A
pseudoReforma Tributária da PEC-45
A aprovação da Reforma da Previdência em 2019 foi um passo
decisivo, porém, ainda insuficiente para garantir equilíbrio financeiro à
máquina pública federal e permitir a retomada da capacidade de investimento do
Estado. Para 2020, outras duas reformas estruturantes de igual importância - e
que por essa razão impõem um enorme desafio político -, a administrativa e a
tributária, serão colocadas em marcha.
Ainda é cedo para falar sobre a metodologia a ser adotada na
Reforma Administrativa (suas principais medidas sequer foram detalhadas), mas,
no que diz respeito à Tributária, algumas de suas vertentes foram discutidas e
o governo já anunciou que ela será feita de forma segmentada, gradualmente. Essa
decisão parece acertada tendo em vista a complexidade do sistema que temos
hoje, e também considerando as diferentes esferas de Poder e de entes federados
com inferência na questão – o que por si só exige um esforço político e um
debate público muito maiores.
A reforma
“parcelada” tomará como base algumas das propostas discutidas este ano, em
especial a criação de um Imposto sobre Valor Agregado (reunindo cinco impostos
e contribuições num só tributo), ideia que figura no principal Projeto de
Emenda Constitucional em trâmite no Congresso sobre o Sistema Tributário - a
PEC 45, da Câmara. O presente artigo é uma síntese de Parecer apresentado na
Comissão de Direito Financeiro e Tributário do Instituto dos Advogados
Brasileiros (IAB).
O Imposto sobre Bens e
Serviços - IBS
A Proposta de Emenda Constitucional número
45 não é, a bem da verdade, uma proposta de "Reforma Tributária", e
sim um projeto, com implicações constitucionais, para fundir três impostos e duas
contribuições em um único tributo. Por não considerá-la uma "reforma"
ampla, na melhor acepção do termo, utilizo aqui no texto a expressão entre
aspas.
Um projeto de "Reforma Tributária"
implica a reformulação de todo o sistema, devendo contemplar, em minha opinião,
como eixos norteadores, sete parâmetros: 1. A simplificação do sistema; 2. A
ênfase tributária na renda e não na produção; 3. A defesa do princípio da
não-cumulatividade; 4. A preservação da capacidade financeira do Estado; 5. A
manutenção do pacto federativo; 6. O estímulo à produção e ao desenvolvimento;
e 7. O respeito à progressividade em oposição à regressividade.
A presente análise foca, em particular, a
questão da ênfase tributária - por considerá-la mais importante no escopo da
PEC-45 -, embora também discorrendo sobre outros parâmetros. De antemão, vale
dizer que a proposta não parece ter a capacidade de atender ao menos a outros
cinco parâmetros de aferição, quais sejam, a simplificação do sistema, a
redução da carga, a não-cumulatividade, o pacto federativo e a progressividade.
No que tange à simplificação do sistema, o
que se percebe é que a fase de transição (dez anos) para o modelo de unificação
dos cinco tributos (IPI, ICMS, ISS, PIS e Cofins) no Imposto sobre Bens e
Serviços (IBS), previsto na PEC-45, é tão longa e as medidas e providências
dela decorrentes tão complexas que talvez anulem ou reduzam o eventual efeito
positivo no curto e no médio prazos. Tendo em vista a urgência de um sistema
mais simples, o efetivo custo-benefício da unificação pode demorar a ser
sentido, o que nos leva a questionar se, neste sentido, a proposta de fato
representaria uma vantagem.
A demora é ainda maior quando se trata de
consolidar o novo modelo de repartição de receitas entre os entes federados. De
acordo com o parágrafo 5º do art. 152-A,
introduzido na Constituição pela proposta de reforma, a receita do IBS
"será distribuída entre União, Estados e Municípios proporcionalmente ao
saldo líquido entre débitos e créditos do imposto atribuível a cada ente",
nos termos da Lei Complementar que deverá ser aprovada visando a disciplinar a
matéria. Pelo mecanismo de transição da unificação dos tributos, essa
repartição só será plena e estará totalmente concluída no quinquagésimo ano a contar
do ano de estabelecimento de alíquota de referência de cada ente, à luz do que
estabelece o caput e o parágrafo 3º do art. 120 introduzido pela proposta no Ato das
Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT).
Quanto à redução da carga, entendo que,
diante do abismo fiscal que enfrentamos hoje no país, tal parâmetro só poderia
estar presente caso houvesse uma compensação por meio de outras fontes de
receita no curto prazo, o que não é o caso. Já no que tange a aplicação da
não-cumulatividade, há sérias dúvidas se o modelo introduzido pela PEC-45
conseguirá preservar este princípio, embora faça menção expressa a ele entre os
seus objetivos.
No que diz respeito à manutenção do pacto
federativo e o pretendido esvaziamento da "guerra fiscal", a dúvida é
se não haverá disputas concorrenciais com efeitos deletérios sobre a receita
entre estados e entre municípios, uma vez que a autonomia para estabelecer as
alíquotas de sua competência, dentro da composição do IBS, está mantida - o que
não poderia deixar de ser em respeito ao próprio princípio federativo. O
mecanismo de composição e repartição de receitas do IBS, cuja incidência se dá
em operações de naturezas distintas, que antes eram de responsabilidade de três
impostos e duas contribuições, é por si só de difícil compreensão, devendo
gerar dúvidas entre contribuintes e autoridades fiscais.
