domingo, 17 de maio de 2020

Artigo


A hidroxicloroquina, os Postos Ipiranga e os cenários políticos


         Sem futebol aos domingos na TV e com bares fechados, por força do distanciamento social, o brasileiro trocou os debates sobre a escalação de seu time e da Seleção pelas discussões virtuais acerca do uso ou não da hidroxicloroquina no combate à Covid-19. Abandonamos a função de técnicos de futebol, na qual nos reconhecíamos reciprocamente diplomados e capacitados, para nos aventurarmos como experts em epidemiologia, infectologia, clínica geral, biomedicina, farmacologia...  
         Não se paga nada por dar palpites, e a manifestação do pensamento é garantia constitucional. Porém, como o assunto requer alto grau de especialização, anos de estudo e muita pesquisa científica, o bom senso recomendaria ouvir mais e “prescrever” menos, deixando o verdadeiro debate e qualquer decisão, em termos de política pública de combate à pandemia, com os “Postos Ipiranga” da Saúde.
         A hidroxicloroquina foi arrastada para os “botequins virtuais” como tema acessório da política, na medida em que o presidente da República insistiu (e insiste) em sua adoção em pacientes leves, ainda na fase inicial da doença, enquanto o Ministério da Saúde resiste (ao menos até aqui) em estabelecer protocolo para o seu uso amplo, uma vez que não há comprovação científica de sua eficácia.
Com efeito, importantes revistas médicas, como a New England Journal of Medicine, o Journal of American Medical Association e o British Medical Journal publicaram estudos no decorrer do mês de abril (ver o Estado de S. Paulo de 16/05) apontando que a medicação é pouco ou nada efetiva para tratar a doença e que, portanto, não há elementos para a expansão de seu uso, ou nem mesmo para o seu uso corriqueiro. É o que a maior parte dos cientistas brasileiros também tem dito, e não por outra razão é essa, até aqui, a orientação do Ministério da Saúde.
A busca de uma arma eficaz no combate à Covid-19 deve ser uma preocupação geral, não apenas porque essa medicação permitiria um retorno à normalidade, reduzindo os efeitos da pandemia sobre a economia, a esta altura já bastante combalida, mas, sobretudo, porque impediria o crescimento de casos graves e, por consequência, de óbitos. Assim, é compreensível a pressa do presidente, o que não é razoável é que imponha ao seu ministro da Saúde ou ao corpo técnico do ministério qual deve ser essa medicação e como deve ser seu emprego, menosprezando critérios e parâmetros científicos.
A relação do presidente com a área econômica deveria servir de paralelo para a Saúde. O presidente deveria confiar no “Posto Ipiranga” da Saúde não porque o nomeado faz o que ele, presidente, manda, mas porque tem competência para gerir a pasta. Por enquanto, fez o oposto. A possível efetivação do general Eduardo Pazuello – o número dois da pasta, no momento ministro interino –, é desaconselhável pelas dúvidas que tal escolha suscitaria quanto a se as medidas adotadas estariam realmente seguindo critérios médico-científicos ou apenas correspondendo ao voluntarismo do chefe.
A opção Pazuello, mal vista até pela ala militar do Planalto, representaria mais um fator de desgaste político para o governo, num momento em que o país precisa de estabilidade para enfrentar a pandemia e a grave crise econômica que dela resultou. Por sinal, a troca sucessiva de ministros em tão pouco tempo – onze, em menos de um ano e meio de mandato – reforça a sensação de insegurança e é por si só um sintoma de disfunção gerencial. Chama a atenção, sobretudo, se considerarmos que, de início, a excelência do corpo ministerial era apresentada como um dos diferenciais do novo governo.
