Crise política não justifica um “Judicialismo”
anômalo
A tensão política
gerada na semana passada pela suspensão da nomeação do diretor da Polícia
Federal pelo presidente da República foi em parte superada nesta segunda-feira
(04/05), com a substituição do indicado, conforme publicado no Diário Oficial. Porém,
a discussão jurídica em torno da questão não se esgotou, tendo em vista a forma
como se deu a suspensão e o instrumento utilizado.
O mandado de segurança é um “remédio”
constitucional destinado a garantir direito líquido e certo violado, ou sob
clara ameaça de violação, por ato de autoridade pública. Isso significa que,
para a sua concessão, tanto o direito quanto a ameaça devem se apresentar de
forma inequívoca, sem incertezas.
Do contrário, ou seja, não sendo fato
incontroverso, a defesa desse bem que se pretende proteger deve ser feita por
meio de ação própria, de caráter não sumário, em que se permita, assim, a
apresentação de conteúdo probatório suficiente para estabelecer a materialidade
do fato e a sua autoria, bem como permitir, à autoridade acusada da
ilegalidade, o contraditório e a ampla defesa.
A concessão de liminar em mandado de
segurança é admissível sempre que esteja presente o risco de dano irreparável
ou de difícil reparação, o que significa que os fundamentos elencados no pedido
devem ser relevantes e as consequências do ato impugnado, efetivamente
demonstradas.
Disposto no inciso LXIX do artigo 5º da
Constituição e regulamentado pela Lei 12.016 de 2009, o mandado de segurança
pode ter caráter repressivo ou preventivo, porém, pela sua característica intrínseca
(fatos incontroversos), não pode ser impetrado – e muito menos concedido – por
mera suposição de que, por trás de um ato formalmente legítimo, emanado de uma
autoridade pública, esconde-se um intuito supostamente subalterno que, em
determinado momento, poderá causar dano a algum bem ou direito. Ilações ou
deduções não justificam um mandado de segurança.
As acusações feitas pelo ex-ministro Sergio
Moro ao presidente da República, de tentativa de intervenção na Polícia
Federal, por ocasião de seu discurso de despedida do governo na semana passada,
são graves, merecendo apuração rigorosa e imediata. Contudo, tais acusações não
autorizam um ministro do Supremo a invadir a competência do Executivo, para
suspender ato do presidente da República que encontra respaldo em lei e na
Constituição.
Ao suspender liminarmente a então nomeação
do diretor da Polícia Federal pelo presidente da República, em mandado de segurança
impetrado pelo PDT, o ministro Alexandre de Moraes agiu como censor dos atos
presidenciais, algo inadmissível à luz da própria Constituição que, com alegado
zelo, procura defender. A nomeação do diretor geral da Polícia Federal é
prerrogativa do chefe de governo (Constituição Federal, artigo 84, inciso XIV)
e, no caso em questão, o nomeado, delegado de carreira do órgão, preenche os
requisitos para o cargo (artigo 2c, da Lei 9.266 de 1996).
A defesa da moralidade e da
impessoalidade, alegada no mandado de segurança do PDT e reconhecida como
fundamento para a concessão da ordem cautelar se sobrepôs a outros princípios
constitucionais, em particular, o da soberania do voto popular e o da separação
dos Poderes. Ao agir por suposição, sem examinar provas (que ainda não
foram apresentadas) e, dessa forma, sem firmar qualquer certeza quanto a danos,
o ministro Alexandre de Moraes impôs uma espécie de “censura prévia” aos atos
presidenciais, mecanismo estranho ao sistema presidencialista, ao Estado de
Direito e à nossa ordem constitucional.
Em face da Constituição, que deve ser
sempre examinada de forma sistêmica, nenhum princípio tem valor absoluto,
devendo ser sopesado em relação aos demais, a fim de se definir qual tem maior
relevância, no caso concreto. Também é entendimento pacífico da doutrina e da
jurisprudência que todos os atos administrativos estão sujeitos à revisão pelo
Judiciário, se houver violação à lei ou a preceitos constitucionais. Contudo, tal controle, inerente ao sistema de
freios e contrapesos próprio do funcionamento de um Estado democrático, não
pode ser vago e abstrato.
Ora, uma suposição de ofensa a
preceitos não pode justificar uma dupla ofensa concreta. Em outras
palavras, para colocar a salvo a moralidade e a impessoalidade diante de uma
suposta ameaça, em relação a qual ainda não há qualquer substância, o juiz não pode,
por antecipação, atropelar a soberania do voto popular e a separação de
poderes.
Não é demais salientar que, embora
não exista hierarquia ou prevalência em abstrato de um determinado princípio
sobre o outro, como referido nos parágrafos anteriores, o nosso constituinte
expressou de forma clara a partir de que bases deverá ser estruturado o Estado
brasileiro, ao inscrever, logo de início, no parágrafo único do artigo 1º da
Carta, o princípio da soberania popular e, no artigo 2º, o da separação dos
Poderes. A soberania popular é exercida, entre outros eleitos, pelo presidente da
República, chefe do Executivo, Poder independente.
A ordem de disposição desses
princípios no corpo do texto constitucional por si só é razão suficiente para
que as prerrogativas presidenciais não sejam afastadas sumariamente, sem que um
tribunal aprecie os fatos no curso de um processo devidamente instaurado, com
amplo e profundo exame das provas. Por
maior que seja o receio de que os atos discricionários do chefe do Executivo
possam vir a incorrer em desvio de finalidade, o Judiciário não pode, por
precaução, tolher a sua autonomia e independência.
O ativismo judicial tem sido uma
tendência crescente no Brasil. O Supremo Tribunal Federal, adotando o conceito
de “mutação constitucional”, em diferentes ocasiões nos últimos anos, baixou
atos normativos em clara invasão da competência do Congresso. A crise de
representatividade política em alguma medida retroalimentou essa
tendência. No caso do Executivo, a disposição do Presidente da República para o
confronto e a sua indisfarçável aposta na polarização, com a demonização da
Justiça e da classe política, contribuem para que essa judicialização se
acentue.
Porém, se o que se pretende é a
estabilidade institucional – e acredito que esse seja um anseio da
maioria dos brasileiros -, o primeiro passo é a segurança jurídica, o que
depende do respeito à Constituição. No que a Constituição estiver defasada,
tendo em vista as demandas da sociedade, sobretudo nos campos econômico e dos
costumes, há sempre a possibilidade de reformas, por meio do regular processo
legislativo. O que não se pode é, por prevenção, criar atalhos ilegítimos, transformando
o nosso Presidencialismo em um Judicialismo anômalo, de imprevisíveis
consequências. Nem crises políticas podem servir de desculpa para essa nova modalidade de mutação.
Por Nilson Mello
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