Os
incendiários e os bombeiros
(Obs: este artigo foi publicado simultaneamente no jornal Monitor Mercantil)
O
inquérito aberto no Supremo para apurar as acusações do ex-ministro da Justiça
Sergio Moro, de ingerência com desvio de finalidade na Polícia Federal,
analisará se houve, por parte do presidente da República, crimes de corrupção
passiva privilegiada, falsidade ideológica, obstrução da Justiça, advocacia
administrativa e prevaricação. Por outro lado, poderá verificar, também, se
houve denunciação caluniosa por parte do ex-ministro, ou até mesmo pedido de
vantagem indevida, configurada numa previdência especial não prevista em lei.
Convenhamos, é um inventário penal e tanto.
Mesmo
que se possa imaginar que, ao término, o seu arquivamento será pedido pela
Procuradoria Geral da República e deferido pelo Supremo – e não há nada por
enquanto que garanta que isso ocorrerá –, a existência em si de uma
investigação com esse peso já seria razão suficiente para que atores políticos
que ocupam cargos de relevância na estrutura do Estado, com responsabilidades
institucionais indissociáveis de suas funções, pautassem suas decisões e
pronunciamentos pelo equilíbrio e pela ponderação. Mas não é o que se viu neste
último mês de maio.
Aonde
se pretende chegar com a escalada das tensões? Bem, uma vez que o retrocesso democrático
parece algo fora de questão para pessoas de bom senso, em especial para aqueles
que foram democraticamente eleitos ou que têm por missão a defesa das
instituições, a resposta é que não chegarão a lugar nenhum. Até porque chegar a
um ponto sem retorno nos embates partidários e ideológicos – a chamada “ruptura”
– equivale a um fracasso político.
Não
é demais repetir que soluções “fora da curva”, ou seja, dissociadas das regras
constitucionalmente previstas, serão sempre o pior dos caminhos porque, além de
não resolver os problemas presentes (no máximo, os escondem, invariavelmente
mediante a força), criam outros de maior complexidade. “Soluções” fora da curva
são, na verdade, a “não solução”. Aliás,
a alusão a uma “ruptura”, em meio a um ambiente de tensão política como o que
vivemos hoje é inadmissível, sobretudo quando provém de um parlamentar eleito
pelo voto popular que, além do mais, é filho do presidente da República. Se o
objetivo de Eduardo Bolsonaro, ao vulgarizar a questão durante uma entrevista,
era produzir mais instabilidade, pode ter tido algum êxito – embora hoje pouca
gente séria leve o deputado a sério.
Mais
grave (e esdrúxula), porém, foi a menção feita por alguns juristas ao artigo
142 da Constituição Federal – dispositivo que permite o emprego das Forças
Armadas na manutenção da lei e da ordem, bem como na defesa dos poderes
constituídos – numa eventual intervenção do Executivo no Supremo Tribunal
Federal. Ora, como está claramente expresso no texto constitucional, as Forças
Armadas devem defender os poderes constituídos e não investir contra eles ao
sabor dos acontecimentos e interesses políticos momentâneos. Tratou-se, portanto, de um completo devaneio
jurídico.
Não
há como negar que o ambiente carregado foi em grande parte resultado da postura
adotada pelo presidente da República, disposto ao embate e à polarização desde
o primeiro dia de mandato. Hoje, a julgar pelo alto índice de rejeição que
enfrenta* e pelas três dezenas de pedidos de impeachment protocolados na
Câmara, talvez tenha compreendido (ou não?) que a aposta foi demais arriscada –
até porque o deixou refém do Centrão, bancada conhecida pelo seu fisiologismo.
Mas Bolsonaro não é o único responsável pelo
acirramento dos ânimos. O próprio ativismo judicial do Supremo, com seu
conceito de “mutação constitucional”, com recorrente invasão da competência de
outros poderes, há muito contribui para a insegurança jurídica e, claro, para a
escalada das tensões. O inquérito das fake
news, em que os papeis de vítima, promotor, investigador e juiz se
confundem numa só figura, é revelador do exagero conceitual. Na atual
conjuntura, esse processo foi agravado por algumas decisões monocráticas no
mínimo inoportunas.
