Mario Augusto Santos
Blog Meta Mensagem - Assistimos a uma crise
na Ucrânia sem saber ao certo se a neutralidade, no caso, seria ética. O que de
fato está em jogo no conflito envolvendo ucranianos e separatistas pró-Rússia?
Mario
Santos – Ucranianos e russos conviveram durante séculos, não obstante repressão
russa da língua e cultura ucranianas. A repressão ora se intensificava, ora
relaxava, mas nunca logrou extingui-las completamente. Lenin, afinal, era a
favor de incentivar a cultura dos povos que compunham a União Soviética. Stalin
restringiu muito esses propósitos.
O
desmonte de um império é sempre complicado. Durante o império soviético, muitos
russos estabeleceram residência na Ucrânia, sobretudo na parte oriental, onde
várias indústrias estratégicas foram localizadas. A Crimea, por exemplo, base
naval soviética, foi adotada como lar de milhares de oficiais russos reformados
e suas famílias. Com o tempo, passaram a ser a maioria da população. Do mesmo
modo, muitos ucranianos foram morar na Rússia. O desenvolvimento da indústria
de petróleo da Rússia deve muito a ucranianos. Na União Soviética, todos eram
soviéticos.
A
independência transformou subitamente esses contingentes de russos em
estrangeiros. A convivência, então, assumiu aspecto político, uma vez que
contigente grande de estrangeiros em qualquer país é sempre complicador.
Estima-se que de 30% a 40% da população da Ucrânia são russos ou de origem
russa. No entanto, sendo ambos povos eslavos, com línguas quase idênticas, o
convívio não foi difícil. Diria que foi bem mais fácil do que nos países
balticos, onde a população local não-eslava manifestou rejeição aos russos
subitamente estrangeiros. No entanto, acredito que fator econômico pode estar
contribuindo para criar a atual desarmonia entre ucranianos e russos. A Ucrânia
perdeu cerca de 60% de sua economia com a independência. As conseqüências
sociais foram dramáticas. Na Rússia, a situação econômica logo depois do
desmonte da União Soviética era também desastrosa, o que retirou dos russos na
Ucrânia qualquer possibilidade de esperar socorro externo. Ucranianos e russos sofreram
juntos enormes dificuldades. A situação hoje é diferente. A Rússia cresce
economicamente e a Ucrânia continua estagnada por causa da configuração
negativa de sua política interna, dominada por clãs herdados do período soviético.
Na Rússia, essa mesma situação, se não superada, foi satisfatoriamente
controlada por obra de Vladimir Putin. Hoje, a população russa na Ucrânia pode
esperar socorro de seu país de origem. Portanto, o descompasso no crescimento
econômico da Rússia e da Ucrânia pode ter ativado problema latente.
BMM
– Os russos da Ucrânia tomaram a iniciativa de pedir ajuda à Rússia, passando
por cima de Kiev, ou essa súbita desarmonia tem outra causa?
Mario
Santos – Em minha opinião, o impulso que detonou a crise vem da Ucrânia Ocidental.
Essa região, antes polonesa, foi incorporada à força à União Soviética como
conseqüência do tratado Molotov-Ribbentrop. Consequentemente, sempre abrigou
forte sentimento antirusso e um ultranacionalismo reflexo. Yeltsin buscou nessa
região apoio para impulsionar o movimento libertador que resultou na independência
da Ucrânia e que levou, simultaneamente, ao desmonte da União Soviética. Era a
facção da Ucrânia Ocidental que, como participante do governo de, digamos, união
nacional, pleiteava aproximação com a União Européia logo depois da independência.
