Entre
marchas e Covid-19, a insensatez
(Texto editado nesta segunda-feira dia 11, em função da atualização do noticiário)
“A renúncia ao uso da violência para conquistar e exercer
o poder é uma característica do método democrático, cujas regras constitutivas
prescrevem vários procedimentos para a tomada de decisões coletivas por meio do
livre debate, que pode dar origem ou a uma decisão acordada ou a uma decisão
tomada pela maioria. Prova disso é que, num sistema democrático, a alternância
entre governos de direita e esquerda é possível e legítima”.
As lições acima são do filósofo, jurista e cientista
político italiano Norberto Bobbio[1],
um dos maiores pensadores da segunda metade do século XX, ao lado de Karl
Popper[2], a
quem, invariavelmente, recorria para lembrar que as “sociedades abertas” só são
possíveis no interior das estruturas institucionais dos regimes democráticos.
A
referência a Bobbio – e também a Popper - é mais que oportuna no momento em que
assistimos no Brasil ao que podemos chamar, recorrendo novamente à literatura
política, a uma “marcha da insensatez”[3],
representada pela reiterada disposição para o confronto e, consequentemente, a
escalada das tensões entre os integrantes dos Poderes da República, em meio a
uma pandemia de efeitos dramáticos pelo que representa em vidas perdidas e em
retrocesso econômico. O entendimento deveria ser a palavra de ordem, mas o que
se vê é justamente o oposto.
Mesmo
imperfeita, a democracia é o melhor entre os regimes, como teria ressalvado o então
primeiro-ministro britânico Winston Churchill (em livre adaptação das lições
dos clássicos), justamente porque permite a convivência de opostos de forma
pacífica. Essa convivência implica o respeito à diferença e aos direitos das
minorias, ainda que prevalecendo as políticas e os programas de governos
escolhidos, nas urnas, pela maioria dos votantes.
Bobbio
pontificou e se destacou como formulador na Itália e na Europa do pós-guerra,
época em que não só os conflitos partidários entre direita e esquerda eram
acirrados, como a guerra entre potências nucleares, iminente. Foi ele o
responsável por estender uma ponte para o entendimento, contribuindo para que a
democracia italiana caminhasse para a maturidade, livre do terrorismo.
Repassando
as lições do filósofo de Turim, não restam dúvidas de que a falta de diálogo
construtivo tem sido o fator determinante dos solavancos da democracia
brasileira neste ano de 2020. O fato de termos um presidente que se dedica,
desde o primeiro dia de mandato, a confrontar aqueles que estão em campo político
e ideológico oposto, ao invés de se concentrar em governar, tem sido decisivo para
esse processo de desgaste. A isso se soma a intransigência daqueles que não
compreendem que a alternância de Poder implica o reconhecimento de uma visão de
mundo distinta da sua, e de um programa de governo consoante a essa outra visão.
Caímos na armadilha do círculo vicioso.
A
responsabilidade maior está com aquele que exerce o principal mandato eletivo. É
em relação ao presidente da República que deve recair a maior cobrança. A busca
da estabilidade institucional e da sustentabilidade de seu governo recomendaria
a renúncia ao que podemos chamar de “violência verbal”. A opção deve ser pelo
“lançamento de pontes”, e não pela sua demolição em cadeia.
Com
pronunciamentos e atitudes irresponsáveis, como a de participar, em plena
quarentena, de uma passeata em que se pede o fechamento do Congresso e a volta
do AI-5, ou a de desprezar as recomendações do Ministério da Saúde, no sentido
de manter o distanciamento social, o presidente se transformou numa fonte
permanente de insegurança institucional. Mais do que isso, testa os limites da
democracia.
As
suas declarações de deboche em relação à pandemia são um insulto à nação, uma
afronta às vítimas, àqueles que perderam seus entes para a doença e aos
profissionais de saúde que se arriscam na linha de frente de combate à
Covid-19. Na semana passada, em tom de desdém, chegou a anunciar um churrasco
de confraternização, depois abortado. Era uma piada, uma pegadinha?
Por
prudência, presidentes não participam de atos públicos. O que Bolsonaro pretende
com estratégia tão arriscada? Ser novamente o candidato da direita contra a
esquerda em 2022, a partir do acirramento da polarização? Por enquanto, o que
conseguiu foi potencializar os riscos para o seu governo e colocar em dúvida a
própria permanência no cargo. Nesta semana que se inicia, a Procuradoria Geral
da República decide se o denuncia por corrupção passiva, obstrução da Justiça e
advocatícia administrativa, tendo em vista as suspeitas surgidas no episódio da
demissão de Sergio Moro.
Portanto, são os seus oponentes que têm ganhado
terreno. São eles que estão sendo diariamente municiados pelos erros que comete.
Nesse processo, em pouco mais de um ano e cinco meses de mandato, Bolsonaro afastou
antigos apoiadores e eleitores, dilapidou seu capital político e vai se
isolando como um presidente de “nicho”, que fala para uma parcela cada vez
menor de seguidores irredutíveis.
No
momento em que o país mais precisa de união e estabilidade, gera insegurança e
compromete a importante agenda de reformas para a qual foi legitimamente
eleito. Diante dos obstáculos que cria, em breve já não será exagero falar em estelionato
eleitoral. Governar pode ser “construir estradas”, como disse Washington Luís,
mas é, antes de tudo, conquistar aliados.