De nada adianta se vangloriar de ter montado uma equipe técnica se é o desrespeito às decisões técnicas que tem levado auxiliares importantes a abandonar o barco. Nenhum outro presidente, à exceção de Dilma (com 16 alterações no mesmo período), que não é referência em termos administrativos, mudou tanto o ministério em tão pouco tempo. O ambiente de intranquilidade cria mais incertezas em relação às possibilidades de recuperação econômica. Os números que começam a se consolidar sobre o desempenho da economia brasileira nos primeiros meses do ano nos colocam diante de um horizonte sombrio. A atividade econômica caiu 5,9% em março e algumas consultorias já projetam a pior queda anual do PIB brasileiro em toda a história, de 6,2%.
O ministro Paulo Guedes procura fazer a sua parte ao trabalhar com hipótese mais otimista, de uma queda de 4% do PIB este ano, seguida de uma rápida recuperação em “V”, ou seja, acentuada, que começaria já no quarto trimestre deste ano. Trabalhar com expectativas mais otimistas é uma forma de gerar um círculo virtuoso, estimulando a atividade econômica. A torcida continua.  Mas, aliado a isso, os incentivos e estímulos dados à economia precisam começar a surtir efeito. De grande ajuda nesse processo seria a promoção de um ambiente político mais estável.
Para tanto, o presidente da República teria que reduzir as suas áreas de atrito, algo improvável tendo em vista o próprio perfil, de permanente disposição para o confronto. Foi, por sinal, esse ímpeto, de “destruição de pontes”, de aposta na polarização, que o levou ao isolamento político (assunto tratado no ensaio da semana passada aqui neste espaço) e à inevitável articulação com o grupo denominado “Centrão” – o derradeiro recurso a fim de não perder de vez a governabilidade. Até aqui, foi esse o resultado da reiterada aposta nos limites.
As incertezas, incluindo dúvidas quanto à real capacidade do governo de gerenciar o combate à pandemia e a recuperação econômica, em meio a trocas ministeriais e embates contraproducentes com outros Poderes, nos autorizam a considerar, entre os cenários possíveis, o do impeachment. Três dezenas de pedidos de abertura de processo neste sentido já foram protocoladas na Câmara, o que garante ao presidente da Casa, Rodrigo Maia, um forte poder de barganha. É verdade que, enquanto houver apoio nas ruas, esses processos têm poucas chances de prosperar. Mas esse apoio também tem diminuído, conforme demonstram as pesquisas. E o desdém com que o presidente trata os assuntos relacionados à pandemia, certamente, não ajudará a recuperá-lo. 
O inquérito aberto no Supremo para apurar possíveis crimes (entre os quais, falsidade ideológica, coação no curso do processo, advocacia administrativa, prevaricação, corrupção passiva, obstrução da Justiça...) no episódio de demissão de Sergio Moro, sob relatoria do ministro Celso de Mello, contribui para aumentar o desgaste, ainda que, juridicamente, possa não haver elementos suficientes para a abertura de processo e apresentação de denúncia. Lembre-se que o próprio Sergio Moro afirmou que o presidente não cometeu qualquer crime. Aliás, ainda é incerto se o ex-ministro colherá dividendos políticos com sua saída do governo, se é que de fato alimenta ambições eleitorais em relação a 2022.
Tudo considerado, o cenário menos provável é o de que este governo possa chegar ao fim do mandato entregando resultados significativos, tendo em vista a importante agenda prometida. Como a renúncia é igualmente improvável (novamente aqui fala mais alto o perfil), mais improvável até que o impeachment, é razoável esperar que “ande de lado” até o último dia. Com embates permanentes e polarização crescente. Quem ganha, quem perde? É claro que quem perde é o Brasil. E ganha a parcela da oposição sem compromisso com os interesses nacionais, pois nem em sonho imaginaria melhor cabo eleitoral.

Por Nilson Mello

           

2 comentários:

  1. Ótimo Nilson. Parece-me que estamos em um beco sem saída.

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  2. Obrigado, Nilson. Esta matéria, como sempre, é muito educativa e nos faz pensar.

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