Na época, esses esforços não tiveram resultado por causa do enorme peso que
seria para a Europa Ocidental soerguer um país do tamanho da Ucrânia, sobretudo
em vista do fato de que o único setor civil organizado politicamente era
poderosos clãs, cujos interesses nem sempre coincidiam com os do país e muito
menos com a agenda econômica que o FMI e outras instituições europeias
pretendiam impor. A situação hoje mudou bastante. A Ucrânia continua estagnada
e os clãs ainda controlam a política interna, mas a facção da Ucrânia Ocidental
assumiu o poder em Kiev depois de organizar longas manifestações que resultaram
na expulsão de presidente pró-russo, e detém esse poder com ajuda do Ocidente,
que aparentemente se mostra disposto agora a bancar o ônus ucraniano. O que
noto, atualmente, de um lado, é o governo de Kiev que rejeita sistematicamente
qualquer entendimento com a Rússia e, do outro lado, seguidas tentativas de
Moscou para levar Kiev a chegar a uma composição de interesses com a Rússia
através de oferta de vantagens econômicas acopladas a fomento de revolta entre
os russos ucranianos, a formação de quadros para-militares e ao estímulo implícito
a propostas de desmembramento de partes da Ucrânia Oriental. O tradicional bate
e sopra. Esse é um jogo que Putin não pode perder. Mostrou que joga para valer
ao anexar a Crimea. Deixo para a resposta à sterceira pergunta a análise sobre
o que, em minha opinião, está em jogo nesse conflito. Antes, porém, cabem
alguns comentários sobre ética e neutralidade, mencionadas na primeira
pergunta.
Uma
política externa pode ser guiada por princípios éticos ou por interesses
nacionais. Ou ambos. Muitas vezes tambem tem por traz motivos escusos. Em minha
opinião, interesses nacionais legítimos devem sempre prevalecer. A ética é
demasiadamente subjetiva e pouco instrutiva como guia diplomático. A parte
acordos, convênios e tratados e outros instrumentos em vigor, relações
internacionais são um campo sem regras onde o poder geralmente comanda. Nesse
contexto, defender e promover os interesses nacionais deve ter prioridade
porque são pontos de referência claros e inequívocos, tanto para o planejador
como para o público interno. Por outro lado, são poucos os princípios éticos
que têm aceitação universal, mas esses quase todos respeitam. Os violadores
geralmente sofrem opróbrio geral. Conflitos entre estados têm uma pluralidade
de motivos, geralmente legítimos do ponto de vista dos protagonistas, mas também
passíveis de solução negociada. É o caso do conflito entre a Rússia e a Ucrânia.
Ambos os lados têm suas razões, e me parece claro que interesses nacionais estão
em jogo. Como deve então o Brasil se posicionar diante desse conflito? Se o
Brasil for chamado a se pronunciar, por exemplo, num contexto de Nações Unidas,
o Brasil deve também levar em conta os seus interesses nacionais, e nesse caso
eu diria que a abstenção seria a melhor opção. O Brasil mantém boas relações
com ambos os países e não é de seu interesse prejudicá-los tomando partido. As
relações com a Rússia são mais robustas do que as com a Ucrânia, isso porque a Rússia
cresce e a Ucrânia não. Mas nem por isso o Brasil deve favorecer a Rússia em
detrimento da Ucrânia. A evolução da crise pode levar, porém, a uma mudança de
atitude. Por exemplo, se o governo ucraniano der provas de que não negocia com
a Rússia para manter viva a crise, o Brasil deve se manifestar advertindo a Ucrânia
de que está pondo em risco a paz internacional. Essa mesma advertência pode ser
dirigida à Rússia se ela, no evoluir da crise, invadir a Ucrânia, por exemplo.
BMM – Esse conflito opõe a Ucrânia à Rússia ou, na verdade, opõe a
Rússia aos Estados Unidos e à Europa Ocidental?
Mario
Santos – A Guerra Fria acabou, mas o jogo de poder entre potências continua. Os
Estados Unidos são a maior potência mundial e pretendem manter esse status.
Para isso, necessita, entre outras preocupações, impedir o surgimento de potências
ou focos de poder que possam lhes ameaçar ou enfraquecer a sua posição hegemônica.
A China visa claramente superar os Estados Unidos, mas estes ainda não
encontraram a fórmula para travar o crescimento chinês. Fator que dificulta
sobremaneira enfrentar o crescente poderio chinês é a estreita interdependência
econômica entre os dois. Não existe interdependência entre a Rússia e os
Estados Unidos.