Na
relação conturbada com o Legislativo, restou-lhe agora o abraço do “Centrão”,
afeito a fisiologismos e corporativismos que invariavelmente estão na contramão
dos interesses da sociedade. Quanto terá que ceder, para manter esse apoio?
Sintomaticamente, as queixas dos presidentes da Câmara e do Senado ao Planalto
cessaram nas últimas semanas.
O Quarto Poder
Entre
os alvos prioritários do presidente esteve sempre a imprensa - sem qualquer
exagero, uma das bases da democracia, ou o “Quarto Poder”, para usar novamente
os ensinamentos de Bobbio. Na semana que passou Bolsonaro mandou um “cala a
boca” para um repórter que, cumprindo seu trabalho, lhe dirigiu uma pergunta.
Ora, a obrigação da imprensa é fazer perguntas, sobretudo as desconfortáveis e
constrangedoras, pois essa é a forma de trazer ao “tribunal da opinião pública”,
conforme salientava Thomas Cooley[4],
os atos dos governantes. Esses, por sua vez, têm a obrigação de tentar respondê-las,
civilizadamente.
Jornalistas
não podem tudo, estão sujeitos a ações cíveis e penais por seus erros - e o
Brasil está entre os países que mais processam jornalistas. Até porque liberdade
de expressão não é um valor absoluto, acima de todos os outros previstos na Constituição.
Porém, jornalistas podem e devem fazer perguntas, é o que se espera deles.
Na
verdade, o que deve nos preocupar na conduta dos meios de comunicação é a
postura dócil e cordata, não a crítica, inerente à sua função. É compreensível
e mesmo desejável, por exemplo, que a imprensa questione a nomeação de um
diretor da Polícia Federal, dada a sua proximidade com a família presidencial, e
levante suspeitas tendo em vista essa relação. Ainda que a escolha seja
prerrogativa do presidente da República, o sensato seria não nomear, a não ser
que acima da moralidade esteja mesmo o interesse de acobertar possíveis desvios dos
filhos, não importando mais salvar as aparências.
As preocupações em relação ao equilíbrio
institucional e a estabilidade política tornam-se ainda maiores, quando se
percebe que a “marcha da insensatez” alcança o outro lado da Praça dos Três Poderes,
não se restringindo ao Planalto. É o que se conclui da cassação sumária e
atípica, sem julgamento, por um ministro do Supremo, de ato formalmente legal
do presidente da República (leia
o artigo “Crise política não justifica um “Judicialismo” anômalo”, mais abaixo,
aqui neste Blog). Provavelmente, o
ministro Alexandre de Moraes não teria deferido a liminar contra o ato
presidencial, se não percebesse o enfraquecimento político do chefe do
Executivo. E o responsável por esse enfraquecimento, como vimos, foi o próprio
presidente.
Ministros do Supremo são guardiões da
Constituição e, por consequência, das instituições. Não podem invadir o espaço
de competência de outros poderes, tampouco insultar ou ameaçar seus integrantes.
Atitudes como essas não servem à democracia. Por essa razão, também causou
surpresa a afronta gratuita aos militares e às Forças Armadas, manifestada no
emprego da expressão “debaixo de vara”, em despacho do ministro Celso de Mello
que convocou três ministros generais para depor no inquérito que apura as
revelações feitas por Sergio Moro.
Se
a aposta de ambos os ministros era a escalada das tensões políticas, com mais
insegurança institucional, conseguiram o seu intuito, ao menos durante alguns
dias. A exemplo de Bolsonaro, testaram os limites da democracia com as suas
decisões e, de certa forma, contribuíram para a “marcha da insensatez”. Justamente
de onde se esperava mais segurança, vieram incertezas. A propósito, não é de hoje
que o STF, adotando o conceito de “mutação constitucional”, vem invadindo a
competência de outros poderes, em especial a do Legislativo.
Em
defesa das Forças Armadas, cabe dizer que têm sido elas e seus integrantes os
maiores guardiões da Constituição e das instituições, desde a redemocratização
há mais de três décadas. Compromisso que foi reiterado na semana passada, em
nota oficial do ministro da Defesa, o que fez com que os termos da convocação
do ministro parecessem ainda mais injustificáveis.
De
volta ao primeiro parágrafo, para finalizar este texto que já está por demais longo,
há espaço na democracia tanto para a direita quanto para a esquerda, desde que
se respeite a Constituição - e não se cometam loucuras. O exemplo deve vir do
presidente da República e de suas excelências, os ministros do Supremo. Aliás,
todas as respostas estão na Carta, inclusive o impeachment, este mecanismo de
autodefesa e depuração dos regimes democráticos, caso o presidente insista na insensatez.
Por Nilson Mello
[1] Em
“Direita e Esquerda - razões e
significados de uma distinção política”, pág. 35, Editora Unesp.
[2]
Filósofo austro-britânico, também considerado um expoente do pensamento
democrático do Século XX, com seu conceito de “sociedade aberta”.
[3] A
historiadora Bárbara Tuchman, em “A marcha da insensatez” (Editora José Olímpio, 7ª Edição, 2005),
examina uma série de decisões equivocadas que levaram à ruína de governantes e
nações.
[4]
Constitucionalista americano do século XX, defensor da liberdade de expressão e
crítico contundente da escravidão nos EUA.
Muito oportunas às suas considerações.
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