Sobre a progressividade, o princípio guarda
relação direta com a mudança da ênfase tributária, que, no caso do Imposto
sobre Bens e Serviços introduzido pela PEC-45 sai da produção para o consumo. A
ênfase da proposta está no consumo, desonerando a produção. Cabe ressaltar que
Impostos de Valor Agregado (IVA), como é o caso do Imposto sobre Bens e
Serviços (IBS), são, por definição, tributos cuja incidência recai sobre o
consumo, ainda que o contribuinte seja o produtor, o prestador de serviços, o
comerciante, o locador etc. Tal modelo não é em si negativo, haja vista que
traz a vantagem de desonerar a produção, o que tem efeitos econômicos e sociais
positivos.
Contudo, para que um modelo com ênfase no consumo
seja socialmente adequado (e isso vale, sobretudo, para um país com os níveis
de desigualdade que temos no Brasil), é preciso que estabeleça de forma clara
como se dará a compensação a famílias de baixa renda, posto que, com a ênfase
no consumo, elas estão injustamente equiparadas ao contribuinte de maior poder
aquisitivo. Ressalte-se que o IBS (a exemplo de todos os IVAs no Direito
Tributário comparado), como o próprio autor da PEC reconhece em suas justificativas,
não é ferramenta própria para políticas públicas.
Neste sentido, vale salientar que, pela
proposta, as alíquotas poderão variar entre os entes da Federação, respeitando
o princípio federativo, mas não poderão ser diferenciadas em relação a produtos
e serviços. Assim, não poderá haver, por exemplo, uma tarifa menor para as
cestas básicas, que têm por finalidade o atendimento ao consumidor de baixa
renda, que gasta quase a totalidade de seu salário com a sua subsistência. A
alíquota final, com as devidas compensações de débitos e créditos tributários
ao longo da cadeira, será de 1%.
O próprio autor do projeto tenta se
explicar, nas justificativas de sua proposta. Vejamos:
"Isso não significa que o modelo não deva
contemplar medidas que mitiguem o efeito regressivo da tributação do consumo.
Para tanto, propõe-se um modelo em que grande parte do imposto pago pelas
famílias mais pobres seja devolvido através de mecanismos de transferência de
renda. Este modelo seria viabilizado pelo cruzamento do sistema em que os
consumidores informam o seu CPF na aquisição de bens e serviços (já adotados
por vários Estados brasileiros) com o cadastro único dos programas sociais.
Trata-se de um mecanismo muito menos custoso e muito mais eficiente do ponto de
vista distributivo que o modelo tradicional de desoneração da cesta básica de
alimentos".
Notamos, pelo enunciado acima, que o deputado
Baleia Rossi reconhece que o modelo introduzido pela PEC-45, ao transferir a
ênfase tributária para o consumo, é regressivo - e por isso injusto. Porém,
mesmo reconhecendo tal característica, não foi capaz de trazer para o corpo da
Emenda Constitucional que propôs um mecanismo claro e bem estruturado para,
conforme suas palavras, proteger da regressividade as "famílias mais
pobres". Vale dizer que a regressividade é talvez um dos traços mais
perversos do atual sistema tributário brasileiro e, sendo assim, um projeto que
se pretende uma "Reforma" deveria enfrentar o problema apresentando
uma solução consistente, o que não ocorre na PEC-45.
Saliente-se que nada há de errado em se
promover a desoneração da produção, eis que essa é também uma medida que traz
avanços sociais, na medida em que estimula o setor produtivo (este, combalido
por um ambiente hostil ao empreendedorismo), devendo figurar como eixo de
qualquer reforma do sistema. Porém, a ênfase no consumo como forma de desonerar
a produção não pode ser um "valor-princípio" absoluto, devendo ser
compensada por outros mecanismos no âmbito de uma mesma reforma.
Assim, a PEC-45 deixa a desejar por não
explicitar como seriam as medidas compensatórias para famílias de baixa renda.
Aliado a esse "defeito" de origem, faltou à proposta tratar da renda,
mais precisamente, do Imposto de Renda de pessoas físicas e jurídicas, bem como
a Contribuição sobre Lucro Líquido (CSLL), eixo pelo qual, também poderia, no
que se refere ao IR, desonerar o contribuinte de menor renda, a partir de
mecanismos de progressividade, tendo em vista: 1. compensar a ênfase dada ao
consumo pelo imposto de valor agregado proposto pela PEC (o IBS); e 2.
preservar a capacidade financeira do Estado, tendo em vista os graves desafios
e incertezas fiscais que se avizinham.
Ao desonerar a produção, a PEC-45 traz uma
real contribuição para o desenvolvimento do país, e por essa razão não deve ser
descartada de pleno. Porém, é imperativo que se faça a sua adequação no que
toca a elaboração de mecanismos compensatórios para o consumidor de baixa
renda, dentro de política pública específica. Ao
optar por uma Reforma Tributária segmentada, a ser feita gradualmente, o
governo terá a chance de ajustar e aprimorar as principais medidas apresentadas
até o momento, em especial a criação do IBS, presente não apenas na PEC-45 como
também na PEC-110, do Senado (objeto de um próximo artigo). É o que se espera.
*Por Nilson Mello
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