A
Rússia é velha inimiga dos Estados Unidos. A inimizade continua não obstante o
desaparecimento da rivalidade ideológica, mas a rivalidade de poder permanece.
A Rússia é o único país que possui armas nucleares que podem destruir os
Estados Unidos e, graças à riqueza que acumula exportando energia para a Europa
Ocidental, renovou e modernizou suas forças armadas e as alicerçou sobre forte
base de desenvolvimento tecnológico. Os armamentos dessas forças equivalem ao
dos americanos e, em certos aspectos, são superiores.
Embora
a Rússia não represente ameaça direta aos Estados Unidos, ela é, do ponto de
vista estratégico, uma ameaça à Europa Ocidental, do mesmo modo que a Europa
Ocidental é, através da OTAN, uma ameaça à Russia. Essa ameaça agudizou-se com
a incorporação à OTAN das ex-repúblicas populares da Europa Oriental. Para um
país extremamente traumatizado com três invasões nos últimos 200 anos, sendo
que a última deixou cerca de 28 milhões de mortos e um país devastado, nada
mais ominoso do que a aproximação da OTAN às suas fronteiras. Para Putin, o
governo russo e o povo da Rússia, a linha vermelha seria a adesão da Ucrânia à
aliança militar ocidental. A Ucrânia é entidade muito diferente da Polônia ou
Bulgária. Para começar, a Ucrânia fez parte da Rússia desde 1654 quando, pelo
Tratado de Pereiaslav, Bogdan Hmelnitski hipotecou fidelidade ao Czar e
pediu-lhe proteção contra a Polônia e a Turquia. (Para festejar os 300 anos de
união, Krushev presenteou a Ucrânia com a Crimea. Pode-se entender a anexação
da Crimea como conseqüência da atitude do atual governo ucraniano de virar as
costas à Rússia). Além desse aspecto histórico de muita importância, outros
fatores, de igual ou maior relevância, tornam a Ucrânia vital para a Rússia.
Para citar alguns, chamo a atenção para o fator geo-político, de que os dois países
compartilham fronteira comum de mais de 2 mil quilômetros. Uma analogia do lado
ocidental seria a fronteira Estados Unidos e Canadá. Para o Canada, não há alternativa
se não a de manter estreito entendimento com os Estados Unidos sobre questões
de vital interesse destes. Outro exemplo é a Finlândia, antiga província do império
czarista, que, mesmo durante a Guerra Fria e membro do campo ocidental, jamais
tomou iniciativa que ameaçasse a segurança soviética, apesar da guerra que os
dois travaram nos anos 40 e da perda de território pela Finlândia em consequência
daquele conflito. Posso imaginar o pesadelo que seria para os planejadores
militares russos terem de classificar essa longa fronteira sem defesas naturais
como potencialmente hostil. Mas é o fator econômico que causa mais impacto de imediato.
A Ucrânia sempre foi o celeiro da Rússia e da União Soviética. Possui terras
negras, das quais mais de terço situam-se lá, e estas sempre representaram
segurança alimentar para o conjunto, pois o vasto território russo é escasso em
boas terras agricultáveis. Não poder ter acesso seguro aos grãos ucranianos
iria agravar uma das três fraquezas da Russia. A primeira delas é a dependência
na importação de alimentos do exterior. É realmente surpreendente que um país
do tamanho da Rússia não consiga se alimentar, nem desenvolver tecnologia agrícola
capaz de aumentar o rendimento das plantações de grãos. Essa dependência foi
muito explorada pelo Ocidente durante a Guerra Fria, quando periodicamente
Moscou se via obrigada a despender valiosas divisas importando trigo dos
Estados Unidos e do Canadá. A segunda fraqueza é a precariedade dos vínculos
que unem os povos que compunham a União Soviética. O colapso da União mostrou
claramente que a política repressiva de Stalin falhou no longo prazo. No
entanto, o movimento de independência ainda não terminou. Tomou agora o aspecto
de extrair as ex-repúblicas soviéticas da zona de influência de Moscou. No
entanto, qualquer movimento de neutralização da influência de Moscou sobre os
países do seu near abroad só poderá ter êxito com ajuda externa.
