O abismo fiscal e as reformas
A dívida pública brasileira hoje,
de acordo com o Ministério da Economia, é de R$ 3,89 trilhões, devendo chegar a
R$ 4,3 trilhões até o final do ano. A despeito da pesada carga tributária
imposta à sociedade[1] e
dos esforços para contenção de despesas discricionárias que vêm sendo
empreendidos nos últimos anos, sobretudo pelo Governo Central (inclusive no
final da administração Dilma), visando a reduzir o rombo fiscal, a dívida
pública segue uma dinâmica de crescimento. Para
exemplificar, ela foi de 76,7% do PIB em 2018, deve ficar em 78,7% em 2019 e
alcançar os 80% em 2020, previsão que já considera, segundo o governo,
eventuais efeitos positivos da Reforma da Previdência, concluída nesta
quarta-feira (23/10).
Numa análise isenta, as razões para
o recorrente desequilíbrio fiscal que há anos o país enfrenta (e que, mais
recentemente, se refletem em repetidos déficits primários desde 2013), assim
como para o esgotamento da capacidade de investimento do Estado, não podem ser
atribuídas apenas à má gestão ou a equívocos de políticas econômicas adotadas
por administrações passadas, sobretudo as mais recentes, devendo,
necessariamente, considerar as características intrínsecas da matriz
constitucional, na qual se assentam o arcabouço fiscal e da economia do país.
A
Constituição da República - a "Carta Cidadã" de 1988 - é uma Carta de
inspiração social, como o próprio nome revela. Foi elaborada, podemos dizer,
com o elevado intuito, entre outros, de regatar a "dívida social" de
uma nação cujos índices de desigualdade estão entre os piores do mundo[2]. Da busca por esse
objetivo resultou uma Constituição com dispositivos não apenas materialmente
constitucionais como formalmente constitucionais e, consequentemente, um texto
mais extenso e detalhista.
Neste
sentido, seria não apenas uma Carta Constitucional, de princípios norteadores
do Estado e de suas instituições, como também um programa geral de governo.
Podemos
assumir que o constituinte de 1988 teve o legítimo e elevado objetivo de
engendrar um "Estado social", e com isso promover uma melhoria da
distribuição de renda e dos indicadores sociais de forma geral. Contudo, o que
observamos hoje é que a matriz constitucional ensejou uma máquina pública de
baixa eficiência, difícil administração e extremamente onerosa, com forte
descompasso entre receitas e despesas e, consequentemente, déficits fiscais
recorrentes[3]. O
grande número de emendas e reformas que foram aprovadas de 1988 para cá, na
tentativa de garantir governabilidade ao Estado, confirma esse diagnóstico.
Contraditoriamente, não houve, no período decorrido desde a promulgação da
Carta, um grande salto no que diz respeito ao desenvolvimento econômico e
social.
Do ponto de
vista fiscal, o Estado brasileiro, dentro do modelo que a matriz impõe, não
logra alcançar o equilíbrio orçamentário, tendo, ao mesmo tempo, exaurido a sua
capacidade de investimento. A dificuldade de exercer o papel de indutor da
Economia - como seria de se esperar tendo em vista a matriz constitucional de
viés claramente intervencionista - decorre em grande medida do direcionamento
da maior parte das receitas para as chamadas despesas obrigatórias. Válido é
lembrar que Previdência e folha salarial de servidores ativos e inativos
abocanham hoje mais de 80% do orçamento, deixando pouco espaço de manobra para
o gestor público.
O
Leviatã[4]
que emergiu do "modelo" consolidado em 1988, e que muitas vezes
assume a forma de empreendedor, entrou em colapso, conforme discorrem Musacchio
e Lazzarini em "Reinventando o capitalismo de Estado"[5].
Cabe dizer que um Estado reconhecidamente voraz na arrecadação tributária, para
fazer face às suas crescentes e pesadas despesas, tende a ter menor sucesso -
por melhores que possam ser as intenções - no estímulo ao setor produtivo.
O
modelo embute um paradoxo: a carga tributária de cerca de 35% do PIB, o que
inclui encargos sociais e trabalhistas, apesar de ser a mais alta entre os
países emergentes e uma das mais elevadas mesmo comparada às nações de maior
renda, não é capaz de financiar a máquina estatal, ao mesmo tempo em que
representa um lastro para o setor produtivo.
A
questão dos déficits recorrentes se reverte de um aspecto social perverso, se
considerarmos que, quanto maior é o descompasso fiscal, mais dinheiro o governo
estará destinando ao pagamento dos juros da dívida pública, comprometendo o
aporte de investimentos em áreas essenciais.
Em
2017, o governo gastou com o pagamento de parte da dívida vencida e dos juros
R$ 462 bilhões[6], o
equivalente a cinco vezes o que foi gasto com programas de assistência social.
Mas, como deixar de pagar a dívida e seus juros está fora de questão - não só
pela perda de credibilidade do governo e de confiança no país que isso
ocasionaria, mas pelo colapso que geraria no sistema e o efeito devastador
sobre toda a cadeia econômica -, a saída racional e mais compromissada com a
questão social é justamente equilibrar o orçamento. Esse reequilíbrio passa, necessariamente, pelas reformas
estruturantes em discussão - Trabalhista, Previdenciária, Tributária,
Administrativa. Esse conjunto de mudanças simboliza também um novo pacto
federativo, diferente daquele de 1988.
