
áreas portuárias públicas em função da manutenção de um anacronismo.
Por Nilson Mello
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