Explorar a animosidade remanescente entre russos e, por exemplo, ucranianos, é
a opção válida para quem visa a enfraquecer e isolar a Rússia. E é o que está
acontecendo no momento. O antecedente da
Georgia mostra que se trata de uma linha de conduta estratégica do Ocidente.
Putin está pagando pelos erros de Stalin. A Terceira fraqueza é a dependência
da economia russa na exportação de energia para a Europa Ocidental. Acredito
que a meta daqueles que planejaram essa crise é a eventual desvinculação energética,
total ou parcial, entre a Rússia e a Europa Ocidental, a qual seria substituída
por energia americana proveniente do xisto. Se a crise não for resolvida, a política
de sanções avançará ate atingir as importações de gás e petróleo. Se tal
eventualidade ocorrer, não seria surpreendente se Moscou a interpretar como causus
belli, como seria tambem ato hostil a adesão da Ucrânia à OTAN. Tudo
dependerá, nesses casos, da atitude final da Europa Ocidental, de concordar ou
não em ter uma Rússia enfurecida nas suas fronteiras.
Voltando
à importância da Ucrânia para a Russia, o fator demográfico tem de ser citado.
Os ucranianos são eslavos muito próximos aos russos e, no conjunto de povos que
compõem a Rússia, os únicos outros eslavos, com exceção dos da Bielorússia. Em
toda sua história, a Rússia sempre cultivou forte afinidade com outros povos
eslavos. O Pan-Eslavismo, como doutrina política russa, ainda não morreu. Por
fim, mas ainda deixando a lista incompleta, há de se levar em conta que a Ucrânia
abriga número grande de indústrias estratégicas, como a de mísseis balísticos
intercontinentais (o foguete que lançaria satélites de Alcântara é russo, mas
fabricado na Ucrânia), turbinas de avião, armamentos de vários tipos, inclusive
blindados, aeronáutica (Antonov) e centros de pesquisa militar. Depois da
independência, Rússia e Ucrânia acordaram que tais indústrias não seriam
prejudicadas pelos acontecimentos políticos, uma vez que são do interesse dos
dois países. Não posso dizer se essa situação prevalece hoje, mas foi aquele
espírito que predominou quando os dois países dividiram a frota do Mar Negro.
Como
se pode ver, a Rússia tem várias facetas de vulnerabilidade e, em minha opinião,
elas estão sendo exploradas nesse jogo de poder pelo Ocidente, tendo à frente
os Estados Unidos, e com a ajuda interna do governo ucraniano. Portanto,
enquanto o Ocidente apoiar esse governo, Kiev não sentará na mesa de negociações,
permitindo assim que o Ocidente eleve progressivamente o nível das sanções.
BMM – Seria correto dizer que ucranianos de origem russa têm direito a
permanecer russos e a criar um novo Estado, soberano, no leste da Ucrânia,
pró-Rússia, assim como os ucranianos, com o colapso da URSS, tiveram direito ao
seu território e ao seu Estado independente?
Mario
Santos – Como disse anteriormente, os cidadãos soviéticos de origem russa que
vivem na Ucrânia tornaram-se subitamente estrangeiros, mas não perderam o
direito de permanecerem russos. Não creio, porém, que tenham direito de formar,
por isso, um estado independente, nem solicitar anexação à Rússia. Constituem,
no entanto, sério problema para Kiev que, por considerar que o convívio das
duas nacionalidades foi sempre historicamente pacífico, nunca tomou providências
para enquadrar jurídica e corretamente a situação. É preciso não esquecer que o
colapso da União Soviética teve origem no movimento quase simultâneo de separação
de várias das repúblicas constitutivas, entre elas a Ucrânia, cuja independência
concorreu para provocar o colapso. A independência não veio depois dele.
Yeltsin, que na época era presidente da Rússia, também apoiou a separação de
sua republica da União.
BMM – Essa saída (de um território para os ucranianos pró-Rússia na
Ucrânia) seria plausível do ponto de vista diplomático ou isso sequer deve ser
colocado em discussão no momento?