Um
pedido descabido, como o apresentado por partidos políticos, de apreensão para
perícia do celular do presidente da República (que sequer é réu), poderia ser
perfeitamente indeferido de pleno pelo ministro que preside o inquérito, em
nome da estabilidade, sem necessidade do protocolar parecer do procurador geral
da República – que, aliás, acabou sendo pela rejeição do pleito. No caso em
questão, como não se procurou evitar o esgarçamento, a resposta veio num tom
acima, na forma de uma nota oficial, em clara advertência, do ministro Augusto
Heleno, da Segurança Institucional, e numa declaração do próprio presidente da
República, de que não entregaria o aparelho de forma alguma. Uma retórica
lamentável, num momento difícil para o país.
Um
dos princípios basilares do Estado de Direito é o de que todos estão submetidos
à Lei e às decisões judiciais. Se há inconformismo em relação à Justiça, a
arguição se dá pelas próprias vias judiciais, sem atalhos. Para que então as
bravatas? A quem elas serviram? Certamente, os ministros generais já estariam
contrariados pela convocação que haviam recebido dias antes, para depor no
referido inquérito da PF: no despacho de intimação, havia a desnecessária
referência à expressão “debaixo de vara”, resgatada do Código Penal do Império.
A que se deveu o seu emprego? Uma provocação? Com que intuito?
Vai
no mesmo sentido, de inadequação, inoportunidade e esgarçamento, a participação
de Bolsonaro em frequentes manifestações que, invariavelmente, afrontam o
Congresso e o Judiciário, em particular o Supremo Tribunal Federal. Presidentes
da República, por regra, não devem participar de manifestações. Simples: a sua
presença nas que são a favor de seu governo soa redundante e nas que são contrárias
a outras instituições do Estado, inconstitucional e, portanto, passível de
responsabilidade.
A
recorrência dessas manifestações talvez explique a decisão do presidente do
inquérito sobre a PF, ministro Celso de Mello, de divulgar a íntegra do vídeo
da reunião ministerial do dia 22 de abril. A rigor, uma reunião ministerial não
deveria ser divulgada. Até porque, não havia ali prova concreta de
interferência na PF. E ainda que houvesse, bastava examinar essas provas, sem
necessidade de divulgação do conteúdo completo do encontro. Porém, o clima de
hostilidade contra Congresso e Supremo foi provavelmente o que levou o ministro
a decidir pela sua liberação completa, como sinal de alerta à sociedade.
O
fato é que, uma vez divulgado o vídeo, não é possível se manter indiferente ao seu
teor, tampouco deixar de deplorar a sua forma, inadmissível. Não é o que um
país civilizado espera de uma agenda ministerial, embora uma parcela do
eleitorado vibre com as afrontas e os termos chulos. Nunca é demais salientar:
posturas hostis, contrárias à lei, produzem reações radicais. Retroalimentam a escalada
de tensões. Vimos uma pequena amostra no último fim de semana em Curitiba, em
São Paulo e no Rio.
Em
plena crise de Covid-19, é mais do que a hora de os “bombeiros” assumirem o
lugar dos incendiários. A reunião desta segunda-feira (01/06) em São Paulo,
entre o ministro da Defesa, Fernando Azevedo, e o ministro Alexandre de Moraes,
do Supremo, pode ser um indicativo de que homens responsáveis decidiram parar
de brincar com fogo, para, finalmente, promover o diálogo entre as instituições
que representam. É o mínimo que se espera deles.
Por Nilson Mello
* Entre essas pesquisas, a
XP/IPEST aponta 50% de rejeição hoje, contra 36% em março, e apenas 25% de
aprovação.
Concordo Nilson.
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