segunda-feira, 15 de junho de 2020

Artigo



A democracia funcionando

(Obs: artigo publicado simultaneamente com o jornal Monitor Mercantil e Correio da Manhã)

            O Congresso devolveu na semana passada ao Planalto a MP que atribuía ao ministro da Educação competência para indicar reitores de universidades federais, o que é inconstitucional. Ao mesmo tempo, o ministro Luiz Fux, do Supremo, instado por uma ação movida pelo PDT, reiterou o óbvio, embora muitos relutem a enxergar: à luz do artigo 142 da Constituição, as Forças Armadas podem ser empregadas na manutenção da lei e da ordem, bem como na defesa das instituições, mas não podem ser usadas para que um Poder intervenha em outro, o que equivaleria a um golpe militar. O texto constitucional é claro, sem margem para devaneios jurídicos.
A firmeza de Congresso e STF não impediu que houvesse, nos últimos dias, uma relativa diminuição das tensões institucionais que haviam feito o mês de maio parecer um “setembro negro”. A mudança de humor, persistindo, abre espaço para o debate de ideias e o encaminhamento de propostas que serão decisivas para a retomada da economia após o fim da quarentena, num ano em que a queda do PIB brasileiro pode ser de 7%, ou até 9%, se houver uma segunda onda de contaminação de Covid-19.  
A preocupação é pertinente uma vez que neste sábado (13/06) Pequim identificou novo crescimento dos casos e determinou um lockdown parcial. Mais uma razão para que o empenho na busca do diálogo entre os Poderes seja renovado. As reformas administrativa e tributária precisam retornar à pauta. A primeira visa a tornar a máquina pública mais eficiente; a segunda, a simplificar o sistema, com possibilidade de redução da carga, dependendo, é claro, do que for feito em termos de reestruturação administrativa.
Importantes eixos devem ser contemplados numa verdadeira reforma tributária, entre eles, o princípio da progressividade (mais ricos pagando mais, mais pobres pagando menos) e a maior ênfase na renda, não na produção ou no consumo, justamente para proteger a economia e as camadas economicamente menos favorecidas. O presidente da Câmara acenou que poderá incluir, na reforma tributária, um novo programa de renda mínima, desde que isso não implique comprometimento do equilíbrio fiscal. Por outro lado, o Executivo mantém em andamento a agenda de licitações para portos, aeroportos e rodovias.
Aliado ao compromisso fiscal, a ser restabelecido após as medidas emergenciais (a expressiva cifra de R$ 45 bilhões em auxílio até aqui), o setor de infraestrutura deverá ser a “ancoragem” da retomada, com uma nova leva de investimentos que deverão reaquecer a economia. O vigor demonstrado pelo agronegócio em meio à crise nos autoriza a manter o otimismo. A safra de grãos este ano deverá somar novo recorde, de 250 milhões de toneladas. O movimento nos terminais portuários, por onde passam 95% de nossas exportações, mantém-se dinâmico, sem grandes recuos, o que contribui para a atrair os investimentos em infraestrutura.
Mas a distensão política será decisiva. Cabe dizer que ao governo os atritos só trouxeram prejuízo, como demonstraram os indicadores de rejeição ao presidente da República, que só agora arrefecem, bem como os pedidos de impeachment enfileirados na Câmara. É preciso ser um “torcedor” muito otimista (como, aliás, são os apoiadores do presidente Bolsonaro) para não interpretar esses dados como sintomas de fragilidade e vulnerabilidade política. O prejuízo, contudo, foi maior para o país, que perdeu a chance de estabelecer uma política unificada e mais eficaz de enfrentamento da crise sanitária, o que certamente poderia ajudar a reduzir os seus danos.  
Num momento de crise, o que se espera das lideranças – e nas diferentes esferas – é um discurso de união, não a reiteração dos antagonismos e a aposta na polarização. Em respeito à verdade, não se pode dizer que os números no Brasil, apesar de dramáticos, sejam o de uma “carnificina” (ou “genocídio”, como prega a narrativa de oposição), uma vez que as estatísticas aqui não são relativamente piores, considerando o tamanho da população, às de outros países, em especial os europeus, sempre referência em virtude do grau de desenvolvimento. Mas é razoável deduzir que, unidos e sob uma liderança conciliadora, teríamos muito melhores condições de superar a pandemia e a crise econômica que se seguiu a ela.
De qualquer forma, para aqueles que desconfiam da solidez da democracia brasileira, o recente período de turbulência veio reforçar a tese paradoxal de que é em meio aos conflitos que as instituições democráticas revelam o seu vigor. Quem disse que democracia não é uma obra acabada e sim um processo de construção que exige esforço e vigilância constantes estava certo. E é o que têm feito o Legislativo e o Judiciário, reiteradamente, barrando ímpetos inconstitucionais do Executivo. Os ministros do Supremo nem sempre estão cobertos de razão, mas há meios legais de contestar suas decisões, sem necessidade de afrontas ou ameaças.
Por isso ajudaria muito se o próprio presidente da República abandonasse o cacoete de reiteradamente testar os limites institucionais, senão por genuíno respeito às instituições, por pragmatismo. Afinal, tem muito a perder: além do próprio mandato (os processos ganham força), o fim do sonho de reeleição. A não ser que esteja fazendo uma aposta ainda mais arriscada para si, sendo difícil acreditar que as Forças Armadas apoiariam uma aventura golpista. Lembrando que, a essa altura, só uma parcela reduzida do eleitorado não entendeu que, ao delimitar o raio de ação do Executivo dentro dos parâmetros constitucionais, Executivo e Legislativo nada mais fazem do que cumprir o seu papel, atuando como freio e contrapeso. É a democracia funcionando.
Por Nilson Mello
           
           


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