Mario
Santos – Do ponto de vista diplomático, tudo é possível, ou quase. Basta
negociar. Mas o desmembramento da Ucrânia não me parece hipótese realista. As
regiões de Lugansk e Donetz são territórios historicamente ucranianos e nenhum
governo ucraniano, mesmo um governo pró-russo, concordaria em abrir mão deles
em nome de um fato produzido pela União Soviética. Essas regiões não têm o
mesmo status que a Crimea. E por isso, creio, que Moscou é tão enigmático e
esquivo quanto à sua anexação. Dá a entender que anexaria, mas está plenamente
ciente de suas consequências. Tem-se falado numa espécie de federação, na qual
as regiões com maioria russa gozaria de status especial, mas se isso
representará solução imediata para a crise, certamente se transformará em novo
problema no futuro. Uma saída negociada é
sempre possível, mas é preciso que haja ambiente para isso. Como disse antes,
um governo antirusso em Kiev está sendo apoiado pelo Ocidente para conduzir um
jogo de poder com a Rússia. Enquanto esse apoio durar, a Ucrânia não sentará na
mesa de negociações. Uma agenda comum não é difícil de imaginar. Figurariam o
status da população russa, negligenciada até agora, e entendimentos básicos
sobre o relacionamento entre os dois países. De forma simplificada, imaginaria
que Moscou diria à Ucrânia o seguinte: você tem a liberdade de fazer o que
quiser, desde que não prejudique minha segurança. A questão é saber até que
ponto o Ocidente pretende levar esse jogo e se a Europa Ocidental concordaria
em ficar do lado dos Estados Unidos ate o fim.
BMM – Quais as consequências para a Europa e o mundo de um eventual
aprofundamento e prolongamento deste conflito?
Mario
Santos – A Rússia não pode sair perdedor desse jogo. Seus interesses vitais estão
em questão. O Governo russo é o que vai determinar o ponto de ruptura, que pode
levar a uma invasão da Ucrânia. As conseqüências disso são imprevisíveis. Os
Estados Unidos estão dando mostras de que se preparam para uma nova rodada de ações
militares. Os acontecimentos no Oriente Médio abriram a porta para isso. Foi
anunciado que os pontos fortes da ISIS na Síria serão bombardeados, com o sem o
consentimento do governo sírio. Isso de certa forma rompe o entendimento entre
a Rússia e os Estados Unidos de não intervenção na guerra civil daquele país. O
fato de que a Rússia não tenha sido consultada sobre o assunto revela o propósito
de isolá-la também nessa questão, com sérios reflexos sobre a situação
ucraniana.
BMM – Uma tendência dos meios de comunicação no Brasil e no Ocidente de
maneira geral é noticiar fatos na Ásia, no Oriente Médio ou mesmo no Leste
europeu a partir da ótica americana, uma vez que boa parte do noticiário é
gerada pelas agências americanas ou é produzida por jornalistas brasileiros que
operam a partir dos Estados Unidos, sob a influência, portanto, de sua política
externa. Como diplomata, como você avalia o noticiário internacional que
nos chega?
Mario
Santos – Política internacional é assunto secundário na imprensa brasileira.
Infelizmente! Por ter poucos jornalistas especializados em política externa, a
imprensa brasileira se compraz em reproduzir o noticiário internacional sobre
eventos que acontecem no nosso continente e nos demais. Isso é lamentável por
três razões. Em primeiro lugar, informações completas sobre os eventos mais
importantes sempre faltam e, em segundo lugar, o leitor raramente tem a seu
dispor um histórico que lhe facultaria melhor entendimento do que se passa, a não
ser que se dê ao trabalho de pesquisar no Google. A terceira razão é mais séria,
a meu ver. O noticiário internacional que nos chega é uma versão dos
acontecimentos, passada como verdadeira e correta. A tendência é o leitor
aceitá-la como apresentada. Isso é desinformação.
Perpetuar
o poder requer muito mais do que musculatura militar e econômica. Para os
Estados Unidos, é essencial que os povos se identificam com a ideologia
americana e incorporem sua cultura. O cinema é instrumento poderoso para tal.
