A
hidroxicloroquina, os Postos Ipiranga e os cenários políticos
Sem futebol aos domingos na TV e com bares fechados, por
força do distanciamento social, o brasileiro trocou os debates sobre a
escalação de seu time e da Seleção pelas discussões virtuais acerca do uso ou
não da hidroxicloroquina no combate à Covid-19. Abandonamos a função de
técnicos de futebol, na qual nos reconhecíamos reciprocamente diplomados e
capacitados, para nos aventurarmos como experts em epidemiologia, infectologia,
clínica geral, biomedicina, farmacologia...
Não se paga nada por dar palpites, e a manifestação do
pensamento é garantia constitucional. Porém, como o assunto requer alto grau de
especialização, anos de estudo e muita pesquisa científica, o bom senso recomendaria
ouvir mais e “prescrever” menos, deixando o verdadeiro debate e qualquer
decisão, em termos de política pública de combate à pandemia, com os “Postos
Ipiranga” da Saúde.
A hidroxicloroquina foi arrastada para os “botequins
virtuais” como tema acessório da política, na medida em que o presidente da
República insistiu (e insiste) em sua adoção em pacientes leves, ainda na fase
inicial da doença, enquanto o Ministério da Saúde resiste (ao menos até aqui) em
estabelecer protocolo para o seu uso amplo, uma vez que não há comprovação científica
de sua eficácia.
Com
efeito, importantes revistas médicas, como a New England Journal of Medicine, o
Journal of American Medical Association e o British Medical Journal publicaram
estudos no decorrer do mês de abril (ver o Estado de S. Paulo de 16/05) apontando que a medicação é
pouco ou nada efetiva para tratar a doença e que, portanto, não há elementos
para a expansão de seu uso, ou nem mesmo para o seu uso corriqueiro. É o que a
maior parte dos cientistas brasileiros também tem dito, e não por outra razão é
essa, até aqui, a orientação do Ministério da Saúde.
A
busca de uma arma eficaz no combate à Covid-19 deve ser uma preocupação geral,
não apenas porque essa medicação permitiria um retorno à normalidade, reduzindo
os efeitos da pandemia sobre a economia, a esta altura já bastante combalida,
mas, sobretudo, porque impediria o crescimento de casos graves e, por
consequência, de óbitos. Assim, é compreensível a pressa do presidente, o que não
é razoável é que imponha ao seu ministro da Saúde ou ao corpo técnico do
ministério qual deve ser essa medicação e como deve ser seu emprego, menosprezando
critérios e parâmetros científicos.
A
relação do presidente com a área econômica deveria servir de paralelo para a
Saúde. O presidente deveria confiar no “Posto Ipiranga” da Saúde não porque o
nomeado faz o que ele, presidente, manda, mas porque tem competência para gerir
a pasta. Por enquanto, fez o oposto. A possível efetivação do general Eduardo
Pazuello – o número dois da pasta, no momento ministro interino –, é
desaconselhável pelas dúvidas que tal escolha suscitaria quanto a se as medidas
adotadas estariam realmente seguindo critérios médico-científicos ou apenas
correspondendo ao voluntarismo do chefe.
A
opção Pazuello, mal vista até pela ala militar do Planalto, representaria mais
um fator de desgaste político para o governo, num momento em que o país precisa
de estabilidade para enfrentar a pandemia e a grave crise econômica que dela
resultou. Por sinal, a troca sucessiva de ministros em tão pouco tempo – onze,
em menos de um ano e meio de mandato – reforça a sensação de insegurança e é
por si só um sintoma de disfunção gerencial. Chama a atenção, sobretudo, se
considerarmos que, de início, a excelência do corpo ministerial era apresentada
como um dos diferenciais do novo governo.
De
nada adianta se vangloriar de ter montado uma equipe técnica se é o desrespeito
às decisões técnicas que tem levado auxiliares importantes a abandonar o barco.