Do
ponto de vista do empreendedor, as dificuldades não estão representadas apenas
pela forte tributação, mas por um ambiente de intensa burocracia, decorrência
direta do maior grau de intervencionismo e dirigismo da máquina pública
agigantada que daí resulta.
Na
área tributária, essa burocracia é potencializada pelo grande número de
obrigações acessórias que o contribuinte enfrenta no seu dia a dia em meio a um
sistema reconhecidamente confuso, o que reforça a necessidade de uma
"reforma" que contemple a sua simplificação.
Para
se ter a clara noção desse emaranhado burocrático com o qual o empreendedor e o
contribuinte de forma geral se deparam, basta dizer que de 1988 até hoje foram
editadas, em matéria tributária, 390.726 normas[7]. Isso equivale a mais de
1,92 normas tributárias por hora, considerando apenas os dias úteis.
Nesse período, como sabemos, foram criados
inúmeros tributos (alguns já extintos), tais como Cofins, Csll, PIS Importação,
ISS Importação, Cide e CIP. Não por outra razão, em 30 anos houve 16 emendas
constitucionais tributárias, na tentativa de dar mais racionalidade ao
"caos".
Portanto, a "Carta Cidadã" de
1988, pretendendo promover um Estado social, acabou por consolidar uma máquina
dispendiosa e um círculo vicioso na economia, na medida em que a burocracia e a
alta tributação são fatores que inibem o setor produtivo, o que acaba se
refletindo em baixos índices de crescimento econômico, impossibilitando avanços
sociais mais expressivos.
Em
resumo, é esse o contexto econômico, fiscal e administrativo que tem levado à
discussão das reformas estruturantes, como a Reforma da Previdência, aprovada
esta semana, a Tributária, cujo trâmite e debate já se iniciaram com a Proposta
de Emenda Constitucional número 45, na Câmara, e a Proposta de Emenda
Constitucional número 110, no Senado, bem como a Administrativa, em
gestação.
O
abismo fiscal e econômico no qual a Constituição de 1988 precipitou o Brasil
não nos deixa escolha a não ser enfrentar, com racionalidade, o desafio das
reformas. O mérito do atual governo será medido pelo empenho em levar adiante
essa tarefa, superando imensos obstáculos políticos erguidos, sobretudo, por
posições corporativistas, além de
ideológicas, que por essa razão não representam os verdadeiros interesses da
sociedade.
Por Nilson Mello*
(*advogado
e jornalista, pós-graduado em Economia e em Direito Financeiro e Tributário)
[1]
Nota: de acordo com os economistas José Roberto Afonso e Kleber Castro, a carga
tributária atingiu 35,07% do PIB em 2018 (o equivalente a R$ 2,3 trilhões), o
que significa que, em média, cada brasileiro recolheu R$ 11,9 mil tributos aos
cofres públicos no ano passado. Artigo no Website JRRA. Link: https://www.joserobertoafonso.com.br/consolidacao-da-carga-tributaria-afonso-castro/
[2]
Nota: O Índice de Desenvolvimento Humano do Brasil é hoje de 0,699, o 73°
lugar no ranking mundial da ONU.
[3]
Nota: para este ano, a previsão de déficit fiscal primário (descontados os
juros) é de R$ 139 bilhões; em 2018, o déficit fiscal foi de R$ 120 bilhões.
Para 2020, o Projeto de Lei de Diretrizes Orçamentárias (PLOA)
estabeleceu um déficit de R$ 118,9 bilhões. A previsão de redução de déficit, segundo analistas, é
resultado da contenção de gastos discricionários pelo governo, da perspectiva de relativa melhora das
receitas tributárias em função da retomada da atividade econômica e das
privatizações. O Estado de Minas -
30/08/2019. Link: https://www.em.com.br/app/noticia/economia/2019/08/30/internas_economia,1081327/ploa-preve-deficit-primario-de-r-124-1-bilhoes-em-2020-no-governo-cen.shtml
[4]
Nota: na obra clássica do filósofo inglês Thomas Hobbes , publicada em 1651, o
Leviatã, inspirado na figura bíblica, é
o monstro que se responsabilizará pelo Contrato Social firmado entre
governantes e governados.
[5]
MUSACHIO, Aldo e Sergio Lazzarini. "Reinventando o capitalismo de Estado -
O leviatã dos negócios: o Brasil e outros países". São Paulo, Editora
Schwarcz, 2015.
[7]
NOTA: Os dados são do IBPT - Instituto Brasileiro de Planejamento e Tributação,
em https://ibpt.com.br/noticia/2683/Quantidade-de-NORMAS-EDITADAS-NO-BRASIL-30-anos-da-constituicao-federal-de-1988.
Ótimo Nilson.
ResponderExcluirQue artigo! Você sempre se superando! Sou só aplausos! 👏👏👏
ResponderExcluirMuito bom, Nilson!👏👏
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