Num patamar mais discreto, a ação política das embaixadas americanas, e de seu
departamento de imprensa, é crucial para manter governos e opinião pública
alinhados com as posições dos Estados Unidos. Quando os Estados Unidos entra em
conflito com outro país, a técnica utilizada é etiquetá-lo como vilão e
criminoso. Será mesmo que todos os adversários dos Estados Unidos são vilões e
criminosos? O leitor é quem deveria decidir, mas ele acaba adotando o que a “opinião
pública” trombeteia. No que diz respeito a Vladimir Putin, artigo publicado em O Globo, em 4 do corrente, na seção
Opinião, é típico desse processo de vilipendio. Listo alguns dos atributos
negativos atribuídos ao chefe de governo russo. Putin é um Czar. Ele deseja
recriar o antigo poderio da União Soviética. Baseia sua política externa no
arsenal nuclear da Rússia. Putin é enxadrista e antigo espião. Foi ele quem
criou a crise ucraniana. Ao referir-se aos territórios onde vive grande
contingente de russos como Novaya Rossyia (Nova Russia, antigo termo
czarista para a região) revela suas pretensões territoriais. E, para
coroar a lista, Putin é um cínico e farsante. Realmente, o que fazer com um
governante desse calibre? Esse artigo destina-se apenas a influenciar a opinião
publica. Para o diplomata, no entanto, a sua leitura não traz nenhum fato ou análise
relevantes. O que importa, para o diplomata brasileiro, é saber se Putin, na defesa
dos interesses russos, está conduzindo a crise com a finalidade de evitar um
conflito geral.
BMM – No momento em que conflitos armados devastam o Oriente Médio e
atingem novamente a Europa, devemos continuar acreditando na diplomacia ou
devemos nos resignar e prestar homenagem a Carl von Clausewitz?
Mario
Santos – Carl von Clausewitz disse que a guerra é a continuação da diplomacia.
Eu completaria esse pensamento dizendo que a diplomacia é a continuação da
guerra. (O aditamento não é meu). Na sociedade internacional, conflitos sempre
haverá, e guerras também. Conflitos e guerras podem durar anos, mas sempre
chega o momento em que as partes decidem conversar, principalmente se o conflito
as exauriu. É o momento da diplomacia. A história é bastante clara sobre esse
processo. Por exemplo, a Guerra dos 30 Anos terminou com o Tratado de Westfalia
(1640), um marco da diplomacia cujos dispositivos sobre o enquadramento das
relações internacionais são válidos ate hoje.
BBM – A ONU ainda cumpre o seu papel como promotora da paz?
Mario
Santos – A ONU cumpre o papel que lhe é permitido. Não devemos esquecer que a
ONU está inserida num contexto em que uma grande potência exerce seu poder e
tenta evitar que outras potências surjam e reduzam esse poder. A primeira lei
do poder é exercê-lo plenamente. A segunda lei é não o repartir com ninguém.
Assuntos de vital interesse dos Estados Unidos são tratados diretamente por
ele. Seria uma abdicação de poder se os Estados Unidos pedissem à ONU para dar
encaminhamento aos seus interesses. Esse poder hegemônico se exerce também
sobre a ONU, no sentido de manter a organização sobre seu controle. A resistência
em modificar a composição do Conselho de Segurança é claramente do interesse
dos atuais membros permanentes. Mais importante do que lamentar a ausência de
poder da ONU é imaginar um mundo sem ela. A ONU é, e continuará a ser, um poder
moral num cenário internacional onde a moral é escassa. Ademais, a Organização
desenvolve trabalho notável na área social, econômica e de assistência humanitária,
basicamente isento de influências das grandes potências, e através de suas agências
especializadas, estabelece padrões e elabora normas que se traduzem em metas
para os países em desenvolvimento. E é
um polo de atração para todos aqueles que acreditam que um locus para o
entendimento entre as nações serve melhor à paz internacional do que a
onipresença de uma superpotência. O internacionalismo (não globalização) é
ainda meta longínqua, mas não irrealista. O interessante aqui é que ele
adentrou o cenário internacional através do Presidente Woodrow Wilson e seus 14
pontos.
FIM