Nenhum outro presidente, à exceção de Dilma (com 16 alterações no mesmo
período), que não é referência em termos administrativos, mudou tanto o
ministério em tão pouco tempo. O ambiente de intranquilidade cria mais
incertezas em relação às possibilidades de recuperação econômica. Os números
que começam a se consolidar sobre o desempenho da economia brasileira nos
primeiros meses do ano nos colocam diante de um horizonte sombrio. A atividade
econômica caiu 5,9% em março e algumas consultorias já projetam a pior queda anual
do PIB brasileiro em toda a história, de 6,2%.
O
ministro Paulo Guedes procura fazer a sua parte ao trabalhar com hipótese mais
otimista, de uma queda de 4% do PIB este ano, seguida de uma rápida recuperação
em “V”, ou seja, acentuada, que começaria já no quarto trimestre deste ano.
Trabalhar com expectativas mais otimistas é uma forma de gerar um círculo
virtuoso, estimulando a atividade econômica. A torcida continua. Mas, aliado a isso, os incentivos e estímulos
dados à economia precisam começar a surtir efeito. De grande ajuda nesse
processo seria a promoção de um ambiente político mais estável.
Para
tanto, o presidente da República teria que reduzir as suas áreas de atrito,
algo improvável tendo em vista o próprio perfil, de permanente disposição para
o confronto. Foi, por sinal, esse ímpeto, de “destruição de pontes”, de aposta
na polarização, que o levou ao isolamento político (assunto tratado no ensaio da semana passada aqui neste
espaço) e à inevitável articulação com o grupo denominado “Centrão” – o derradeiro
recurso a fim de não perder de vez a governabilidade. Até aqui, foi esse o
resultado da reiterada aposta nos limites.
As
incertezas, incluindo dúvidas quanto à real capacidade do governo de gerenciar
o combate à pandemia e a recuperação econômica, em meio a trocas ministeriais e
embates contraproducentes com outros Poderes, nos autorizam a considerar, entre
os cenários possíveis, o do impeachment. Três dezenas de pedidos de abertura de
processo neste sentido já foram protocoladas na Câmara, o que garante ao
presidente da Casa, Rodrigo Maia, um forte poder de barganha. É verdade que, enquanto
houver apoio nas ruas, esses processos têm poucas chances de prosperar. Mas
esse apoio também tem diminuído, conforme demonstram as pesquisas. E o desdém
com que o presidente trata os assuntos relacionados à pandemia, certamente, não
ajudará a recuperá-lo.
O
inquérito aberto no Supremo para apurar possíveis crimes (entre os quais, falsidade
ideológica, coação no curso do processo, advocacia administrativa,
prevaricação, corrupção passiva, obstrução da Justiça...) no episódio de
demissão de Sergio Moro, sob relatoria do ministro Celso de Mello, contribui
para aumentar o desgaste, ainda que, juridicamente, possa não haver elementos
suficientes para a abertura de processo e apresentação de denúncia. Lembre-se
que o próprio Sergio Moro afirmou que o presidente não cometeu qualquer crime. Aliás,
ainda é incerto se o ex-ministro colherá dividendos políticos com sua saída do
governo, se é que de fato alimenta ambições eleitorais em relação a 2022.
Tudo
considerado, o cenário menos provável é o de que este governo possa chegar ao
fim do mandato entregando resultados significativos, tendo em vista a
importante agenda prometida. Como a renúncia é igualmente improvável (novamente
aqui fala mais alto o perfil), mais improvável até que o impeachment, é
razoável esperar que “ande de lado” até o último dia. Com embates permanentes e
polarização crescente. Quem ganha, quem perde? É claro que quem perde é o
Brasil. E ganha a parcela da oposição sem compromisso com os interesses
nacionais, pois nem em sonho imaginaria melhor cabo eleitoral.
Por Nilson Mello
Ótimo Nilson. Parece-me que estamos em um beco sem saída.
ResponderExcluirObrigado, Nilson. Esta matéria, como sempre, é muito educativa e nos faz pensar.
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